Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 24
Esperança


Notas iniciais do capítulo

Bom, hosters, aí está mais um capítulo para vocês. Espero que gostem!
boa leitura.



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O supermercado onde tudo ocorrera estava funcionando normalmente e senti meus músculos tensionarem ao pensar em entrar lá novamente. Mas não era hora para covardia, aquela era hora de buscar respostas, e, dependendo do que eu descobrisse, voltaríamos para casa ou seguiríamos em frente.

— Tem certeza? — Cal perguntou pelo que julguei ser a milésima vez naquela manhã. Já passava das sete e o lugar ainda não havia começado a encher. Observei o lugar várias vezes antes de decidir entrar, torcendo para que não houvesse buscadores por lá.

— Tenho sim.

— Acho melhor eu ir no seu lugar, Samantha.

— Nada disso — eu ralhei. — Eles podem estar procurando por você e nós sem sabemos.

— Já disse que não é como no mundo humano. Não há perigo.

— Quem pode me garantir isso? Não seja tolo, Cal, as coisas estão mudando se você ainda não percebeu. Os buscadores sempre portaram armas de fogo, mas agora parecem não ter mais remorso em usá-las. Atiram para matar. Qual a certeza que você me dá de que eles não estão por aí, obcecados por “carne humana”? Agora tente imaginar o ódio que devem estar sentido por saber que um deles está do nosso lado! — disse de uma vez, as palavras jorrando antes mesmo que eu pudesse medi-las.

Cal fez uma expressão horrorizada e olhou para o chão, provavelmente digerindo a verdade por trás de tudo o que eu havia dito. As almas em sua maior parte eram boas, mas parece que de uns tempos para cá as coisas estavam mudando e algumas delas pareciam estar colocando para fora a sua verdadeira natureza.

— Me desculpe — pedi e ele respirou fundo. — Eu... eu só não quero que você seja pego também, não quero que corra riscos. É mais seguro se você ficar aqui. Por favor.

— Tudo bem, você têm razão. Vou manter o carro ligado — Cal por fim disse depois de um tempo. — Tome cuidado — ele me abraçou e retribuí.

Saí devagar e esperei estar longe para deixar meus olhos iguais aos dos invasores, não queria que Cal me visse assim. Desejei ardentemente que tudo terminasse e que logo eu estivesse livre desse peso. Eu ainda nutria o medo de que a qualquer momento a alma em mim acordasse e tomasse o que achava ser seu por direito, eu. Mas anos já haviam passado desde que eu me tomara de volta, por isso joguei o medo para um lugar distante. Ele não serviria de nada no momento.

Entrei no estabelecimento e fui saudada com alguns sorrisos afáveis, as quais foram difíceis para eu conseguir retribuir. Peguei a primeira coisa que vi na minha frente, apenas para ter o pretexto de falar com o caixa.

— Bom dia! — ele cumprimentou. — Adoro esse chocolate.

— Ah, eu também — respondi olhando para a caixinha colorida em minhas mãos. — Então, você não tem medo de ficar aqui sozinho tão cedo depois de tudo o que houve esses dias? — perguntei sem rodeios e suavemente, como se fosse apenas mais uma alma curiosa e preocupada. Os olhos do rapaz, poucos anos mais velho do que Adam, adquiriram uma expressão temerosa.

— Bom, devemos confiar que os buscadores sejam bons o suficiente para zelar pela nossa paz, não é? — ele respondeu. — Mas confesso que estou assustado em saber que ainda há humanos selvagens entre nós, essas criaturas são muito violentas. É por isso que devemos evitar falar sobre isso, alguns de nós estão com muito medo — ele pediu, olhando de um lado para o outro, preocupado se mais alguém estava ouvindo nossa conversa.

— É, você tem toda razão. Não há motivo para causar pânico — aquiesci. Lembrei da expressão violenta e furiosa no rosto do buscador e da forma que ele iria covardemente atirar em Cal, pelas costas, e pensei que as almas estavam equivocadas em relação aos humanos.

Nós estávamos tentando perdoar e seguir em frente.

Elas não.

— Mas o humano foi capturado, não foi? — cochichei, fingindo que compartilhava o mesmo medo que ele.

— Acho que sim, porém não posso afirmar. Eu não estava aqui quando tudo aconteceu, fiquei sabendo do ocorrido por alguns amigos. A única coisa que sei é que ele foi levado pelos buscadores depois de se ferir — o jovem respondeu com tristeza. — Como alguém pode ferir a si próprio?

