Minha Vida Existe Para Viver com Você escrita por Anita


Capítulo 2
Impulsos




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/554604/chapter/2

Serena virou o pedaço de carne de porco que acabara de pôr na rede metálica à sua frente e suspirou enquanto olhava a cor mudar com o calor, mas seu estômago não se animava nem com o cheiro.

– Não vai acabar queimando assim? – perguntou Motoki, comendo o pedaço que ele acabara de fazer.

Apressada, ela usou os palitinhos e quase conseguiu que seu pedaço caísse por entre as fendas da rede para o lugar onde o carvão queimava.

– Talvez devêssemos ter ido a um bar; você não parece com muito apetite. E Usagi sem apetite pra mim era uma combinação impossível. – Ele sorriu.

– Eu prefiro uma refeição de verdade. – Usagi também forçou um sorriso em retorno. – É só que tem acontecido muito nos últimos dias.

– Aliás, foi por isso que insisti em nos vermos! – Motoki bebeu de seu copo de cerveja. – Eu quase tive um ataque cardíaco quando o Mamoru me falou desse casamento de vocês.

Só o som daquela palavra começada em C já causava arrepios na jovem. Usagi demorou a notar o quão real era, mas conhecer o casal Chiba naquela tarde de sábado tornou o arranjo tão real quanto podia ser. E era um casal simpático, não podia negar. De bastante idade, era verdade. Esperava encontrar um casal na faixa etária de seus pais, mas passara a tarde com duas pessoas que podiam ser seus avós ou mais. Não, não bisavós, mas... Patrões dos seus avós? Por aí.

E eles iam morrer. Com certeza. Os dois não pareciam mais sequer pertencerem a este mundo, o que a deixava ainda mais nervosa. Ela era realmente a última esperança de perpetuar a família? Como o encontro com o casal Chiba a havia deprimido tanto, até sua mãe mandara que parasse de pensar nessas besteiras, mas quem sabia se o senhor Chiba – o mais velho dos dois – viveria até o próximo ano?

Em pensar que pusera o quimono sem qualquer vontade de agradar, contrariada por aqueles velhos só poderem marcar a reunião de família no mesmo horário do goukon que Makoto organizara. Mas um olhar sobre o pobre casal idoso, e Usagi se derretera com a doçura de ambos. Ela sequer se lembrava da presença de Mamoru, a primeira vez em que o via desde aquele beijo.

Ótimo, como fora pensar nisso? Concentração, Usagi! Ela conseguira manter todo o encontro afastado de sua cabeça e agora, bem na frente de Motoki, começava a ficar vermelha.

– Eu sou suspeito em falar, mas o Mamoru é um dos caras mais legais que já conheci – dizia-lhe o outro. Na verdade, ele ainda devia estar falando desde antes, mas só agora sua mente prestava atenção.

– Sabe, não quero pensar nessa loucura... – disse com sinceridade, levantando os olhos até o teto.

– Não é loucura. Bem, é um pouco irônico justo vocês dois serem juntados, mas o Mamoru vai te fazer feliz. Ou eu arranco a cabeça dele!

Usagi gargalhou, voltando a comer o churrasco. Este ficara um tanto chamuscado tal como fora alertada que ficaria.

– E mais uma coisa: por que todo mundo pensa que casamento é um loucura? – Motoki continuava. – É maravilhoso ter alguém do seu lado, alguém que de fato quer estar ali com você. Eu sei que você ainda é nova, só vinte anos e tal...

– Vinte e três – corrigiu.

– É, isso. Só uns vinte anos... mas não é tão incomum assim. Não é o mesmo que casar muito novo. É a idade certa! Uma amiga sua de colégio daqui não casou noutro dia?

Usagi assentiu desanimada.

– Não é como se eu falasse com a Naru, só fui na festa e dei meus parabéns, você lembra disso... Não dá pra ligar e ver o que ela acha de verdade sobre o que fez, né?

– Bem, tem eu aqui. E eu não me arrependo nem um pouco de ter me casado com a Reika assim que terminamos os estudos. Esse é o próximo passo na vida, não há muito mais se não o fizermos. Não me arrependo de haver me casado; eu só preferia que meu emprego facilitasse as coisas. E o da Reika. Quando eu estou livre enfim, surge alguma coisa pra ela; é meio chato isso.

