O Tesouro de Curtner escrita por Juu Seikou, Sr Oculto


Capítulo 1
A Carta do Capitão Curtner


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem.
Fiquem à vontade para comentar.

Enjoy.



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Essa é a história de um ladrão que obteve sucesso em seus planos. Pelo menos, na maioria. Eu sou Curtner e, por todos esses anos que me pertencem, já fui um ladrão de mercadantes, ladrão de joias, pistoleiro, assassino de aluguel, pirata e mercador. Atualmente, sou apenas um velho rico, morando isolado no meio de um dos reinos da Europa.

Irei narrar com detalhes — só os mais importantes, é claro — o melhor dos meus escapes e o melhor dos meus golpes. Mas isso não é um simples relato, porque sei que logo vou morrer e, para o “Grand Finale” do melhor dos meus golpes, essa é minha carta de morte. Desde ontem, a minha tosse tem estado pior do que nunca e agora estou mais do que esgotado. Sinto que não passarei dessa semana e, por isso, estou mandando a solução desses meus crimes para quem, anos atrás, estava encarregado de me prender: Policial Ruther, Policial George e Detetive Hansel. Vou enviar a carta assim que terminá-la, e ficar sozinho com meu ouro, esperando por minha feliz morte.

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Certo dia, um grande amigo foi visitar-me, lá no Vasto Reino de Tufurium, onde eu morava numa casa um pouco afastada da cidade do porto em que eu trabalhava. Nada que meia hora trotando não resolvesse. Storng, meu amigo dos tempos de pirataria, me pegou quase na saída para o bar, aonde geralmente íamos nos sábados à tarde para conversar com alguns marinheiros, esperando para partirem em direção à próxima cidade. Convidei-o para entrar e se sentar, perguntando qual o motivo da repentina visita.

— Apenas queria vê-lo, amigo. Faz tanto tempo desde que nos vimos pela última vez. E isso foi na partilha do tesouro, quando acabávamos de tomar aquele navio e pegar todo ouro que ele transportava. Puxa, até alguns dentes da tripulação! — e soltou uma gargalhada que fez a cadeira ranger medonhamente sob seu peso. É claro que o acompanhei, rindo também, porém a conversa de um pirata, quando começa falando de ouro, não é bom sinal e isso me deixou apreensivo. — Daí, dividimos aquela troça toda, você ficou com a maior parte e fomos todos morar fixos n’algum reino, tomando o disfarce de mercadores ou fazendeiros. É claro que temos negociado, eu e você, mas nunca chegamos a nos encontrar. É escravo pra lá, marinheiro pra cá, capitão como intermediário… E finalmente nos reencontramos! — concluiu, arranhando a voz, como costumava fazer na frente dos reféns dos navios.

Não deixaria chegar onde meu amigo pretendia. Ainda que me fizesse ficar nostálgico, o que, em verdade, era bem difícil.

— Storng… — repreendi-o. — Isso não está me cheirando bem. Você não veio até aqui só pra me visitar, não é? O que aconteceu? Sua esposa morreu, foi? — obviamente, provocava ele. Nenhum de nós era casado, não dividiríamos nosso ouro com ninguém, nem o gastaríamos com quem quer que fosse, a não ser nós mesmos. Isso juramos quando pegamos um navio com mais de quinhentos quilos de ouro.

—Ah, Curtner… — alongou, aborrecido e amargo. — Você não se deixa enganar. Tolice! Claro, sempre arrogante e egoísta demais para se deixar enrolar por qualquer um. Ainda mais por um pirata com quem trabalhou mais anos do que seria recomendável.

— Achou mesmo que eu ia cair nesse velho truque? — rebati. — Eu mesmo já o fiz tantas vezes. Da próxima vez, invente uma desculpa melhor para me visitar — após uma pausa, gritei a frase, como se o xingasse do pior dos nomes: — Pois saiba que meu ouro também acabou e antes mesmo do que o seu!

— O seu ouro acabou? — cuspiu a última palavra. — Ha! Não vem com essa. Logo quem estava com a maior parte! E quem tinha mais amor pelo ouro do que pela própria vida! Deixou-o acabar assim tão fácil, tão rápido?! Uma ova. Não, duas! — Storng tinha vindo com o discurso preparado. Estava respondendo rápido demais, dobrando-me rápido demais. Não fui um bom capitão à toa. Era hora de dar um basta naquilo.

— Vai me chamar de mentiroso? — ergui-me do banco de quatro pernas e me aproximei dele, o rosto fumegando de raiva. Mesmo que estivesse mentido, ninguém tinha o direito de me chamar de mentiroso. Maior que minha sina pelo ouro, era o meu orgulho de capitão e tirei proveito disso para cortá-lo antes que levasse a melhor. Saquei uma pistola vermelho e chumbo do coldre e encostei bem no seu coração. — Repete!

— Não. Não te chamei de mentiroso — respondeu, baixo e rápido, sem olhar para a arma. — Apenas disse que, sem a menor dúvida, o seu ouro está escondido em algum lugar e tudo que te peço é um caixote pequeno. Preciso de investimento para recuperar o que perdi num mau negócio.

Guardei a pistola, mas continuei de pé, bem próximo dele, que também se levantava, com um olhar seríssimo e, de certo modo, até educado. Ah, o que uns anos fora do mar não fazem! Se fosse um tempo antes, tinha puxado o gatilho do banquinho mesmo.

— Bastardo! Não vê que falo a verdade? Olhe para minha casa! Vá olhar meu armazém! Verifique meus navios! Tudo mal cuidado, gasto. O armazém está pobre e minhas exportações já não têm nem metade do valor que deviam. Acha que também não fiz maus negócios? — berrei em seu ouvido. Acalmei um pouco minha voz – bem pouco – e continuei, sentando-me de volta no branquíssimo banco, fazendo um aceno com a cabeça para que ele também voltasse ao seu lugar. — E nem por isso saí pedindo ajuda da parte dos outros para me reerguer! Usei quase tudo que tinha e, fora você, só tenho mais um bom negócio, que também tá indo pro saco — enfatizei as duas últimas palavras. Na verdade, não era bem aquilo que estava ocorrendo no armazém. Os reinos do Oeste e do Sudeste faziam negócios cada vez mais lucrativos com Tufurium e era eu o intermediário que recebia e enviava qualquer mercadoria, mesmo os menores feijões. Porém, como Storng não sabia desse pequeno detalhe e minhas coisas estavam mesmo precisando de uma bela reforma, a mentira cairia-lhe muito bem.

— Oh, raios! —fazia esse resmungo há anos. Significava que se dava por vencido. — Isso é tudo? Posso ir à vontade ao armazém quando sair daqui e vou ver toda essa “miséria” que estás falando?

— Não só pode, como o levarei lá, assim que acabarmos essa discussão aqui — desafiei-o, sabendo que não mais duvidaria de mim. Por sorte, um navio levara a grande parte da mercadoria que estava estocado para o Sul e o local, agora, não tinha carga em demasia. — Aliás, se estamos os dois no mesmo barco-sem-fundo, não vamos brigar pelos remos, não é? Não faz sentido!

— Está bem… — falou, com certa insegurança. Bufou e disse: — Mas, já que estamos reunidos, vamos nos divertir um pouco, que acha? Sair, andar pela cidade mais bem vista por todo o Reino de Tufurium, ir a alguns bares ou coisa assim, hã?

— É, pode ser — percebi que ele mudou de assunto rápido demais. Outro perigo na conversa de um pirata: significa que está planejando algo e que o fará por suas costas. No entanto, escondi tão bem o meu ouro que seria impossível descobrir onde estava. Muito suspeito. — Vamos. O primeiro gole vai ser aqui, para relembrarmos nosso companheirismo, depois dessa discussão toda! — e saí da sala para pegar dois copos e a garrafa com a qual só brindava com quem não confiava. Outra precaução que se deve tomar na fala de um pirata: se aceitou a mudança de assunto tão rápido assim, ele com certeza tem seus truques para acabar com você.