Por amor, por sacrifício, por tudo que você não deve entender — pensei. — Então há uma chance. Uma esperança. Uma luz.

— Nem posso imaginar — disse a ele e o rapaz me entregou uma sacolinha com minha compra fajuta. — Bom, tenho que ir. Obrigada e se cuide — fui cortês e ele sorriu.

Caminhei até onde havia deixado Cal e o encontrei ao volante com o motor ligado. Sentei-me ao seu lado e fiz uma expressão neutra.

— E então? Descobriu alguma coisa, Sam?

— Não sei. A única informação que consegui afirma que ele foi levado pelos buscadores. No entanto, não sei como tudo acabou.

— O que faremos agora? — Cal perguntou se senti que ele estava desesperado.

— Continuar. Vamos procurar nas instalações de cura.

Nós seguimos em frente e descobrimos que havia uma instalação não muito longe dali. Deixei Cal no estacionamento novamente e adentrei o hospital. O lugar era bem limpo e imediatamente comecei a suar frio, sentindo uma raiva devoradora me invadir. Dentro daquele lugar vidas eram roubadas para darem lugar a outras e os ladrões sequer sentiam culpa pelo que faziam. Talvez Cal, Sunny e Peg fossem mesmo especiais.

Eu não precisava me ferir para ser atendida, apenas inventei que estava sentido um mal estar. Imediatamente uma atendente me encaminhou à sala de cura, se desdobrando em cuidados o caminho inteiro. Nessa hora minha raiva se dissipou, pois as almas, pelo menos algumas, ainda eram bondosas como os humanos nunca havia sido.

— O que sente, querida? — uma curandeira que aparentava passar dos sessenta perguntou enquanto media meu pulso. Não gostei de senti-la me tocando e por isso me segurei para não afastá-la. E não fiz isso por ela ser alma, mas sim pelo fato de eu não gostar muito de toques.

— Acho que foi algo que comi — menti. — Mas não é nada grave, só um enjoo.

— Ah, querida, você não gostaria de fazer um teste de gravidez? — ela perguntou sorrindo. Congelei na hora.

— O que disse? Gravidez?

— Sim, isso está ficando tão comum que nem me espanto mais — ela respondeu abanando as mãos, como se tivesse falando como uma velha amiga. — No início da colonização os nascimentos caíram drasticamente, não somos tão descuidados e negligentes como os humanos. Mas agora, acho que as almas estão se acertando com seus companheiros e inevitavelmente os bebês estão surgindo. Isso não é maravilhoso?

As almas estavam tendo filhos? Lembrei qual a última vez que eu havia visto um bebê e já fazia sete anos desde que eu vira um. Crianças eram sempre vistas como o futuro, a continuidade da espécie. Imaginei pequenos bebês almas e fiz força para segurar as lágrimas.

— Bebês? — eu me forcei a falar, contudo minha voz embargou. A curandeira sorriu, com certeza tendo imaginado que eu me emocionara. — Bebês almas?

— Não, querida, bebês humanos — a alma disse me fazendo engolir um remédio.

— Com que idade eles se tornam parte da comunidade? — perguntei abatida, já nem lembrando o que tinha ido fazer ali.

— Humm — ela pareceu pensar — desde que isso começou nós nunca fizemos uma inserção em um corpo tão jovem. Acho que eles permanecerão humanos até que seus guardiões decidam.

Bebês humanos, crianças puras crescendo livres no mundo que lhes pertencia. Isso parecia tão surreal, um oasis no meio do deserto de caos e desespero, que tudo dentro de mim vibrou e doeu. Comecei a rir e a mulher apenas me acompanhou.

— Eu nunca vi um humano — menti depois que me recuperei e lembrei o que precisava fazer ali. — Fiquei sabendo que um foi capturado há alguns dias. Por acaso ele está aqui?

— Não, não — a alma respondeu e só depois se deu conta de que falara demais. Continuei olhando para a mulher com uma expressão que indicava mais curiosidade do que medo e ela continuou a falar. — Bom... fiquei sabendo que ele, o humano, estava ferido demais e precisava de uma instalação mais equipada do que a nossa. Meu companheiro é buscador e me disse que ele foi levado para o hospital na área oeste, pois lá há algumas máquinas novas. Porém, o estado dele era delicado, temo que não tenha sobrevivido...

Toda a alegria que havia em mim se esvaiu como água na areia quente. Como eu daria essa notícia a Cal?

— É uma pena — eu disse tentando disfarçar a tristeza. — Você não acha?