Usagi assentiu. A verdadeira razão para estarem ali era Reika, a esposa de Motoki havia mais de cinco anos, haver tido que viajar para uma palestra. Detalhe: notícia só fora dada quando ela já estava na estação de trem em direção à parte sul do Japão. O motivo da maioria dos encontros de Usagi com Motoki era esse, apesar de ele nunca haver admitido que se sentisse só.

Ao menos, ele não estava procurando garotas aleatórias em um bar, como alguns homens casados da empresa faziam, ou assim Makoto lhe dizia ser comum. Entretanto, era difícil culpar Reika, quando o trabalho de Motoki era bem mais pesado que o dela. Ele saía de casa às seis e pouca da manhã e voltava apenas à meia noite na maior parte das vezes. Aos sábados que ele possuía um horário menos puxado, era a vez de Reika volta e meia cumprir tarefas como correção de trabalhos da faculdade onde ela lecionava e assistia um professor. Domingo era o dia em que os dois pareciam se ver mais certamente, mas não nesse final de semana, e nem nos demais em que a empresa de Motoki pedia que ele fizesse hora extra. Complicado não definia muito bem a situação deles.

– E aí? Vai aceitar o casamento, né? – Motoki havia retornado ao assunto original.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

A pergunta de Motoki ainda ressoava.

Sua semana havia passado como um furacão. Logo quando acordara no dia seguinte ao primeiro encontro com Mamoru, Usagi descobriu que já era considerada noiva. Não que ela já soubesse dessas conversas tarde da noite entre Ikuko e a senhora Chiba, e aquele dia passara de forma bastante normal.

Tirando o sorriso que não saía de seu rosto, o sabor do beijo que não deixava seus lábios e o endereço de e-mail de Mamoru na tela de composição de nova mensagem que não sumia de seu celular. Mas ela nunca lhe enviara nada, nem um “boa noite”.

Depois, as desculpas para falar com ele sumiram, e Usagi passara a se focar no goukon que Makoto estava organizando para conhecerem alguns universitários. Claro que os garotos também achavam que as duas ainda estavam na faculdade, o que deixara Usagi ainda mais animada. Sempre gostara de atuar.

Já era quinta-feira quando ela percebeu um quimono surgir na sua casa. A mãe o estava preparando com cuidado em seu quarto no momento em que Usagi retornou do emprego. Ikuko não era do tipo que gostava de se vestir assim normalmente, por isso a indagação do que seria aquela roupa exposta foi inevitável.

A cor sumiu de seu rosto quando sua mãe informou que os Chiba os visitariam no sábado. Por quê? De alguma forma, a resposta parecia óbvia para sua mãe: “eles querem conhecer a nora, né?” Usagi ainda negou, pontuando que ela só havida ido ao encontro para conhecer o cara, mas que não haveria casamento algum. Não obstante, sua mãe mostrou-se incontornável, pois a própria filha lhe dissera que tudo havia corrido bem e que havia se divertido com Mamoru.

Em que mundo se divertir com alguém lhe rendia uma entrevista entre os pais dos dois!? Mas quinta-feira já era tarde demais para cancelamentos: os Chiba já haviam marcado a viagem desde Quioto para conhecer Usagi.

Se ao menos seu plano de se mostrar uma péssima nora durante o encontro houvesse dado certo... Mas eles eram os velhinhos mais fofos e simpáticos que poderiam existir! Como ser mal criada com eles? No final, a própria Usagi já havia adotado a senhora Chiba como se fosse sua avó. Exceto que ela insistia em ser chamada de mãe.

Após falar com Motoki, Usagi voltou para casa resolvida: precisava ser firme com a mãe.

Quando chegou, no entanto, Ikuko já devia estar dormindo. A mãe havia saído com o marido naquela noite. No dia seguinte, tudo ficaria em pratos limpos. Usagi fora uma boa filha e considerara a oferta. Mas não. Ela não ia se casar com Mamoru Chiba.

Mesmo que ele fosse um par tão perfeito quanto Motoki lhe havia dito. Mesmo que ela estivesse tão encalhada como Makoto sempre lhe lembrava. Mesmo que todo mundo parecesse estar encontrando o amor a seu redor. Haveria outros. Para que ficar com o primeiro? Usagi não era do tipo que se satisfazia com qualquer um.

