Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 25
Vivo


Notas iniciais do capítulo

Bom, galera, espero que gostem. Desculpem a demora, mas eu não estava bem.
Boa leitura!



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Samantha

Um corte.

Eu precisava de um ferimento para ser curada, pois fiquei com medo de repetir a mesma mentira dita na instalação de cura anterior. Não precisava ser nada profundo, apenas um pequeno machucado, mas infligir dor a mim mesma não era algo fácil de fazer. Tirei o casaco e prendi o cabelo para ficar um pouco diferente, não queria me dar o luxo de correr riscos desnecessários, e peguei a faca que sempre mantinha comigo. Respirei fundo e contei até três antes de enfiá-la na parte interna da mão, bem próximo ao polegar. Arquejei de dor, mas não gritei como gostaria de ter feito. Obviamente fiz isso longe de Cal, ele jamais deixaria que eu fizesse isso comigo mesma. Enrolei minha mão ferida em uma toalha que havia levado e olhei de um lado para o outro antes de entrar. Lá dentro, absorvi o máximo de informações possíveis sobre a estrutura do lugar.

Como de praxe, em menos de cinco minutos eu já estava sendo curada. Dessa vez o curandeiro era um rapaz que aparentava ter a minha idade e ele parecia envergonhado em ter que me tocar.

— É a primeira vez que atende sozinho? — eu perguntei para quebrar o gelo, pois isso seria necessário se que quisesse saber mais coisas depois.

— Sim — ele sorriu desconcertado. — Mas não se preocupe, você vai ficar bem, senhorita?...

— Luz do Sol Através do Gelo — dei o nome de Sunny porque achei doce e apropriado para o momento. — Mas pode me chamar de Sunny — pisquei e o rapaz corou. — Qual o seu?

— É Outono Terrestre.

— Ah, você nasceu aqui na terra, Outono? — perguntei ao reconhecer o nome. Eu já conseguia saber em que planeta uma alma havia nascido apenas pelo seu nome.

— Sim — ele respondeu. — É minha primeira vida. Não sei como é viver em um lugar com emoções mais amenas do que estas.

Então aquela alma era quase humana, pois a única coisa que tinha visto na vida era a superfície do meu planeta ambíguo. Ele curou a minha mão com todo cuidado e satisfação e a única coisa que restou sobre a palma foi uma pequena linha fina e rosada. O rapaz sorriu, satisfeito com o trabalho, e não senti raiva dele por ser alma. Assim como antes existiram humanos que nada puderam fazer para mudar a situação do mundo, aquela alma não havia escolhido vir para cá. Talvez um dia, se ele partisse, levasse consigo todas as emoções humanas mais nobres.

— Nossa, não canso de ver isso — eu exclamei olhando para a minha mão. — O trabalho dos curandeiros é incrível, acho que vocês são capazes de curar qualquer coisa, não é? Por isso tenho certeza de que vocês conseguirão manter o humano que está aqui vivo — eu joguei a “deixa” e esperei colher uma resposta positiva. Meu coração martelava com tanta força que chegava a me deixar sem ar.

— Como você sabe sobre o humano? — ele perguntou desconfiado. Fiz a minha melhor expressão arrependida.

— Me desculpe, meu pai que me contou. Ele é buscador.

— Então você sabe que estamos fazendo de tudo para que ninguém saiba que ainda há humanos lá fora, não é Sunny? Não queremos alarmar as almas...

Havia um humano ali, vivo, e a probabilidade de que não fosse Nate era muito, muito pequena. Mas eu precisava ter a certeza necessária para fazer alguma coisa arriscada. Se Nate estivesse vivo eu o arrancaria dali a força.

— Claro! — eu respondi sorrindo e ele relaxou. — Humanos realmente são uma raça violenta. Mas sabe... eu nunca vi um humano — fiz charme e o rapaz voltou a corar. — Como ele é, Outono? Eu gostaria muito de vê-lo.

— Ele é como nós, Sunny. Mas não posso deixar você vê-lo.

— Por favor? É só uma curiosidade — pedi e ele ficou me fitando quieto. Almas – pelo menos em tese – eram tão boas e sociáveis que recusar o meu pedido parecia ser algo muito difícil de fazer. Se fosse possível ouvir as engrenagens de sua cabeça funcionando provavelmente eu estaria ouvindo.