Enchi os copos até a borda e viramos tudo de uma só vez. Atiramo-los pela janela e saímos para festejar, ao nosso modo tão nosso. Antes de mais nada, mostrei-lhe o armazém. Depois, enchemos a cara no bar mais sujo e mal frequentado da cidade — já o conhecíamos muito bem — e, após quebrar algumas cadeiras e costelas, fomos embora sem pagar nada, nos dirigindo para uma feira-livre.

Aquela muvuca fedia a peixe e frutas passadas, trazidas das colônias de Tufurium, Charnezca e Grande Stein, além do mau cheiro de madeira-úmida e areia, presente aonde quer que se fosse naquela cidade. Quebramos muita coisa e levamos tudo o que podíamos carregar, até que a polícia veio, a cavalo, e entortamos indescritivelmente o caminho até o salão de jogos.

No salão, fizemos tudo o que tínhamos direito e, mais uma vez sem pagar por tudo o que quebramos, voltamos para minha casa. Lá, após relembrar algumas histórias — deixando o ouro de lado — despedi-me de Storng e afundei na cadeira, cansado. Há quanto tempo não fazia tudo aquilo?

Deixei meus pensamentos conduzirem-me para mares distantes, lembrando daquela vez em que, logo no começo daminha vida como capitão, decidi cruzar os mares além das costas das colônias e descobrir novas terras, que só eu soubesse como chegar. Contudo, um navio oficial do Rei me seguiu e fui preso pela primeira vez. Tudo por que tinha chego ao que hoje chamamos de Reino de Vetzztrudel, reino onde Storng estava instalado para comerciar com seu ouro, agora perdido em maus negócios… Era quase romântico relembrar toda essa história…

De repente, um pensamento me ocorreu. “Ouro do Storng?! Meu ouro!”. Quase me esqueci de que o desgraçado faria uma tentativa de roubar meu ouro assim que saísse de minha casa! Maldito, réprobo!

Pelo tempo que divaguei depois da saída dele, o otário já devia estar bem avançado no que quer que tenha pensado. Mas, com certeza, ainda não chegara ao ouro. Abri uma fresta da cortina da frente e vi a estrada de terra completamente vazia. Olhei pelas frestas da madeira à direita e à esquerda da casa: apenas mato. Decidi que seria seguro sair pelos fundos. Peguei minha pá e, certificado de que o cartucho da pistola estava cheio, abri a porta e avancei pela escuridão. Por um tempo, só ouvi os bichos na sua sinfonia noturna e minha calça roçando nas plantas, conforme andava.

Cheguei ao local. “Dois passos grandes à frente, dois miúdos à esquerda, três normais para direita e mais três para frente. Um para a direita, dez bem longos para frente, dois miúdos para trás. De frente para o leste, cinco passos adiante, um meio giro, mais cinco de lado para a esquerda e um bem longo para trás. Apenas mais três passos para a esquerda e um à frente e pronto.” Comecei a cavar, no mato escuro que se me mostrava. Passados uns dez minutos, achei o que queria. Não sabia quanto precisaria para conseguir acabar com o plano do traíra, portanto, peguei cinco barras de ouro, três quilos cada, o que significavam que eram do tipo mais alto que tinha em meu tesouro. Não podia ser pego justo agora que percebi o que Storng queria, na verdade.

Levantei-me após tapar o buraco, sabendo que estava sendo observado de longe pelo amaldiçoado pirata. Esteve me acompanhando este tempo todo, girando sua arma, ansiosamente. Esqueceu-se de controlar direito a respiração, enquanto contava meus passos. Seu revólver piscou uma ou duas vezes sob a Lua enquanto eu cavava. E sabia que, assim que me virasse, daria de cara com uma bala bem no meu coração, ou minha testa.

Posicionei as barras, bem empilhadas e coloquei-as de modo que, quando virasse, elas ficassem entre mim e Storng. A pá estava bem segura no meu braço direito, esperando com sofreguidão, desde cedo, para ser usada com outra finalidade, além de cavoucar a terra. Virei de modo despreocupado e, quando ouvi o ricochete, bem na ponta da barra próxima ao meu olho, larguei-as e segurei a pá com as duas mãos, correndo em direção ao traidor, que, por sua vez, demorou a entender o que se passava e levantou quando eu já tinha cruzado metade da nossa distância. Péssima sorte contra um bom matador.

Atirou de novo, mas não me atingiu e, antes que pudesse disparar outra vez, eu já estava próximo o bastante para acertar-lhe o pescoço. Storng deu um forte solavanco para frente e bati com força o metal na sua nuca. Ele caiu, rolando para o lado. “Desmaiou”, pensei, “agora, a melhor parte do meu plano começa!”. Se eu houvesse usado a pistola, teria grandes chances de errar, porém, com uma arma inesperada e de curto alcance, a margem de erro era bem menor. Peguei as barras de ouro e levei-as para casa, junto com a pá. Voltando a Storng com o cavalo mais veloz de meu celeiro, coloquei-o nas ancas do animal, montando novamente, e parti rapidamente para o píer mais alto do porto. Iria jogá-lo ali, de barriga para baixo, com o nariz dentro d’água, e deixá-lo se afogar, desmaiado. Acordaria com a risada do Demônio, dentro de seu caldeirão, sendo espetado por seu afiadíssimo tridente. Gargalhei alto com a ideia de vê-lo em tal situação.

Corremos e corremos. Levava comigo um pano molhado com uma solução para mantê-lo desacordado, isso se ele viesse a acordar, o que eu duvidava. Era mais provável que o cavalo empacasse, feito um burro orelhudo. Chegamos ao píer, fundo o suficiente para que se afogasse, engolisse água e afundasse— ou, até mesmo, fosse levado por uma forte corrente que passasse por ali, sem que ninguém o visse. Ainda faltavam três ou quatro horas para o Sol nascer e ninguém estava à volta, clima perfeito, escuridão total, agora com a Lua encoberta por nuvens maciças. Desmontei e tirei o idiota do lombo de Lépido, indo bem para a pontinha do píer. Idiota, sim, porque esperava me vencer com truques, armadilhas e planos que já usávamos há tanto tempo como ladrão e pirata — e ainda malfeitos! Faça-me o favor! Olhei para baixo: pelo menos três metros de queda. Joguei-o e ouvi o barulho da água se espalhar pela noite. Notei que precisaria de um galho bem comprido, para evitar que o corpo virasse e o homem sobrevivesse.

Quando dei meia-volta, procurando, vi uma pessoa passando pela estrada, em direção ao farol. Parei. Verifiquei Storng, de rabo de olho, e certifiquei-me de que sua grande barriga estava dentro da água, que ia de lá pra cá, fazendo pequenos barulhinhos, deixando-me mais tenso. Não pensei na hipótese de ser visto, grande falha no plano. Larguei tudo como estava, montei em Lépido e partimos. O estranho podia ter visto. Todavia, era provável que não tivesse, uma vez não se abalou em seu caminho, parecendo nem notar nossa saída. Mas a escuridão era demais e só se podia ver sua sombra se movimentando. Decidi não pensar mais nisso até o dia seguinte.

Começava, então, uma grande reviravolta em minha vida e voltava a aflorar em mim o sangue pirata, assassino e calculista.

Uma vez em casa, reenterrei o ouro e deitei-me, repassando tudo o que tinha acontecido no dia. Um arrepio varou meu corpo de cabo a rabo. Determinado a não entrar em pânico, virei de bruços e dormi pouco depois. Contudo, minha noite não foi nada tranquila, passando demoradamente, agitada, cortada entre o sono e a consciência. Finalmente me dei por vencido e, quando acordei pela última vez, não tentei voltar a dormir, levantei e fui tomar o café-da-manhã.