Mesmo que ele houvesse lhe tirado o ar com apenas um beijo...

Não! Não era hora de pensar no maldito beijo. Foi exatamente isso que desencadeara tudo ao fazê-la duzer que havia tido um bom encontro. Bem, a janta, a sobremesa, os enroladinhos de polvo estavam todos muito bons também... Com certeza, contribuíra.

Um gato. Usagi forçou a se concentrar em um gato preto que normalmente vinha encontrando próximo à sua casa. Ele estava de costas, por isso, a ideia se apoderou dela antes que melhor juízo lhe falasse. Usagi segurou a respiração, aproximou-se silenciosamente e agachou-se para cutucar as costas do felino.

Luna não sabia dizer o que pensou que fosse. Na verdade, ao sentir suas costas serem mexidas, ela achou que pudesse se tratar de Arthemis. Em razão disso, sentiu-se altamente confusa ao se virar e encontrar um humano com os olhos enormes piscando bem próximos dela. E berrou alto, esquecendo-se de sua condição felina para em seguida pulou para bem longe antes de perceber que era apenas Usagi sendo ela mesma.

Houve um silêncio em seguida, e uma olhou para a outra.

– Nossa, eu que levei o susto! – gargalhou Usagi, levando a mão ao peito. – Parecia até que você era um humano gritando, gatinho. – E voltou a rir de si mesma.

Por fim, Arthemis apareceu, provavelmente preocupado com o grito. O gato branco olhou para Luna confuso e, então, miou para Usagi.

– É... pelo visto, até você encontrou uma namorada, né gatinho? – Usagi acariciou a cabeça de Luna. – Será algum sinal pra mim...? – E suspirou.

Os dois a observaram entrar em silêncio. Após, Luna também suspirou.

– Você também pensou que ela tinha lembrado, né? – perguntou Arthemis. – Eu vim correndo todo animado e quase estraguei nosso disfarce.

Luna deu um miado bem leve e pulou até o telhado de cima da casa, de onde podia ver Usagi chegar a seu quarto em segurança.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

Usagi desceu apressada para a reunião que Shin Saitou promovia no mesmo restaurante café do outro dia. Makoto já estava lá sentada e a chamou para seu lado.

– E aí? Como foi com os pais dele!? – perguntou instantaneamente.

Após rolar os olhos, Usagi deu um resumo. Acrescentou ainda que estava certa de poder resolver tudo, mas a mãe acabara de lhe fazer uma ligação para avisar que os papéis do casamento já estavam em sua casa, esperando sua assinatura.

– Papéis? Mas já!? E a festa?

– A senhora Chiba sugeriu que cuidássemos das burocracias e depois planejássemos a festa com calma.

– Mas, Usa... Assim que você assinar, já estará casada. Não é como nos filmes em que tem que ir ao altar, dizer sim...

– Eu sei! – Usagi afundou a testa nos braços. – Ainda não acredito que ele simplesmente já assinou tudo. Realmente, eu fico é irritada! – Fechou com força os punhos até sentir as pontas de suas unhas lhe incomodarem.

Makoto estava passando a mão em suas costas quando um dos rapazes do departamento de ambas reclamou com Shin que eles deveriam comemorar contratos em bares, não cafés.

– Bar não, por favor... – protestou a moça com voz baixa, apenas para Usagi.

– Ué, você bebe normalmente, né? – perguntou erguendo as sobrancelhas.

– Não mais! – Makoto olhou ao redor, como se conferindo se alguém estaria ouvindo a conversa. Então, abaixou a cabeça bem perto da amiga e se explicou: - Lembra do goukon que você não pôde ir? Bem, depois a gente esticou pra um barzinho e aí eu acordei no apartamento dum cara completamente pelada! Pe-la-da. Esse cara... nem era do goukon. Duvido que ele fosse universitário, só se for professor! Se bem que ele me lembra de um ex-namorado meu... – Makoto sorriu distraída, mas logo pareceu lembrar-se de o que falava e balançou a cabeça, como se estivesse desaprovando a si mesma. – Ele até me ofereceu café e foi supergentil, mas eu saí disparado de lá assim que me vesti. O que deu em mim? Eu não bebo isso tudo pra ter amnésia! Será intolerância a álcool?