— Sim, eu acho, isso é realmente uma lástima. Estamos precisando tanto de corpos...

Então era isso? Nenhum sentimento pelo humano e pelo que ele representava, mas sim apenas pelo fato de perder um corpo novo que seria dado a alguém que não o merecia? Pensei em Cal e em como ele era diferente, e isso era a única razão para que eu tentasse entender o modo de pensar de sua espécie. Mas confesso que ao estar ali, ouvindo algo tão doloroso, isso era muito difícil.

— Estou bem melhor — falei disfarçadamente para a mulher e ela sorriu feliz. — Obrigada, já posso ir.

— Tem certeza que não está grávida?

— Sim, não se preocupe — respondi e saí, tentando segurar as lágrimas. Mas assim que vi Cal não consegui me segurar.

— O que foi? — ele se assustou a me ver aos prantos. — O que houve?

— Um humano foi levado para o hospital no oeste, mas a curandeira acha que pelo estado crítico ele não sobreviveu — joguei logo tudo em cima dele, eu não consegui ser delicada como gostaria. Olhei para ele, no entanto Cal não estava triste, mas sim parecia pensar.

— Ainda há esperança — ele disse. — Sei o quando o processo de cura do corpo humano é infalível e está se aperfeiçoando cada vez mais, então não podemos desistir. Não vamos desistir, ok?

— Ok — eu respondi e ele me abraçou. — Não vamos desistir — retribui o seu abraço e fechei os olhos, inalando o seu cheiro e sentindo uma sensação de paz que não sentia há anos, apesar de todos os medos recentes. Imaginei como seria se ele não tivesse encontrado Nate e ainda permanecesse do lado dos seus semelhantes. Onde será que ele estaria? Será que encontraria uma companheira e teria filhos com ela? Visualizei-o ao lado de alguma alma jovem e bonita, carregando uma pequena criança ruiva e meu coração doeu.

— Cal, quero te perguntar uma coisa.

— O que você quiser — ele disse se afastando de mim para poder me olhar nos olhos.

— O que as almas estão fazendo com as crianças humanas?

Ele ficou um tempo pensativo e então sorriu.

— Elas estão cuidando e amando essas crianças, pois são seus filhos. Acho que as almas só se importaram com as atrocidades do mundo e nunca prestaram atenção nessas coisas, nunca conheceram um humano de verdade — ele passou a mão carinhosamente na minha bochecha. — Mas acho que agora, ao verem esses pequeninos seres crescendo, talvez elas conheçam o amor de verdade. Não o amor herdado de seus hospedeiros, mas o amor que elas mesmas cultivarão em seus corações. Eu já havia visto famílias interespécies antes, Sam, e creio que essa será a salvação do mundo.

A salvação do mundo.

— Eu vi muita coisa ruim na minha vida — eu falei depois de meditar em suas palavras e pensar novamente nos paradoxos que as almas representavam. — Muita crueldade. E sei que a culpa de muitas dessas coisas estava no descaso dos próprios serem humanos uns com os outros. E agora eu vejo como será o desfecho de tudo o que aconteceu conosco. Imagine esses pequenos humanos vivendo em lares amorosos, aprendendo somente a fazer o bem e a nunca maltratarem nem ao próximo nem o planeta. Crianças que não crescerão desamparadas nem estarão nas ruas, que não serão maltratadas nem subjugadas. Talvez as almas tenham vindo até aqui não só para curar o planeta, mas também para curar os humanos. Eu não vou deixar de lutar, Cal, pois isso faz parte da minha natureza. Mas acho que a partir de agora tentarei ver as coisas de uma nova forma. Por você.

Ele então me abraçou com mais força ainda, e choramos juntos por tudo e por todos. Ele sabia que eu continuaria a tentar entender, mas que ainda lutaria pelo pouco que era meu.

— Vamos — eu disse com dificuldade por causa do aperto dele. — Ainda temos trabalho a fazer.

Cal balançou a cabeça e nós seguimos em frente, meu coração batendo tão forte que achei que a cidade inteira poderia ouvir. De algum modo, tudo acabaria ali e respirei o máximo que podia para me acalmar. Se ainda havia esperança eu me agarraria a ela com unhas e dentes e usaria essa força para vencer. Estávamos em uma guerra.

.