“Puxa, nem dormi nada essa noite”, pensei, bebericando um pouco de leite. Saí, afim de tomar um ar, e fiquei surpreso ao ver o Sol já tão alto. Devia ser quase meio-dia! Diacho!

Apressado, saí de casa com a carroça e pus minha cabeça para funcionar: “pode ser que eu tenha sido visto, o que não seria nada bom pros meus negócios e meu disfarce se arruinaria”. Mas, eu tinha que arrancar a informação de alguém, afinal, essas coisas se espalham rápido e pelo menos algum dos meus amigos soltaria (se soubesse algo), numa conversa mais informal. E, além disso, ainda poderia ouvir conversas alheias, na espreita, e ver quais eram os assuntos mais frescos à memória do povo portuário. Principalmente entre as madames e, mais ainda, as escravas, se porventura encontrasse um grupo delas por perto. Sim, essa era a posição correta a assumir no momento. Se, no dia inteiro, não descobrisse nada, era porque realmente ninguém tinha me notado àquela hora ou, pelo menos, não abriria a boca.

O centro era o lugar mais cheio de toda a região, por pelo menos vinte e cinco quilômetros de raio. Várias casas importantes ali se encontravam, bem como lojas, instalações comerciais, vendas, pousadas, bares e alguns bordéis, dentre os becos mais periféricos. Realmente, ótimo lugar para conseguir qualquer informação que se quisesse, bastava ser bem popular ou bem rico. Por sorte, minha pessoa se encontrava muito bem nessas duas posições, sendo não só o mais respeitado comerciante da região, mas também o com fama de uma das maiores fortunas. Não podia apenas tratar do lado econômico, o social era também importante como disfarce para um saqueador de navios, procurado pelos mares desde o longínquo Nordeste, até o sombrio Oeste, onde naveguei, certa vez, com mais de cinquenta prisioneiros sob a ameaça dos meus dez subordinados.

Cheguei à primeira venda, com um pouco de lascas de ouro no bolso direito e algumas moedas no courinho, uma espécie de bolsa, feito com couro de jacaré e coberto com pele de tubarão. Ali se encontravam Mr. Willian, o dono do local, Berta, McHiledem, Grove e Stuart, com sua mulher, Anísia.

— E então, Mr. William? Tem vendido bastante coisas para esses alegres companheiros? Eles me parecem de muito bom humor hoje para terem gasto algum dinheiro — falei, no momento em que ia porta adentro do sujo e mal iluminado lugar, reparando na calça azul-escuro que Stuart usava, como se tentasse engrossar suas finíssimas pernas de rã.

O lugar era bem amplo, mas o balcão delimitava o espaço dos clientes para apenas um corredor, com uma mesa de madeira no canto, três cadeiras de espaldar curvo para trás. Somente Mr. William estava do outro lado do balcão— no qual se apinhavam vários produtos, como alho, pacotes de batatas, doces e pães. Atrás dele, tantas mais mercadorias e alimentos empacotados, de onde veio o guincho de um rato, abafado pelas caixas. Claro que nem tudo que se tinha para vender estava ali, a maioria ficava nos fundos da casa.

—Ah! Há quanto tempo, Curtner, senhor! Produto novo, como pode ver — ergueu uma garrafa que estivera apoiada no balcão à sua frente, colocando um pouco do líquido verde-claro da mais forte bebida que já tive o prazer de engolir. De longe queimava os olhos.

— E nova forma de vender, não? Agora serve aqui mesmo, Mr.? Preferia quando podia levar a garrafa para casa e tragá-la sozinho — virei tudo bem rápido, na esperança de que amenizasse a queimação na boca e na garganta.

— É, os tempos mudam, senhor. São cinco e oitenta, três doses.

— E pelo visto o luxo de beber sobre sua mesinha nova é bem caro! Vou reclamar com o príncipe quando passar para vistoria no meu armazém. Enche aí, vou tomar tudo num gole só. Por honra ao meu sumiço de ontem. Sabe, saí para divertir-me com um velho amigo e acabamos exagerando um pouco. Fomos para o outro lado da cidade — expliquei.

— Vai tomar os dois? — perguntou Stuart, com meia risada, vendo as doses que me estendia Mr. William.

— Você não?

— Ah… — suspirou com pesar. — Will, põe quatro, então. Quem fizer melhor ganha, que acha?

— E as moças darão o veredicto — com uma voz firme, contudo expressando diversão, Anísia levantou da cadeira e prostrou-se entre mim e seu marido.

— Desde que não haja roubo… — Mr. Willian disse, com sua horrível voz, permanentemente rouca, por causa das tantas noites no bar do porto. Bateu mais duas doses no balcão. — Primeiro o desafiante!

Stuart virou a primeira, engoliu e, sem se dar tempo para tremer, logo virou a segunda. Exclamei completamente surpreso. Pensava que pudesse fazer melhor. Pena pra ele.

Peguei uma em cada mão, aproximei os copos devagar à boca e joguei as duas numa tacada. Bochechei um pouco, fazendo escárnio, e engoli depressa, sem a menor tosse.

— Campeão, isso é mais do que certo! — McHiledem finalmente se manifestou, saindo do lado de Grove, que agora dormia em pé.

— Acho que quando dissemos “moças”, isso não incluía você, McHiledem — Berta fez uma careta e continuou. — Mas concordo, Curtner foi melhor que o seu maridinho — dirigiu-se à Anísia. A boa moça era interessada em mim havia muito, porém não poderia arriscar-me a sequer namorar, ainda que sua beleza fosse mais que a de qualquer outra— e era. Meu ouro só para mim!

— É… — Anísia torceu o nariz.

— Não precisa admitir, sei que sou o campeão. E não adianta ir embora, Stuart, foi só um joguinho que faço desde os doze, andando pelos mares.

— Você e seu passado misterioso... — respondeu-me. — Que esconde da gente, porque nunca nos conta nada sobre sua vida antes de conhecer-nos? Não seria nada mal contar uma história ou causo de vez em quando. Quem sabe pode contar-nos sobre seu velho amigo, com quem andou ontem o dia todo.

— Já disse, todos sabem. Não me orgulho do que fiz no tempo em que meu pai era vivo e me levava com ele pelos mares. Só vim conhecer a vida real há poucos anos, meses antes de parar aqui. Quanto ao “velho amigo”, não quero falar nada sobre ele, apenas mais um fanfarrão— pura mentira. Larguei a casa dos meus pais com dez e fui atrás de piratas, com quem naveguei, clandestino. Acabei num reino muito, muito distante e ali comecei minha vida como a conheço. Vocês já sabem sobre meu amigo.

— Não vamos entrar no mérito — McHiledem cortou o assunto, demonstrando sua amizade leal comigo, nascida assim que botei os pés no porto. É claro que, àquela altura, meu ouro já estava seguro no terreno atrás de onde seria meu novo lar e ele, portanto, de nada desconfiava. — Então, Curtner, algo novo para nos dizer ou vai ficar com a mesma ladainha de sempre?

— Olha a educação, estamos com duas damas entre nós. Mesmo que Berta não tenha sido muito cortês. Nada de novo, Hil, apenas a velha história dos navios, do comércio e minha casa. Nenhum boato surgiu ainda. Pelo menos, não que eu conheça — a isca estava lançada e olhe que nem tínhamos começado ainda uma conversa adiantada. Tanto melhor, assim poderia sair dali mais rápido, ir atrás de mais informações.

— Também de minha parte. Já estou começando a ficar magro, sem nenhum boato, nenhuma mentira, confusão… Nada!