Uma moça loira interrompeu a conversa; era a mesma garçonete em quem Shin ficara de olho na primeira vez em que a trouxera ao local.

– Aqui está seu pedido, desculpa pela demora. – A moça sorriu e começou a enumerar cada item para depois pô-los na frente de Usagi. – Tenha uma boa refeição.

Usagi e Makoto observaram não a garçonete sair, mas o olhar distraído que seu superior lançava à jovem. Em seguida, riram.

– Ele não poderia ser um pouco mais discreto? – cochichou Makoto.

– Ou só convidá-la logo...

– Convidar quem? – Shin perguntou, olhando para as duas diretamente. Apesar de não estar bem a seu lado, ele não estava exatamente no local mais distante da mesa, formada por vários funcionários do mesmo departamento e alguns de fora.

– Ih, desculpa, chefe! – respondeu Makoto, mesmo não parecendo nem um pouco arrependida de nada. – Só estava falando sobre o casamento arranjado da Usagi.

A própria sentiu-se congelar.

– Ué, era segredo? – perguntou Makoto, francamente confusa com a reação.

– Casar? É verdade isso? – Shin pareceu interessado.

Ao sentir todas as atenções desviadas das conversas paralelas para ela, Usagi assentiu com hesitação.

– Algo assim. Bem, eu acabo de conhecê-lo. Não é nada certo...

– Mas você vai deixar o emprego? Seria uma pena, não é nossa funcionária mais brilhante, mas todos gostamos muito de você! – Shin sorriu, apesar de Usagi não estar certa se fora um elogio.

– Não vou. Continuarei trabalhando.

– Ótimo! Ah! – Como se lembrasse algo, Shin bateu nas costas de um rapaz loiro sentado a seu lado. – Por que não fala com o Jadeite aqui?

Usagi só havia visto aquele homem pelos corredores ou na cantina do prédio. Tudo o que sabia era se tratar de mais um dos estrangeiros contratados pela empresa. Provavelmente, também trabalhava em contato com estrangeiros de outras empresas ou algo assim.

– Comigo? – Falando com sotaque óbvio, Jadeite olhou confuso para ambos.

– É, você podia fazer a cerimônia da Usagi com desconto especial, não? – Shin voltou o rosto novamente para ela e se explicou: – A namorada dele mora no templo do avô. – Depois, passou a indicar onde ficava o lugar.

Usagi percebeu já o haver visitado, mas não se recordava de quando. Ao olhar de volta para Jadeite, quase conseguia vê-lo usando roupas de sacerdote.

– Oh e você a conheceu trabalhando lá? – perguntou, ainda tentando se lembrar de ao menos por que estivera naquele templo. Não seria um famoso por algum talismã?

– Eu? – O estrangeiro balançou a cabeça.

– O Jadeite nem é japonês, de tantos trabalhos por que ele iria parar justo num templo? – perguntou Shin, fazendo Usagi perceber como sua pergunta soava tola.

Apesar de ainda conseguir ver um rapaz loiro com olhos azuis como os do estrangeiro à sua frente, Usagi balançou a imagem. Logo passou a se concentrar na comida, já que todos pareciam haver se distraído de seu casamento para começar a perguntar a história da vida de Jadeite até chegar à empresa anos antes.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

Usagi abriu a sua bolsa e tirou dela um envelope branco. Após olhá-lo distraída, estendeu-o até a pessoa à sua frente. Quando percebeu as mãos grossas pegarem o papel, seu primeiro impulso foi de puxá-lo de volta e sair correndo. Mas, antes que Mamoru o percebesse, soltou o envelope. Assim que ele o teve em mãos, abriu-o sem cerimônias, como se fosse mais um contrato qualquer de seu trabalho, e conferiu todas as folhas ali dentro.

– Desculpa pela demora! – A garçonete loira, a mesma de que o superior de Usagi parecia tanto gostar, disse enquanto ditava o que fora pedido e o punha na mesa. Ao terminar, o sorriso da moça mudou. Usagi sentiu-se ficando vermelha, como se flagrada fazendo algo indecente. – Que romântico! Nunca tinha visto papéis de casamento por aqui, he he. – A loira parecia francamente extasiada abraçando a bandeja agora vazia. – E vocês são perfeitos, almas gêmeas. Acreditem, eu consigo cheirar essas coisas. – Piscou com afetação. – Sou como a encarnação da deusa do amor!