O hospital na área oeste era simplesmente colossal e pela fachada eu lembrei que era algo em referência no tratamento de câncer na época dos humanos. Porém hoje em dia, com a super medicina desenvolvida pelas almas, eu não fazia ideia do que poderia ainda funcionar ali além de uma simples instalação de cura, no entanto parecia ser algo importante, pois havia muitos carros estacionados e pessoas entrando e saindo a todo o momento. Pedi para Cal estacionar a umas duas quadras de distância.

— Eu quero que você fique aqui e se esconda — sentenciei. — Eu vou lá e falarei com os curandeiros como fiz na outra unidade.

— Negativo — ele retrucou zangado. — É claro que irei com você. Desde que começamos isso a única coisa que eu faço é esperar enquanto você se arrisca sozinha. Eu me propus a vir com você para te proteger, não para me esconder.

— Sei disso, mas por enquanto só precisamos saber se Nate está vivo e nada mais, depois a gente resolve o que fazer. Alguma coisa me diz para ficarmos alerta, principalmente em relação àquele buscador, e é um risco desnecessário você zanzando por aí — respondi e ele pareceu compreender. Ele ficou observando o reflexo que o sol fazia no ambiente e suspirou bem fundo, como se estivesse pensando em algo.

— Esse buscador é a alma mais diferente que já conheci. Pela primeira vez em minhas vidas bati de frente com uma alma, e eu sentia por ele o equivalente a raiva, o que me assustou muito na época. Eu cheguei a pensar que eu era o diferente por isso.

— O que foi que realmente houve, Cal?

— Depois que conheci Nate e percebi que os humanos não eram monstros como as almas apregoavam, fiquei sentido um pouco de culpa por termos tomado o mundo, sabe. Havia muita coisa ruim aqui quando chegamos, isso não podemos negar, assim como também havia muita coisa e muitas pessoas boas que não mereciam serem suprimidas e nem serem vistas como criaturas más. Acho que expus essas ideias alto demais e quando menos esperava apareceu esse buscador perguntando se eu conhecia algum humano e se tinha contato com ele. Ele era meio... obcecado, essa é a palavra. E sempre repetia que eu estava me perdendo para o hospedeiro e que sucumbiria, mas como explicar que quem sentia tudo isso era eu, a alma, e que não havia mais ninguém em minha cabeça? Eu sabia que ele nunca ia me deixar em paz e que o meu lar não era ali, então resolvi fugir. E foi assim que tudo aconteceu.

— E agora você volta até aqui e ele te reconhece depois de tantos anos — eu falei preocupada.

— Pois é. Esse mundo é muito pequeno, não é mesmo? — Cal riu tristemente. — Estamos muito longe de onde eu morava antes de me juntar a Nate, por isso não faço ideia do que aquele buscador faz aqui. Como fui esbarrar justamente com ele?

— Cal, você acredita em destino? — eu perguntei e ele me fitou, os olhos azul-prateados cansados. — Adam acredita sucintamente nisso e disse que tudo acontece com um propósito.

— O que você quer dizer com isso? — Cal fez a mesma pergunta que eu havia feito a Adam quando ele me falou isso e respondi com as mesmas palavras.

— Porque eu estava no lugar exato e na hora exata para ajudar Jared, Mel, Peg e Ian naquele dia na floresta. Porque de tantas almas e pessoas no mundo eu encontrei a alma que habita exatamente o corpo de Grace. E depois eu acabei indo parar numa caverna com outras almas e aprendi muitas coisas. Adam me disse que o destino queria que de algum modo eu perdoasse as almas.

— E você perdoou?

— Bom, estamos aqui, não estamos? — eu lancei outra pergunta para que ele enxergasse que eu era uma pessoa melhor do que antes e que esse perdão se aplicava a quem merecia, como, por exemplo, ele. — Acho que você ainda tem coisas para resolver na sua vida, Cal, e por isso essas coisas estão acontecendo. Só espero que o destino seja gentil com você, conosco. Agora eu vou lá saber notícias do nosso amigo, tudo bem? — perguntei e ele afirmou com a cabeça. — Esse pesadelo vai acabar em algumas horas — disse e o beijei no rosto antes de sair em direção ao hospital.

Mas o meu pesadelo estava apenas começando.


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Notas finais do capítulo

Agradeço a todos que leram e a aqueles que deixaram reviews lindos no último capítulo. Sério, gente, vocês são a minha inspiração. Ah, e se alguém quiser rir bastante com uma comédia bem louca, eu deixo aqui o link de uma outra fic minha https://fanfiction.com.br/historia/580013/Somente_a_noite/. Espero que gostem e não esqueçam de dizer o que acharam. Bjos



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