— Todos nós, McHiledem — concluiu, tristemente, Mr. William. — A não ser o fato de que Curtner sumiu ontem o dia inteiro, mais nada; e ele já reapareceu, sem nenhum arranhãozinho no corpo, mal-estar ou membro decepado! — riu, um pouco esgarçado. Parou abrupto e percebeu que tinha acabado de ignorar meu pedido de educação. — Oh, desculpem, não estamos muito acostumados a ter a companhia de mulheres na minha venda. Os senhores é que sempre ficam para conversar um bocado, mas há pouco tempo começaram a ser cobrados de suas esposas e as têm trazido desde então. Os tempos mudam e temos de acompanhá-los. Mesmo as conversas não têm sido mais interessantes como antes, a não ser no bar, é claro!

— Isso é fato, Mr. — Stuart falou. — As mulheres criaram um mau hábito geral de conseguir as coisas com chantagens. E de todos os tipos! — lançou um olhar torcido para a mulher. Contudo Anísia nem se abalou. Simplesmente disse, do modo mais educado que pôde:

— Falando nisso, precisamos ir, Stuart. Temos que deixar Berta segura em sua casa e comprar mais algum peixe no porto.

— Está bem. Deixe-me pagar —meteu a mão no bolso da casaca e despejou tudo no balcão. — Deixe o resto para eu beber depois.

E foram-se, sem o menor aceno de despedida, a não ser por Berta, é claro, que sorriu largo até demais. Vendo minha deixa, já tendo captado tudo o que poderia naquele local, resolvi seguir meu caminho. Paguei Mr. Willian e chutei Grove de lado, acordando o rapaz.

— Não beba tanto até que durma, Grove, saiba seus limites — ralhei. — Ainda assim… Quer me acompanhar em busca de algo para distrair, McHiledem?

— Melhor que ficar aqui com esse dorminhoco fedendo a álcool. Até, Will!

— Adeus, senhores! — falou, com breve balanço da cabeça.

Saindo dali, perguntei ao amigo:

— E aonde podemos ir que se tenha bons boatos e gente fofoqueira? Faz ideia?

—Hum… Bar do Sr. Augusto?

— Acho que não, íamos ter que beber alguma coisa, afinal, e depois disso aí… Por favor! — a bebida não tinha descido exatamente como deveria.

— Está bem. Deixe-me ver, gente fofoqueira, bons boatos, chá de primeira e assentos confortáveis. Que tal lhe parece?

— Tentador. Algo em mente? — obviamente, captei a sugestão de primeira, mas uma pequena brincadeira sempre é de bom agrado.

— Barão Ewan. E sua querida esposa Charlotte. Sua amável filha Bethany e seu pequeno irmão Eliot. Todos servidos pelo gentil mordomo Connor.

— Não há família mais faladora em todo nosso pequeno porto de Tufurium! — completei com uma risadinha maldosa. Sentia-me confiante de que, se eles não soubessem de nada, ninguém mais saberia. Não entorno da gente nobre.

Andamos várias quadras eviramos à direita, duas esquerdas e chegamos ao Barão. Assim que atendidos pelo mordomo e transportados para uma ampla sala, com algumas colunas intrincadas, detalhes a ouro, tendo já quatro cadeiras almofadadas sobre um tapete de lã (o mordomo fora buscar mais dois assentos), cumprimentamos o barão e sua esposa, sentando-nos no lugar privilegiado dos convidados.

Antes de mais nada, os filhos foram chamados e o chá servido, com direito a torradas, chocolate e bolinho de chuva. Quanto ao chá, tínhamos três opções: hortelã, erva-doce ou boldo. Conversamos sobre vários assuntos então, mas nenhum digno de nota, apenas as futilidades comuns de fofoqueiros de primeira classe, sobre as ótimas escolas do nosso reino, os ótimos negócios de Ewan, o futuro noivo de Bethany e afins.

Contudo, é claro, o centro da conversa não foi a família em si, mas as outras tantas da região. Logo soubemos que Marieta desquitara-se do comerciante Joel, alegando que este batia nela quase todos os dias, normalmente durante o “sono”. Ainda assim, a mais difamada foi a pobre moça, tendo que voltar para a casa dos pais. Joel, por sua vez, mudou-se para Charnezca, procurando estabilidade nos negócios. Já os escravos do Barão Firenze, estes se rebelaram e tomaram suas estalagens, sem deixar que o dono saísse— ou entrasse — de sua casa pela porta da frente, obrigado a usar a janela do quarto do filho, mais baixa na parte de trás. Firenze chamou a polícia e a cavalaria Real, mas a última uniu-se aos rebeldes e tomaram também a Casa Senhorial, expulsando a família, que passou amorar na casa de pousada do capitão Finter, que a usava apenas nos períodos curtos em que aportava. Ficariam lá apenas tempo o suficiente para arrumarem novas terras, o que não seria difícil com o dinheiro do Barão.

Charlotte discursou, ainda, sobre vários casinhos à parte e o barão Ewan, fomentado pelo filho, narrou toda a aventura de Trevor e seu barco com vinte tripulantes, no maior temporal já visto nos últimos dez anos entre os mares de Tufurium, a caminho de entregar uma carta real ao Senhor das Terras do Ancestral Soberano Valauther Spont. A garota Bethany apenas fez alguns comentários nas histórias dos pais e do irmão — que foram ainda muito além —, mas não com uma cara muito satisfeita. Pelo visto, fora interrompida n’algo em que entretinha-se com prazer.

Quando o Sol já ia-se pondo, McHiledem e eu concluímos que teria sido melhor ir mesmo ao bar, ainda que caíssemos mortos, tamanha bebedeira. Por fim, interrompi o falatório de Ewan sobre a onça que andara caçando e disse que já estava demasiado tarde e realmente, apesar de estarmos nos divertindo com os contos e histórias reais, deveríamos ir embora, porque prometemos a Grove que passaríamos na sua casa para o jantar. No final das contas, o moleque beberrão nos salvou!

Saindo do enfadonho lar, resolvemos ir à pousada do senhor Figg, onde geralmente passavam muitos viajantes com boas histórias, mas nada conseguimos, senão achar um saguão totalmente vazio e iluminado por algumas velas que pendiam em seus candelabros. Por causa da maré alta que surgiu na noite anterior, os poucos que ali se encontravam saíram juntos a pescar alguma coisa, afim de que fosse o jantar comum, preparado pela esposa do Sr. Figg.

Sugeri que fôssemos para o bar, afinal, a que o Sr. Figg ficou muito ofendido e disse que esperássemos num quarto até o jantar. Já era pra lá das sete horas e os viajantes voltariam em tempo curto. Apesar de dispensarmos o quarto, ficamos por ali e logo vinha uma cesta de peixes, que a Sra. Figg pegou e levou para a cozinha, rápida para limpar e fritar.

Não foi um jantar ruim, mas uma comichão no estômago dizia ser impossível que a pessoa que havia me visto já não houvesse espalhado o que viu para uma boa parte da cidade. Ficar ali, num papo de estrangeiros, começou a formar um nó no pescado, que descia agora sem nem mastigar. Tomei um gole do forte vinho e mantive boa aparência, agora que ficamos, seria difícil de sairmos tão depressa.

Acabamos de comer e não esperamos a sobremesa. Alegamos já ser tarde para ficar fora da segurança do lar, principalmente porque hoje desembarcara um navio todo de marujos para passar a noite aportados e não se esperava que ficassem muito no depravado bar do Sr. Augusto. A essas horas, era tratado apenas como Augus.

Porta afora, mais além da rua da pousada, íamos lado a lado, conversando com quase nenhum assunto fixo, guiamo-nos até o cais, onde despedi McHiledem e fingi andar em direção ao meu afastado lar. Precisava, no fim das contas, ir ao bar sozinho. Hil jamais beberia com os navegantes àquela hora e tampouco eu o faria, não fossem eles os únicos que restassem para sondar naquele dia. Se nada encontrasse, voltaria a falar com o povo apenas no dia seguinte— e talvez nem isso.