— Tudo bem, eu te mostro — a alma respondeu depois de muito pensar e me ofereceu a mão, a qual eu peguei gentilmente. Ele me guiou pelos corredores, ainda de mãos dadas, e me perguntei se essa era a maneira que as almas flertavam. Eu estava tão feliz e sorrindo tanto que talvez o rapaz pensasse que ele era o motivo de minhas reações. Nós paramos em frente a uma sala fechada e isolada e ele a abriu cuidadosamente. Prendi a respiração.

— Veja — ele disse baixinho.

O homem estava com um tubo enfiado na garganta e alguns pontos adesivos grudados em sua testa monitoravam a atividade cerebral. Havia uma marca grande e rosada no peito, como se ele tivesse sido aberto, e alguns outros fios monitoravam outras partes do corpo. Ele inspirava e expirava devagar, as mãos jazendo inanimadas na lateral da cama.

Segurei as lágrimas com todas as forças que eu tinha.

— Ele agora ainda precisa se recuperar, pois o coração foi praticamente todo danificado e, além disso, o humano bateu fortemente a cabeça quando caiu. Embora nossa medicina seja perfeita, o corpo necessita de alguns dias a mais para se fortalecer e só será entregue em perfeito estado — Outono narrou orgulhoso. — Mas não se preocupe, ele logo sairá dessa e em breve fará parte da nossa comunidade. Ele será um de nós.

Não, ele jamais será um de vocês, jamais! Eu vou te salvar, meu amigo! — pensei enquanto fitava Nate com alegria. — Eu vou te salvar.

— Isso é espetacular — falei ao curandeiro depois de um tempo de silêncio e logo comecei a sorrir, tentando inutilmente disfarçar minha felicidade.

— Muito — o curandeiro concordou. — Estou ansioso para fazer a inserção.

Na mesma hora minhas mãos gelaram e imaginei que alma eles colocariam em Nate caso não conseguíssemos salvá-lo. Respirei fundo e sorri, agora forçadamente, e Outono me guiou para fora da sala. Foi difícil sair dali e deixar Nate no meio dos inimigos, o fato dele estar vivo exigia ainda mais rapidez e coragem de nossa parte.

Teríamos que invadir.

— Obrigada por cuidar de mim e por me deixar ver o humano, Outono — agradeci já do lado de fora.

— Não há de que, Sunny — ele estava visivelmente encabulado. — Espero que possamos nos ver mais vezes.

— Eu vou voltar para fazer uma visita — respondi e o rapaz pareceu feliz, sem perceber as notas de ironia em minha voz.

É claro que eu voltaria.

— Vou esperar — ele respondeu e eu saí andando naturalmente, tentando controlar as emoções desenfreadas que me dominavam.

Nate está vivo e bem, Cal ficará feliz, todos terão um de seus líderes de volta, Cal terá o seu melhor amigo de volta! — repeti fielmente como um mantra. Atravessei rapidamente a porta central, sem olhar para os lados, e quando me vi do lado de fora, sob o sol bravio da tarde, desatei a correr. Eu precisava contar a Cal que seu amigo estava vivo e que logo tudo acabaria bem, que não precisaríamos mais chorar por ele. Além do mais, não havia sinal de buscadores na instalação de cura e Nate sequer estava sendo vigiado. Retirá-lo de lá seria aparentemente fácil e precisaríamos de um plano rápido.

Cal me esperava em um beco localizado a duas quadras do hospital, pois eu não queria que o vissem comigo. Mas embora eu tivesse praticamente ordenado a ele que permanecesse no carro, não foi assim que o encontrei, pois ele estava do lado de fora, encostado na lataria e com uma cara preocupadíssima. Quando percebeu que eu estava correndo, tirou as mãos dos bolsos e me fitou aflito. Assim que nossos olhos se encontraram, ele viu a minha expressão preocupada e meus olhos vermelhos e com isso deduziu tudo errado. Cal então apertou os punhos e, fechando os olhos, baixou a cabeça. Porém, assim que ele abriu os olhos e me olhou novamente eu já estava sorrindo e isso o deixou ainda mais confuso. Balancei a cabeça repetidas vezes e afirmativamente, e sua expressão se iluminou.