– Agradeço pelas palavras – respondeu Mamoru calmamente, repondo os documentos no envelope. Então, passou a tomar seu café.

Usagi assentiu quando notou os olhares da loira sobre si.

– E eu te conheço! Já a vi aqui algumas vezes com aquele homem bem alto. Um que vem sempre. Acho que vocês todos trabalham aqui perto, né?

Ela assentiu mais uma vez.

– Eu me chamo Minako. É um prazer conhecê-la, senhorita recém-casada, he he.

Ótimo, até a garçonete parecia mais feliz que a própria.

– Bem, os documentos ainda não foram entregues e... – A voz de Usagi diminuía a cada palavra até sumir. Aquela situação só piorava.

Ela havia se prometido que resolveria tudo. Melhor, ela vinha se prometendo isso. Mas, no final, tudo o que acontecia era se ver arrastada por sua própria incompetência para a corrente do casamento com Mamoru.

No dia anterior, havia ficado até tarde no trabalho, escrevendo uma longa carta à mão para os pais de Mamoru, na qual pedia desculpas por desfazer o trato.

Após consultar Makoto, elas concordaram ser a melhor forma, em se considerando que a ordem atual era arrumar todos os documentos para se casarem o mais rápido possível e que Usagi só vinha adiando o que precisava ser feito.

No papel, deixava claro que achava Mamoru uma boa pessoa, muito bem criada, e que o filho devia encontrar logo, logo uma ótima noiva para lhes dar belos netos. Ainda, que a culpa era dela própria, por se achar imatura demais para o matrimônio.

Para descobrir o endereço de Quioto, bastou uma rápida olhada nos documentos do arranjo. Em poucos dias, tudo estaria oficial e perfeitamente encerrado. Ao terminar a redação, agradeceu Makoto pela ajuda e depositou o envelope selado na caixa de correio a caminho da estação de trem.

Todavia, aquela sensação de dever cumprido durou apenas até sua chegada em casa, quando viu o fatídico envelope branco pela primeira vez na mesinha de entrada. De início, apenas o estranhara, mas nem o tocara, seguindo para sua janta. Esta até podia ter sido chamada de “a última ceia”, não de sua vida toda, mas de seus dias de solteira. Foi justo ao terminá-la que sua mãe revelou o conteúdo do envelope: as folhas assinadas de notificação de casamento.

– Mamoru deixou há pouco aqui. Ele achava que você já estaria em casa, mas como demorou... Aí disse que marcaria de buscá-los contigo amanhã perto do seu trabalho. – Ikuko sorriu, virando-se para buscar o carimbo.

Usagi olhou com desespero para as cópias da notificação e segurou a caneta mecanicamente, como se seu corpo não tivesse mais alma.

– Querida, eu sei que está indo tudo muito rápido, mas veja isto apenas como formalidade. Ainda faremos uma linda festa pra vocês dois! Lembra-se da descrição da dona Chiba? – Ikuko mostrou-lhe um sorriso confiante. – Ela disse que você terá a festa que quiser, que eles querem realizar seu sonho de noiva. E depois de amanhã é um ótimo dia para se casar, trará ótima sorte!

Ela assentiu, olhando que o documento estava datado para dois dias depois. A letra de Mamoru era bastante diferente da sua: todos os traços eram bem retos e cada ideograma parecia formar um quadrado. Mamoru provavelmente passaria em uma prova de ideogramas chineses...

– Filha? – chamou Ikuko. – É só você carimbar onde está o adesivo, consegue vê-lo?

Claro. Usagi era burra, não cega. Bufou baixo, os olhos fixos no documento. Precisava avisar à sua mãe que nada aconteceria.

– E quem são estas testemunhas? – perguntou no lugar. – Não era para todo mundo estar vendo a gente carimbar? De preferência, pessoas com quem eu me importe?