“E como deveria portar-me lá?” — essa era a grande questão que martelava minha cabeça. Muitos marujos gostam de fazer amigos em cada porto, entretanto, nem todos são bem receptivos. Por outro lado, se apenas sentasse na minha mesa e bebesse de cara amarrada, ouvindo a conversa deles, certamente não iria acabar nada bem, contando com alguns mal-encarados que sempre aparecem. Como então... Se começasse falando com “Augus” minha boa fama escorreria completamente até os pés, aquela não era uma boa hora para me usar de um conhecido como ele, não entre marinheiros. Talvez houvesse mais algum conhecido, ou mesmo dentre os marujos… O que não seria boa ideia, uma vez que só naveguei em honra da pirataria… Afora, minhas viagens de comércio, ramo no qual eles não estavam inteirados…

Já via o arco de entrada do local. Um nervoso como nunca antes subiu-me, até a jugular ficou meio saltada. “Com mil diabos, sou ou não um bom Capitão Pirata?”, finalmente decidi. “Vou apenas ouvir as conversas, bebendo na minha mesa. Se algum idiota vier azucrinar, meto-lhe uns tiros e no resto do cortejo, antes do sujeito abrir a boca! Se vier algum para ser amigo, muito bom, poderá contar-me facilmente tudo o que se passa de assuntos entre os beberrões.”. Entrei convicto e chamei Sr. Augusto num grito incompreensível. Peguei o copo que me estendia com sua mão suja e vestes maltrapilhas do turno e abundei-me na primeira cadeira vazia que avistei.

Diabos, outra vez! Um sujeito estranho estava sentado à minha frente, na mesma maldita mesa que escolhi para descansar o corpo. Agasalhado com panos escuros, de pretos a azuis e vinhos, com cinco ou seis camisas, uma jaqueta vinho forte, lenços entorno do pescoço, um chapéu caído de lado, com aba ampla e reta. Duas luvas grossas, pretas e malcheirosas, além de uma grossa corrente de ferro gasto a pender-lhe do pescoço e duas mais que corriam por ambos os antebraços, visivelmente apertadas. Não dei-lhe mais atenção que a primeira olhadela, cruzei as pernas num ângulo confortável e nem pousei o copo. Fiz questão de mostrar mais interesse no que se passava ao redor de nossa mesa, demorando num quadro ou outro, manchado de gorduras e dedos vermelhos, ou numas vigas quebradas acima do grupo da mesa ao lado, onde vários homens reuniam-se a conversar animadamente e mais alto que guinchos de um porco.

Enquanto isso, ajeitei as minhas calças e estiquei-me um pouco para a mesa cheia, procurando uma frase que pudesse situar a conversa e eu conseguir captar alguma história mal contada ou boato sobre mortes no porto. A mesinha redonda balançou, girando num chute do misterioso homem à minha frente e fui obrigado a olhar-lhe com mais fixação.

— Ah, finalmente teve coragem de me olhar. Precisei chutar nossa mesa até você para conseguir atenção — sua voz tinha um tom um pouco doce, mas era firme e grossa, na medida certa para combinar com toda a sua figura. — O que espera descobrir ao lado, com um bando de bêbados?

Gelei. Até o cinto me pareceu mais apertado e de repente senti tal frio que poderia cobrir-me tanto quanto o estranho que falava.

— Por… Por que pensa que espero conseguir algo com a mesa do lado? — era impossível que houvesse descoberto isso apenas me observando aqueles segundinhos.

— Sua postura. Sua cara transmite tensão, não pôs o copo na mesa, tampouco tragou sequer um gole e, por fim, esticou-se além do normal para ajeitar o couro. Precisa de mais? Oh, sim, e sua expressão ao se concentrar para ouvir a conversa dos amigos do lado foi digna de um quadro: “O Escutador”. E pena que bem nessa hora estivesse se ajeitando, por que deu uma parada muito estranha, qualquer um notaria que estava só fingindo — o misterioso homem estava começando a provocar minha irritação. Óbvio que se fazia de inteligente, contudo, não conseguiria me enganar assim tão fácil. Foi um mero chute, com uma justificativa bem torta. Grande estúpido!

Fiquei mudo. Não por medo ou raiva, somente queria dar um tempo para a próxima ação. Não podia sinalizar demais minha preocupação. Bebi um gole da cerveja escura e finalmente pousei-a na madeira. Olhei no fundo preto dos seus olhos finos.

— Será que agora podemos conversar? — o sujeito perguntou, inclinando a cabeça de lado para ver melhor à semiescuridão das velas penduradas em seus suportes, metros acima, quase queimando o teto alto da taberna.

Dei um suspiro para acalmar e disse, pausadamente:

— Belo discurso. Mas sei que está só tentando pregar-me uma peça. Tudo bem. Sim, estou querendo algo do pessoal aí do lado e é apenas diversão. Não conheço nenhum deles e estava procurando uma brecha para entrar na conversa. Sabe, sua aparência não anima muito à boa companhia.

— Ah, então admite que eu estava certo? — o homem com toda certeza estava querendo pôr minha paciência a teste. Fiz uma careta e balancei a cabeça na negativa. Ele continuou em voz zombeteira, divertida de me colocar naquele tipo de situação vergonhosa. — Não precisa admitir diretamente, então. Tomarei suas atitudes como resposta. Bom, se quer só chegar mais perto e ter uma animada conversa, podemos conseguir isso! Eles são bons marujos e gostam de conhecer gente que mora nos portos. Se os acha boa companhia…

— Portos?! — guinchei, além do meu controle. — E agora deduz que sou daqui do porto?

— Bem… É, mora um pouco afastado, mas… Não vamos nos indispor com isso. Vá lá e junte-se aos companheiros do mar! Sabe? Apresente-se, pague uma…

— Sei bem como fazer isso. — sibilei entre os dentes, levantando para longe daquele sujeito irritante. Só faltava agora saber do meu ouro, também! — Até mais.

— Até, senhor. Não acho que vá querer saber meu nome, mas é… — não fiquei para ouvir e entrei no alto falatório dos marujos, a maioria já embriagada além da conta. E o infeliz estava mais uma vez correto, afogados no álcool como estavam, foi facílimo locar-me na roda e fazer-me de amigo.

Não foi nada emocionante entrar naquele grupo para passar a noite. Uma conversa sem sentido comum e algumas histórias entrecortadas — houve pouco lucro, a princípio, ficando no meio daquela gente, apenas algumas risadas do que se conseguia entender e bebida sem o menor controle de quem quer que fosse. Alguns contos do mar ainda me interessavam e seriam muito bons, se contados com a seriedade que se devia. Não vale a pena registrar nesta carta as conversas daqueles marinheiros e estava pensando em ir embora dormir um pouco, quando um assunto surgiu —um assunto, não. O assunto. Aquele que queria e não queria ouvir desde manhã.

Thomson foi quem iniciou o assunto e contou, por mais incrível que fosse, sem interrupções (próprias ou dos colegas). Falou que o velho Clifford, que tomava conta do farol para os navios chegarem foi quem contou aquilo primeiro, e, na verdade, ninguém acreditava. Ele era conhecido além-mar por ser não só caduco, mas também um mentiroso infernal. Segundo Thomson, Clifford dizia que viu alguém no píer, com um cavalo e um corpo nos braços, indo em direção à água. “E ele jura que ouviu o corpo sendo jogado, com direito a paf, puf e plim!”. Comecei a ficar preocupado. Se Clifford logo contara tudo nos mínimos detalhes, por mais desacreditado que fosse, alguém iria conferir!

Nesse momento, Gunther intrometeu-se e falou que houve até gente besta que acreditou no velho e reuniu um grupo de marujos para dar uma busca. Como eles já esperavam, não encontraram nada além de água, água, água e um pouco de sal. Ninguém viu marca de ferradura, de botina ou nem sinal de corpo algum; Gunther deu um riso sarcástico e tive de forçar um, apesar do desconforto. Para disfarçar um pouco mais, incitei que o homem poderia ter boiado pela água e chegou até a praia e Phill garantiu-me que ele próprio fora um dos otários que caíram na piada do faroleiro e procurou toda a beira-mar, até a praia e o porto. Teve gente que se atreveu a pegar um bote ir procurar mais pro meio e ainda assim não acharam nada, nem a graça da “piadinha”.