Era pra eu ser discreta e quieta como sempre fui em minha vida, mas perto de Cal era como se tudo o que eu sentisse ou pensasse se esvaísse como o vento. Antes mesmo que pudesse medir ou refletir, me joguei em seus braços e o trouxe para o mais perto de mim possível, sentindo sua barba de alguns dias arranhar o meu pescoço em um abraço mudo. E então, segurei-o firmemente pela gola da camisa e o beijei. Não por iniciativa dele ou obra do acaso, mas porque assim eu quis. E quando senti a sua boca e a sua retribuição foi como se o mundo tivesse parado de girar e nada de mau existisse no mundo. Nada. Apenas eu e ele.

— Ele está vivo? — Cal me perguntou só para confirmar, o rosto com um misto de rubor e alegria.

— Está. E vai ficar bem — respondi meio sem graça, percebendo o que havia acabado de fazer. Mas eu sempre havia sido assim, sempre agindo por impulso. “Agir primeiro, pensar depois” era meu lema. As consequências que viessem atrás. — Temos que tirar Nate de lá o mais rápido possível, não podemos permitir que um buscador vasculhe a memória dele.

Cal ainda ficou agarrado a mim por um bom tempo antes de dizer algo.

— Tudo bem, tudo bem. Pensaremos logo em algo, temos que ser muito rápidos. Mas primeiro vamos sair daqui.

Cal praticamente me empurrou para dentro do carro e depois de andarmos algum tempo encostamos em um lugar distante dali para pensar.

Como retirar um homem em recuperação, um humano, de dentro de uma instalação de cura em meio às almas sem chamar atenção?

.

— O lugar é grande e está sempre cheio de gente — narrei de boca cheia, enquanto mastigava um sanduíche —, no entanto as almas não são desconfiadas e nem checam os olhos dos visitantes, então temos isso a nosso favor. Nate está em um lugar isolado no terceiro andar e não há ninguém vigiando o seu leito, o que é uma grande sorte. Temos que nos preocupar também em como desligá-lo dos aparelhos sem danificar sua saúde. Não tive como saber se ele está totalmente recuperado... Droga, estou com medo. Se falharmos, perderemos bem mais do que...

— Não vamos falhar, Sam — Cal me cortou, sua voz determinada. — Não será difícil.

— Também não será fácil — devolvi. — O que você acha?

— Faremos como o combinado — Cal respondeu.

— Sério? — perguntei cética.

— Sério.

O plano de Cal era tão simples e sem complicações que me pareceu extremamente ridículo. Entraríamos juntos como um casal de almas normais e, caso conseguíssemos passar despercebidos, nos dirigiríamos até o terceiro andar. Cal acordaria Nate e o auxiliaria a sair de lá enquanto eu iria à frente limpando o caminho ou causando alguma distração se necessário. Depois, sairíamos pelas portas de emergência, que ficavam na parte de trás da instalação de cura e davam para um beco onde era depositado o lixo, e entraríamos no carro que seria deixado a nossa espera com as portas parcialmente abertas. Nenhum tiro seria disparado e deixaríamos como rastro no máximo algumas almas desacordadas. Fugiríamos em direção ao norte e abandonaríamos o carro antes de fazermos o caminho inverso. As almas seguiriam o caminho errado, então estaríamos livres.

Fácil.

Demais.

Muito.

Não gostei.

— Você já ouviu aquele ditado: “quando a esmola é muita, o santo desconfia?” — indaguei.

— Já, Sam. Mas não há buscadores aqui e não outro modo de fazermos isso. O que você prefere então? Armas, reféns e tiroteio? — ele disse sarcástico e não gostei. — Desculpe — se redimiu. — Estou nervoso.

— Não estou dizendo isso porque anseio por violência — me defendi. — Mas... nunca fui acostumada a ter as coisas fácil demais. Por isso fico sempre com o pé atrás.

— Não se preocupe — Cal me tranquilizou, sua mão acariciando a minha. Estranhamente eu havia desenvolvido uma necessidade quase dolorosa de me manter sempre em contato com ele, como se isso fosse a única coisa no mundo capaz de me acalmar. — Entraremos durante a madrugada e daremos o fora antes mesmo de sentirem qualquer coisa estranha no ar. Tenha fé.

Tenha fé.