– São só pessoas que trabalham com ele. – Ikuko, então se virou para a jovem com o rosto sério. – Usagi, ninguém aqui está te obrigando a se casar com ele, sabia? E sabe de uma coisa... – A mãe pegou as folhas e o envelope de cima da mesa. – Essa decisão é grande demais para hesitações. – E começou a guardar tudo no envelope branco. – Da forma como está agindo, parece algum tipo de vítima sendo entregue a força para o sacrifício. Não é assim que se casa, filha. – Ikuko fechou o envelope e o segurou contra o peito.

E não era o que estavam fazendo? Um furacão para que ela rodasse até ficar tonta e fosse carregada até onde quisessem?

Ikuko pareceu bufar intencionalmente para interromper seus pensamentos:

– Olha aqui, Usagi. Os Chiba são uma ótima família, e o Mamoru é um belo rapaz. O único problema que pode ter aqui é você não querer. E, se não quiser, não haverá mais nada. Não olhe para mim assim como se eu fosse a culpada de alguma coisa. Só tentei te apresentar a alguém, e você não estava preparada. Basta dizer não. Sempre tem boca pra tudo e pra isso não teve? Se te forcei foi apenas a conhecer o rapaz; era o mínimo que podíamos fazer. Não deu certo e pronto.

Usagi assentiu após a pausa da mãe, sentindo as lágrimas lhe irem aos olhos.

Era isso? Era o que sua mãe interpretava de sua atitude? Ela era imatura e não simplesmente nova para casar?

Ela não era! Ela já tinha até um emprego; se quisesse, poderia morar sozinha. Sinceramente, devia fazê-lo.

Era tudo muito mais simples em Osaka na época em que a mãe ficara em Tóquio com o irmão. O pai trabalhava direto e ainda viajava em muitos finais de semana, era liberdade quase total. Sem a mãe para ficar perguntando dos garotos com quem ela saía, ou o irmão para vigiar seu peso enquanto ele virava o aluno brilhante de sua faculdade.

Pois bem, fosse qual fosse o motivo, ela havia tido uma proposta de casamento. Mamoru a conhecia antes de assinar aqueles papéis. E ele os assinou. Ela não era encalhada, alguém a quis. Fosse qual fosse o motivo. Era um mérito seu sim. Ninguém tirava.

Então, viu Ikuko começar a se afastar com o envelope. Usagi nunca saberia explicar o que aconteceu, ou melhor: o que a havia possuído. Era como se pudesse ouvir todas as vezes em que fora chamada de encalhada reverberarem dentro de sua cabeça, fazendo-a perder o controle de seus atos. Quando acordou, o papel já estava com seu carimbo e uma resolução estranha de querer se casar havia nascido nela.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

Ao sair do restaurante café, ela seguiu para a estação de trem na companhia de Mamoru.

– E agora? – quase cuspia aquela pergunta, tanta força tivera que fazer para falar.

Todos os casamentos arranjados deviam ser estranhos, mas, no caso dela, sequer conseguia se decidir se havia uma vontade real de casar. Com certeza, possuía alguma curiosidade sobre vários aspectos. E algum interesse; pois, mesmo se sentindo pouco à vontade perto de seu iminente marido, sabia que estava fazendo um negócio único: boa família, aparentemente bom dinheiro já de começo e uma bela herança por vir. Melhor ainda, os pais dele moravam bem longe; não teria que lidar com sogra. E a dona Chiba era um anjo de sogra, então, não devia ser problema pessoalmente.

Para o pavor de Usagi, eram pensamentos positivos como esses que vinham se multiplicando em sua cabeça ultimamente e enterrando os contra o matrimônio.

– Amanhã entrego o papel e começo a resolver os detalhes no registro de família. Acho que a festa deve demorar, né? Eu estava perguntando a umas mulheres do meu trabalho, e elas disseram que precisávamos de, ao menos, uns três meses para fazer algo decente. Minha mãe tinha razão sobre apressar os papéis. – Mamoru levou a mão para trás da cabeça. – Mas, realmente, não entendo dessas coisas. O que te satisfizer, contará com meu apoio. – E sorriu sem olhar para ela.

Seria proposital que ele se mostrava tão perdido agora? Existiria mesmo algo de humano por baixo daquela pessoa que estava lidando tão calmamente com o próprio casamento? Se fosse realmente algum tipo de embaraço aquilo que Mamoru lhe exibia, Usagi tinha que confessar achar isso fofo. No entanto, e se fosse mero descaso? Ele podia apenas estar com pressa de chegar logo em casa e ver algum programa na televisão.