Dei um forte e sincero suspiro e soltei: “aquele velho é uma desgraça! Sempre querendo se aproveitar dos outros e olhe que não há uma alma nessa droga de cidade que não o conheça desde que nasceu. Mesmo eu o conheço desde a infância!”. Houve uma gargalhada geral e, tão rápido quanto veio, o assunto se foi. Fiquei um pouco mais e fui embora também.

No caminho de casa, já planejava a morte do velho, tolo, linguarudo, xereta e mentiroso Clifford.

Na outra manhã, ainda remoía o caso em minha mente. Oras, se ninguém tinha encontrado o corpo de Storng, então o plano inicial havia dado certo — ponto positivo, sinal de que realmente afundara e fora levado por alguma corrente. Mas o velho me viu na hora da ação e isso era um ponto negativo, que se somava ao fato de que muita gente já estava sabendo do crime. Visto por outro ângulo, ninguém acreditava em Clifford, graças à sua grande fama de mentiroso; apesar de ser bem simpático, gostava de, volta e meia, pregar uma peça em alguém (e ultimamente estava exagerando no tamanho da gravidade da mentira). Além do quê, também não podiam acusar alguém da morte, uma vez que o homem não identificara o criminoso, estava escuro demais para isso. Bem, certamente eu estava na vantagem. Por um ponto. Bastava marcar mais um e a vitória estava garantida.

“Vamos raciocinar, então…”, pensei. “Quem era o velho? Como ele agia?” Isso é simples. Primeiro e mais importante, morava no farol, onde ficava mais para dormir e, por isso, deixava seus pertences por lá. À custa disso, montou uma espécie de quarto num certo cômodo inutilizado e conseguiu encaixar um fogão e uma mesa no lugar, sabe-se lá como. “Não, pense… Isso não está ajudando, o que saber como ele organiza seu farol vai ajudar a emboscá-lo?”.

Certo, sua única companhia é um guarda, direto da Realeza. Como um só não daria conta de guardar o segundo ponto (depois do píer) mais importante da cidade, sendo que era necessário alguém no local até pela madrugada, eles revezavam entre quatro, dia e noite. “E que mais? Que mais? Isso é bom, mas tem de haver uma brecha… Onde…?”. Sim! Clifford passava o dia, até as seis horas, passeando pela região, conversando com os muitos que conhecia. Quando voltava para o farol, ele despedia o guarda diurno e pedia para que chamasse o noturno, no posto da Polícia Real do Vasto Tufurium, onde ficavam os subordinados do príncipe para pôr ordem na cidade, quando convocados. Nesse intervalo, fica sozinho!! “Uma bela brecha.”

— Senhor, acabo de organizar os caixotes e pô-los na roleta para subir ao navio. Esperamos a descarga ou já podemos colocar as encomendas na embarcação? — meu contramestre despertou-me dos pensamentos sujos e lembrei de imediato que estava há um bom tempo apoiado nas caixas que acabavam de sair do cargueiro recém-chegado.

— As encomendas a embarcar estão seguras e todas não degradadas, machucadas ou nada que as faça perder o valor? — apenas virei o rosto entre os braços, sem levantar-me, ainda debruçado em meu apoio.

— Ótimas, tão bom estado. Como o senhor gosta.

— Se tiver homens suficiente, mande-lhes carregar o navio e pode partir assim que estiver pronto — ergui o corpo e encarei-o. — Não irei nesta viajem, arrumei outro capitão, Jack Finter. É de confiança e pode degolá-lo, se ele te decepcionar, e continue como novo capitão, tenho certeza que não farão motim, se for o caso. Bem, se possível, traga-o inteiro de volta, Francis!

— Certo, então! Em quarenta minutos partimos.

— Que o Grande Stein não lhe cobre muito caro a estadia!

— Até a volta.

Francis virou-se, berrando aos subordinados ordens e mais ordens. Fazendo o melhor que pude para esvaziar a mente de assuntos de morte, por enquanto, foquei no trabalho que tinha a fazer no primeiro dia da semana e deixei para pensar em Clifford outra hora, no conforto de minha casa, onde poderia remoer até achar uma boa solução.

Voltando para o lar ao Sol poente, continuei a maquinar um modo de matar o linguarudo e não achei melhor solução que enterrar uma faca no coração, pegando-o de surpresa, sozinho no farol, saindo antes que algum orelhudo se apercebesse de minha presença. Dessa vez faria bem feito, errar na primeira tudo bem, na segunda, é ser muito incompetente!

Naquele dia, dormi muito bem, antegozando o crime perfeito. Claro, de modo algum o poria em prática logo na outra tarde, precisava, antes, conhecer bem o ritmo da saída e entrada dos guardas e saber se tomavam alguma medida de segurança em sua ausência ou não. Desse modo, durante três ou quatro dias fiquei apenas observando, bem longe, num cume próximo, fingindo olhar o mar. Também conferi no posto se era possível observar o local onde procederia o assassinato de lá, porém a subida em que se encontrava o farol permitia apenas a visão do topo e da luz giratória. Quanto a outros curiosos que me vissem em ação, não tinha muito a temer, podia avistar do observatório qualquer um que andasse ao redor.

Uma vez que a troca dos palermas demorasse, em média, dez ou quinze minutos, tinha tempo até de levar adiante uma conversa com o cadáver de Clifford, se aprouvesse no momento. Percebi que seria uma morte fácil, pois raramente alguém aproximava-se do local ou mesmo fazia uma visita ao velhote. Dei um espaço de tempo e, no oitavo dia depois do que comecei a investigar o terreno, estava mais que pronto para entrar em ação.

Assim, naquele dia saí um pouco antes do armazém e mandei Dennys, um subordinado de confiança, terminar de organizar os produtos e dispensar o resto dos homens. Minha faca estava amolada desde a noite anterior e escondida entre as vestes, quase cantando de tão fina. Não precisaria mais que um golpe de minha nova lâmina, comprada há não muitos dias e, portanto, não seria reconhecida (vinha do reino vizinho). Cheguei ao pé da encosta em que ficava o farol, escondido entre o ignorado matagal, numa área em que nenhuma pessoa fazia questão de visitar, longe da cidade e sua vida de sociedade. A posição era ótima, porque me escondia de qualquer olhar que fosse, mas me permitia vigiar o caminho que o policial usava para voltar ao posto e chamar o do próximo turno.

O Sol ia baixando e logo começou a se pôr. Clifford, a essa altura, provavelmente chegava ao seu trabalho e cumprimentava o segurança, com uma breve conversa sobre o tempo daquela noite ou a sorte que teriam os pescadores no dia. Seguindo em pensamento, via o homem fardado descendo… Descendo… Abri os olhos para ficar alerta e logo passou o guarda, um chapéu cônico não muito alto, uma roupa verde-clara, botas marrons e uma grande lança de ponta de ferro, pintada inteiriça de azul-marinho.

Corri a subida toda, assim que desapareceu de vista. Tirei a faca das vestes e entrei, sem um ofego sequer, pela porta — que sempre ficava aberta, o que me fazia duvidar da qualidade de tais guardas, que nem ao menos trancavam a porta ao sair. Lancei-me pelas escadas e passei pela primeira portinhola à direita, onde ficava o quarto do sujeito, e fui direto para o observatório, achando um Clifford largado e sentado numa cadeirinha de balanço, admirando o alaranjado do céu, chocando-se com o azul-claro mais próximo, que já abria espaço para o escuro. Realmente, uma bela vista, para a última que teria. Andei devagar e um tanto ruidoso, esperando que o estúpido me ouvisse e se virasse. Fosse o que fosse, jamais atacava um homem pelas costas!