Se eu ouvisse isso da boca de um humano não me soaria tão estranho. Mas justamente por isso, por ser uma alma a me dizer tais palavras, que tomei coragem e retribui seu olhar confiante. Tenha fé. Sim, a minha fé não estava morta, pois havíamos sido avisados e muito sobre o fim do mundo. O fim que viria dos céus. Nós só não soubemos como interpretar isso. Tudo o que estava acontecendo já era previsto há muito, muito tempo.

— Ainda é cedo — ele chamou minha atenção e percebi que o céu, embora ainda bem iluminado pelo sol, já estava adquirindo contornos em vermelho e laranja. A noite não tardaria a chegar e precisaríamos estar prontos, esperar era um luxo inexistente.

— Durma um pouco e deixe que eu vigio o carro — ofereci. — Você precisa estar forte, talvez seja necessário carregar Nate.

Cal não rejeitou a ideia, eu sabia que ele devia estar cansado depois de ter passado a noite velando o meu sono. Eu havia tido uma noite agitada e toda vez que abria os olhos ele estava lá, me vigiando e colocando os braços ao meu redor sempre que eu tremia. Percebi que sempre que havíamos nos tocado eram em momentos impróprios e impulsivos, longe da tranquilidade, de modo que nunca podíamos conversar sobre o que estava acontecendo entre nós. Eu me sentia mal e egoísta por sentir essas coisas enquanto achava que Nate estava morto ou precisando de ajuda, mas apesar de tudo estava gostando muito de ter Cal ao meu lado. Minha mãe costumava dizer: “há males que vêm para o bem”. Adam também vivia repetindo sobre “as coisas sempre acontecerem por um motivo”. Deduzi que eles deveriam estar falando sobre isso e o agora. Todos os passos que eu havia dado até aqui e todos os acontecimentos só me levavam em uma única direção. A dele.

O sol aos poucos foi morrendo e em poucas horas já estávamos no mais completo breu. Nate estar vivo tinha sido uma notícia mais do que bem vinda, mas isso implicava num problema ainda maior. Se ele estivesse são, sua mente também estaria e visualizei o buscador sorrindo sarcasticamente, só esperando o momento de entrar na cabeça dele e extrair tudo sobre nós. Esperei até ser madrugada alta e dirigi de volta ao hospital. Cal só despertou quando parei no beco.

— É agora — eu disse e minhas mãos estavam frias. — Droga, quando foi que viver virou um risco tão grande assim? Entrar em um hospital e pegar Nate... parece fácil demais. Terrível demais.

— Vamos conseguir — ele me acalmou. — Vai amanhecer logo e em poucas horas estaremos em casa.

Casa... Essa palavra me trouxe um aperto no peito.

— Me promete uma coisa? — perguntei e ele segurou minhas mãos. — Prometa que se algo der errado você não hesitará em levar Nate de volta.

— O que você está dizendo? — Cal me olhou e eu vi desespero em seus olhos.

— Nate sabe onde todos os humanos estão escondidos, muitas vidas dependem dele. Se algo der errado, deixe que eu os distraio.

— Não diga isso! — ele sussurrou, mas foi forte o suficiente. — Ninguém ficará para trás dessa vez. Enquanto eu estiver vivo, nunca mais um humano se perderá, nunca mais um humano morrerá. Principalmente se for você — suas palavras me tocaram e me senti forte. — Agora vamos — Cal saiu do carro e eu o segui.

Nós entramos no hospital pela porta lateral e coloquei minha arma na cintura de um jeito que ficasse ao alcance, mas que não fosse possível ver o seu volume. “Nunca mais um humano se perderá, nunca mais um humano morrerá. Principalmente se for você” — lembrei.

Mas não sei o porquê isso não me trouxe a segurança necessária.

O destino de nosso pequeno mundo agora estava em nossas mãos.


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Notas finais do capítulo

Obrigada a todos que leram!
E, gente, é sério, a fic já está para acabar e eu vejo que muita gente está lendo, mas não comenta. Nós, autores, queremos que vocês falem conosco e digam o que acham, não é por números ou coisa do tipo. Deem opiniões, falem sobre o que gostam e o que não gostam. Isso nos ajuda a crescer e a desenvolver nossa escrita, além de que é muito legal conhecer outras pessoas dentro da plataforma. Enfim, beijos a todos os leitores e obrigada por estarem aqui.



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