Após cada um passar seu cartão pela máquina da estação, começaram a se despedir.

– Amanhã eu te ligo para dizer se deu tudo certo – anunciou Mamoru, fazendo sinal para sua pasta, onde estava agora o envelope branco. Era quase um atestado de óbito para Usagi Tsukino.

– Certo... E, com isso... estamos casados? – perguntou, não conseguindo impedir o rubor.

– Algo assim. – Mamoru baixou a cabeça. Lá estava, mais um sinal ambíguo. Estaria entediado e sem o que dizer ou...? – Mas ainda tenho que entregar tudo, né? Então, pensamos na mudança e depois procuramos nosso apartamento mesmo... Como o que minha mãe já disse no sábado. – E lhe mostrou um sorriso.

Usagi assentiu, ela com certeza estava sem jeito.

– Usagi... – Mamoru agora a olhava sério. Era quase parte de outra vida a época em que ele se recusava a pronunciar seu nome, apenas a chamando de apelidos pouco felizes. – Seus pais... eles não estão te obrigando, né?

Ela se assustou com aquela pergunta. Como ele foi falar isso àquela altura do campeonato?

Um alarme tocou alto em sua mente. Claro que era tudo uma péssima ideia, como aqueles dois podiam funcionar como um casal?

Mas os papéis já estavam assinados, e Usagi começava a aceitar a ideia mais que negá-la. Afinal, Mamoru era bonito. Um tanto nerd, fechado demais. Impossível de se conviver se ela fosse levar todos os seus padrões a sério – o que ela nunca faria, mas muitas mulheres sim, o que explicaria seu problema em encontrar alguém. Contudo, tirando todos os defeitos... Usagi começava sim a gostar da ideia de fazer a própria vida e, quiçá, poder fofocar com as mulheres casadas de seu departamento.

Em suma, aquela não era a melhor hora para Mamoru mostrar que até ele estava em dúvida sobre um negócio já fechado. Não mesmo. Até porque, se alguém iria rejeitar, seria ela a ele! Ele era o nerd que ficara encalhado até agora. Usagi estava casando até cedo demais, por opção própria.

– Não são seus pais que estão? – retrucou ela para Mamoru, passado o susto, mas não a indignação.

– Não vou negar que você não estaria no topo da minha lista. – Ele sorriu com alguma afetação.

Usagi fechou os punhos.

– Mas está sendo divertido – prosseguiu ele. – Parece uma ótima ideia. Então, eu realmente quero ir até o fim com isto. – Seus olhos se focaram para longe dela.

Ao olhar para trás, percebeu que Mamoru estudava o painel eletrônico com os horários de saída dos próximos trens.

– O seu trem é o próximo, - disse-lhe.

Ela aquiesceu.

Uma recordação viva da última despedida deles formigou-lhe nos lábios. Seu corpo estava consciente demais daquela proximidade, de cada movimento do outro. Será que o rapaz à sua frente também pensava nisso enquanto observava o movimento intenso de pessoas ao redor? Ao menos, Mamoru parecia querer lhe dar outro beijo de despedida. Usagi sorriu, decidindo que era assim que ela pensaria naquele momento e deu um passo para trás.

Era melhor se apressar se não quisesse perder o trem.

– Até am-

O beijo que lhe tapou a boca foi tão rápido que seus lábios continuaram a pronunciar as palavras, apesar de sua mente não processar nada por um momento de apagão total. Quando os pensamentos de Usagi começaram a voltar, sua primeira reação foi olhar ao redor. Ninguém parecia haver visto nada, mas eles poderiam só estar fingindo, né? Ela mesma fingiria isso se visse um casal se beijar em plena estação de trem.

Após notar que nunca saberia e que também não importava, – nem fazia nada errado, aquele era seu marido! – a jovem forçou-se a encarar Mamoru com uma carranca. Forçou-se, porque ainda estava indecisa demais quanto ao que sentir para estar brava.

Ao fazê-lo, a resposta do outro foi no mínimo inesperada. Nenhuma explicação ou pedido de desculpa. Ele simplesmente pegou seu pulso e a puxou para um corredor não tão próximo dentro da estação e que levava a uma lojinha já fechada, um pouco escondida por placas. Antes que o próprio voltasse a beijá-la, Usagi foi quem prosseguiu.