Virou e teve apenas tempo de contemplar meus olhos. Num passo, estiquei o braço com velocidade e precisão, cortando a veia mais grossa de todo o corpo, que se localiza pouco acima do coração (sim, já olhei um homem por dentro; não por desejo, é claro, um diabo abriu um companheiro meu certa vez). Ainda com a mão na faca e esta fincada na veia, empurrei Clifford para trás, derrubando-o de costas, espirrando sangue numa pressão inacreditável. Larguei a lâmina deitada sobre o corpo do velho, que agora tremia em violentas convulsões, e virei para sair correndo, tal qual entrei, e voltar para casa, a fim de queimar as peças de roupa em que o sangue respingara.

“Pensando melhor, talvez ainda haja tempo, talvez não”. Aproximei-me do vidro e olhei por todo o chão, tentando identificar se vinha alguém. Como não vi vivalma, corri além das pernas e num instante estava de volta ao matagal. O outro guarda chegava apenas agora. Era bom estar bem longe dali assim que o policial chegasse ao topo da encosta. Fugi pelas árvores e saí numa estrada antiga, que ladeava a cidade. Durante os dias de observação, tinha voltado correndo por aquele caminho, para garantir uma fuga segura, e agora não seria mais difícil que das outras tantas vezes. Respirei fundo, relaxei todo o corpo e entreguei-me ao vento; mais longe, voltei a caminhar e cheguei ao lar tranquilo, que aguardava-me todo final do dia, quando era possível ouvir meu ouro retinindo no fundo de seu esconderijo.

Outra noite bem dormida, tranquila e serena, nada mais me ameaçava.

Para evitar suspeitas sobre mim, ao invés de, costumeiramente, sair do armazém e ir direto para a casa tão afastada da cidade, comecei a visitar os conhecidos, passar umas noites no bar e até andar por um beco ou outro. Não fiz muito, contudo, o suficiente para estreitar as relações certas e manter-me fora de perigo; até mandei uma carta ao Rei, informando o que andava acontecendo no porto e em meu armazém nessas últimas semanas. Tive o cuidado de contar todos os boatos sobre a morte misteriosa de que Clifford fora testemunha, apesar de toda a escuridão, e os mais recentes, que contavam uma possível morte de vingança pelo mesmo assassino, que queria que o velho pagasse por ter contado tudo ao povo do porto e aos marinheiros. Com isso, as suspeitas caíram sobre as pessoas mais improváveis, menos sobre o “Dom Curtner, comerciante”, que informara tudo ao próprio Rei, antes da polícia sequer descobrir que os boatos já corriam soltos na boca do povo. A única dificuldade que tinha, naquele momento, era de segurar o riso quando ouvia as tamanhas baboseiras que chegavam de todos os cantos. Para compensar, rolava de rir pelo chão do meu quarto!

Não havia som melhor do que uma cidade colocando culpa em qualquer um que visse pela frente, sem a menor prova, tudo apenas pela intuição. E como andava ruim a intuição daquela cidade portuária! Ah, sim, e logo arrumaram outro faroleiro para ocupar o lugar de Clifford, bem mais novo e também mais ajuizado, um tal de Laurence.

Devo admitir que foram divertidíssimas duas semanas. Até que outro amigo pirata veio me visitar, Jean.

Ainda nem nascera o Sol, e três batidas e um toque de faca levantaram-me da cama de palha. Pensei ter sonhado, afinal, era o código pirata para avisar grande perigo, sem que qualquer reizinho metido a nos caçar reconhecesse. Esperei um pouco mais, pronto para acender a lamparina, que minutos antes repousava ao lado de minha cabeceira, com fósforos preparados. Uma tossida forçada do outro lado da porta chamou minha atenção; reconheci o modo discreto daquele que me fora subordinado e agora fazia apenas parte de uma lembrança amigável (e não tão bonita quanto gostaria).

— Jean? — abri a porta com estupidez e quase ia-lhe metendo a mão na cara, porém, avistei a faca usada para dar o maldito toque e contive o impulso. Apenas olhei feio através da escuridão e deixei o palavrão mais comprido que conhecia sair de minha boca. — Isso não é hora de se visitar quem quer que seja! E que raio de batida foi essa, tem ideia do susto que me deu? Não ouço códigos piratas há anos e quando escuto tem de ser justo esse?! E ainda pra acordar?

—Sim, esse mesmo e por uma justa razão— sua voz era tranquila e amaciada, como sempre. — Deixe-me entrar e conto tudo o que sei. Corremos perigo!

— Vá, vá. Entre— Acendi a lamparina, pondo-a na mesa. Sentei no velho banquinho e deixei Jean com a cadeira alta. — Conte agora, por que tamanho alarde?

— Nenhum reino é seguro no momento. Conseguiram pegar três dos nossos, já. A polícia está investigando com tudo o que tem sobre nosso roubo — estendeu-me um jornal, tirado de sua capa. A foto do meu oficial estampava toda a primeira página. — Esse foi o primeiro que capturaram e, pelo que sei, ele está entregando um a um para os policiais. Claro que ele sabe dos nossos esconderijos e disfarces. Penso que planeja algo ou quer alguma recompensa pelo ato.

— E os outros dois, quem foram? — minha garganta queimava. Peguei um copo d’água e tornei a encarar o amigo.

— Não sei ainda, nem meus contatos infiltrados souberam dizer. Não estão presos em celas comuns, são celas subterrâneas em terrenos baldios. Cada um está num reino, para não haver dissipação da notícia. Não querem que fiquemos sabendo, querem nos pegar de surpresa. Por isso, a notícia da captura dos outros dois foi vetada em todos os reinos. E sinto dizer que em pouco chegarão a nós.

— Então veio me avisar. Temos que arrumar outros locais e novas identidades, é isso?

— Certo. Quanto mais rápido, melhor. Avisei mais dois de nós ontem e embarco antes do raiar pro Grande Stein e, dali, irei a cavalo para as proximidades. Estarão todos avisados em cinco dias, no máximo.

— Só não se preocupe em procurar pelo Storng. Soube que foi assassinado há umas semanas.

— Certo, mais fácil pro meu lado, assim cruzo Stein inteiro. Preciso ir, meu navio vai chegar logo. Não se meta em confusão e saia daqui rápido como o vento. Se quer um conselho, não leve todo o ouro, vai pesar muito na hora de transportar e… Não é algo que passa desapercebido com facilidade, todos querem uma lasquinha para si.

— Huf. Farei o melhor que puder. — levantando, abri a porta e Jean se foi. Quando saiu, parecia que nunca pusera os pés em minha moradia e que nem desconfiava onde seria.

Sem pensar duas vezes, já sabia o que fazer. Montei um plano de fuga no mesmo dia em que cheguei à Tufurium e, ao longo do tempo em que ali fiquei, arrumei-o nos mínimos detalhes para quando descobrissem o autor do espetacular roubo do maior cargueiro de ouro! Sabia que seria inevitável, portanto, armei-me antes de mais nada.

Era simples e seguro. O único problema é que requeria pelo menos uma semana de preparo. Contudo, eu tinha uma semana, sim, para me arrumar. Afinal, tinha me posto bem aos olhos do Rei nos últimos tempos e, ainda que suspeitas recaíssem sobre mim, o Grand Monarca tenderia a meu favor, até que algo o ameaçasse.

Resumia-se em três viagens ao Reino do Grande Stein, ainda inexplorado, no lado mais Oeste e para lá da fronteira, com raras cidades, pequenas e sumidas. Dividiria meu ouro em três partes e levaria cada terço até o esconderijo, dentro de caixotes lacrados, que se misturariam com outros que eu transportaria. Lá, bastava destacá-los e transportá-los eu mesmo em direção ao novo lar, voltando antes da partida do navio, para retornar a Tufurium e trazer o outro terço.