Era surreal. Aquele era seu terceiro beijo em toda a vida e ela o fazia como se os lábios de Mamoru fossem parte de seu território. Todos os movimentos estavam tão sincronizados que, mais que ensaiados, pareciam rotineiros. Mas uma daquelas rotinas que o corpo aprendera muito tempo antes e não pudera seguir um longo período.

Era isso? Como podia ter saudade? Elas já se beijaram antes, mas Usagi mal podia lembrar como o fazer, muito menos sentir saudades. Mais que surreal, havia algo de errado em como beijar aquele homem era o que parecia mais certo.

O perigo. Era isso que a excitava, né? Por mais inconspícuos que estivessem, nada impedia que outra pessoa achasse o lugar. Por isso, ela o queria tanto? Tinha que ser algo assim. Ou talvez houvesse sonhado com aquilo... Ela vinha tendo sonhos estranhos, dos quais não conseguia se lembrar direito quando acordava. Será que era uma pervertida que vinha sonhando em beijar Mamoru todas as noites desde aquele primeiro encontro? Foi isso que a fizera querer casar-se com ele?

Qualquer que fosse a resposta, Usagi queria mais. E a pressão que o corpo do outro exercia sobre o seu era mais que indício de que Mamoru também queria. Mais. Mais. Havia como se beijarem ainda mais grudados? Usagi custou a assumir para si mesma, mas, se houvesse alguma parede à vista, ela se jogaria contra ela para ganhar mais apoio e poder ficar ainda mais perto do outro.

O que estava acontecendo com ela? Era isso? Era isso que significava querer... fazer aquilo com alguém? Ela nem conseguia pensar direito no que era, mas... mas...

– Usagi... – Mamoru, que vinha beijando-lhe o pescoço, subiu a boca à sua orelha e, entre mordiscá-la de leve, começou a sussurrar algo que só em sentir o vapor quente em sua nuca, ela já sabia o que seria.

E ela ia aceitar. Qualquer coisa que pudesse apagar aquele formigamento em seu corpo.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

Estava sentada em frente ao fogo sagrado do templo; algo muito ruim estava acontecendo e ela precisava consultá-lo, perguntar quem estava causando todo o desastre. As chamas começaram a arder cada vez mais, faziam seus olhos arderem, mas ela não os fecharia. E uma imagem se revelou bem lá no meio.

Uma pessoa de costas, vestindo roupas de sacerdote xintoísta: uma veste de linho branco por dentro de uma calça larga azul ou verde claro. Agora ela caminhava decidida até ele, não havia mais fogo. E apontava. Incriminava-o, era culpa daquela pessoa.

– Eu já te desmascarei! – gritou para o homem, apontando-lhe o dedo.

Ele se voltou e a jovem sentiu seu corpo ser puxado, sugado para dentro de um buraco negro, para a escuridão.

– Agora que sabe a verdade, terei que eliminá-la!

Mas Rei já não estava mais lá.

Sentou-se em sua cama, mas custou-lhe a afastar o som das risadas de sua mente. Elas continuavam. Era também como se ainda estivesse sendo puxada pelo buraco negro. Rei segurou os lençóis da cama, tentando agarrar parte do colchão junto.

Era um sonho, nada mais que um sonho. E um até cômico! O que Jadeite estaria fazendo com roupas de sacerdote? Estranhamente combinável de uma forma sexy. Mas Rei sequer conseguia se divertir com a lembrança. Sua pele, que ainda estava arrepiada, tremeu ante a imagem dos olhos de gelo que o loiro lhe lançara durando o sonho.

Olhou para o lado onde o original dormia pesado e tentou se aninhar contra seu corpo, mas se sentia repelir o namorado com toda a força.

Foi só um sonho, repetia-se. Um pesadelo, mas nada que fosse real. Jadeite tinha olhos azuis, mas não porque era um demônio capaz de trazer infortúnios. Ele era estrangeiro apenas. Nenhuma explicação paranormal.

Ela se levantou por completo e procurou por suas roupas. Era melhor pegar logo um táxi e voltar para o templo do avô.

Continuará...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Minha Vida Existe Para Viver com Você" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.