Em meio à rememoração do plano, dei por mim quando pus a pá na terra para escavar os fundos da casa. O trabalho não seria fácil, mas ainda eram cinco da manhã e poderia chegar atrasado ao armazém um dia só, nada seria afetado. Trabalhei horas a fio, escavando, separando e encaixotando o ouro. Nada de almoço, não, quando estou mexendo e trabalhando para o bem de minhas riquezas, a fome esvai-se enquanto tudo não estiver em seu devido lugar. Perto das quatro da tarde, essa primeira etapa estava pronta e arrumada. Passei todo aquele dia e mais outro ansioso, mas enfim chegou a noite de pôr a segunda parte do plano de fuga em prática.

Ao chegar a madrugada, comecei a agir o mais silenciosamente possível. Peguei parte dos caixotes e pus na carroceria, já atrelada ao meu burro, para levar a carga “a mais” ao trapiche, junto com o resto que seria transportado. Para não haver confusão no descarrego, amarrei fitas vermelhas nas tábuas mais soltas. Desse modo, tomaria as caixas certas de volta para mim, assim que aportasse. No armazém, deixei tudo ao fundo do local, espalhado entre outras encomendas, e voltei para a tão desejada cama, relaxado e seguro de que nada poderia ser de melhor maneira, pelo menos até o presente momento.

Na manhã seguinte, ciente de que meu barco sairia pouco antes do meio-dia, arrumei os utensílios básicos para a viagem e dirigi-me ao porto. Mal cheguei, dei ordens rápidas e gritadas do que deveriam fazer durante minha ausência naquele dia e chamei capitão Finter para conduzir o navio que me levaria; bem como o contramestre Francis e Dennys, nosso novo imediato, nomeado pelo próprio Jack Finter na semana passada. Com boa quantia de marinheiros, fomos sem hesitação para outra normal, tranquila, rotineira e cansativa viagem ao Grande Stein, com o qual comerciava com frequência peixes, feno, farinha, tecidos de linho e outros eventuais produtos.

O mar, seu cheiro impertinente e, ao mesmo tempo, profundo e bom. Sempre o mar fora grande paixão de minha pessoa. Diferente de como estava meu interior, mal passavam marolas, tão branda se apresentava a água. Apenas o balançar e seu cheiro, quase como se estivéssemos num berço gigante. As horas se foram e aportamos com grande segurança e tranquilidade. O mar apagou-se por completo de minha visão.

O primeiro a sair para a terra, acompanhei com os olhos cada caixa que era descida e separei oito minhas, pedindo aos marinheiros que deixassem-nas do lado de fora do galpão, encostadas à parede. Enquanto grande confusão de mercadorias acontecia, fui ao estábulo e tomei um burro, pondo uma carroça atrás dele e conduzindo-o até meus caixotes. Carreguei o animal e partimos por estradas, rumando a Oeste.

No esconderijo, guardei tudo no porão, preparado para receber tais cargas, e quando voltava com o burrinho para o porto, era noite alta. Meia noite, cheguei ao navio e resolvemos partir apenas pela manhã. A volta foi tão turbulenta quanto a ida.

Voltei para casa aos pulos, a segunda etapa fora um completo sucesso! Como a terceira seria exatamente igual, nada haveria de dar errado, portanto, na madrugada daquele mesmo dia, parti com outros oito caixotes de ouro e, no dia seguinte, repeti o mesmíssimo processo. O mar ainda estava calmíssimo e todo aquele dia parecia a repetição da primeira viagem, uma cópia até nos menores detalhes! Claro que, em partes, se devia ao ritmo da vida marítima, que obedecia normas e regras… Porém, como tudo foi um êxito novamente, voltei pulando para casa outra vez.

A quarta etapa não foi diferente, a não ser pelo fato de que ocorreu uma chuva que deixou as águas salgadas bem agitadas, mas foi passageiro e logo desembarcamos com mais mercadorias, e o burrinho foi usado pela última vez. Meus planos eram voltar para Tufurium, terminar com os negócios dentro de dois dias e abastecer-me para a primeira semana totalmente escondido do mundo. Contudo, quando voltava para atrelar o único ser além de mim que sabia do paradeiro de minha próxima moradia, um homem fardado de túnica rosa, com detalhes em verde-limão, acometeu-me dentro da estrebaria, todo agitado, com uma carta urgente para o Senhor Curtner. Tomei-lhe o papel e dispensei o homem, provavelmente, guarda da marinha.

Sem remetente. Curioso, abri com pressa o envelope e dei uma rápida olhada para tentar saber quem enviava com tal urgência e não precisei de dois segundos para identificar a letra de Jean. Sabia, agora, que não devia ser brincadeira e, após lê-la, via o quão importante era o recado! Tratava-se que a polícia já acossava minha pessoa pelo Grande Reino e o conselho do amigo era que me abastecesse no seu armazém e já ficasse ali em Stein, aumentando — além disso — o tempo pelo qual desapareceria em, pelo menos, uma semana. “Isso é informação quente! Jean jamais daria tal notícia sem que estivesse totalmente certo de minha captura, se eu ficasse um ou dois dias a mais lá”, pensei. “É melhor fazer isso mesmo, mas também tenho um armazém aqui e, já que estou abandonando a vida comerciante, não fará o menor mal se pegar boa parte da mercadoria para mim. Certo… Parece que o burrinho terá que me acompanhar mais uma vez pelo mesmo caminho ainda hoje”.

Assim como pensei, o fiz. Peguei cinco ou seis cargas de comida e bebidas e pus na carroceria, alegando que as entregaria pessoalmente, porque assim exigiu o novo comprador (sorte que realmente existia um). Segui direto para o esconderijo, forçando ao máximo o animal, fazendo-o correr para evitar qualquer problema durante o caminho, como pessoas inesperadas, numa hora em que eu não estava acostumado a passar. Cheguei à metade do tempo e fiquei satisfeitíssimo que já houvesse uma cama ali, me esperando, bem como um fogão e tudo o mais que precisaria para a nova vida! Suspirei e senti o ar de madeira nova que exalava meu lar, meu esconderijo tão, tão particular. Jamais seria incomodado novamente.

Quase dormindo, tranquilo, relaxado, ouvi um barulho vindo do lado de fora do casebre, um som estranho no meio do mato. Levantei assustado outra vez, ainda mais alarmado que ao ouvir o código pirata. Uma tensão estranha envolvia o ar, me arrepiava, mesmo que eu não soubesse o porquê. Mas então tive certeza! Alguém se aproximava, sorrateiro, do esconderijo. Quem seria? Será que, com tanto zelo, eu acabei deixando alguma falha no plano?

A resposta veio bem rápida e com uma espada na mão! Entrou o único homem que não esperaria a visita, com um rosto distorcido e magro, cheio de ódio e desprezo. Abriu a porta num chute e botou-me a lâmina no pescoço, ameaçador, colérico.

— Storng! Como pode... — o susto era tanto que não consegui reagir ou sequer concluir a frase.

Minha sorte era que ele também estava entorpecido pelos seus sentimentos raivosos e preferiu cuspir na minha cara a puxar o cabo da espada, acabando comigo. O toque da saliva nos meus olhos despertou a reação e chutei-o de volta pela porta, evitando um possível ataque fatal. Mal tive tempo de recuperar-me do susto e tentar compreender o que se passava, Storng retornou, gritando ininteligíveis expressões de ódio. Quando recuperou a capacidade de fala, estava a dois passos de mim, a espada em mãos, xingando-me de tudo e um pouco mais. Por minha vez, conferi se o coldre estava volumoso e, mais aliviado, resolvi enrolar um pouco o otário, antes de dar o golpe final.

— Como conseguiu sobreviver? — cortei os insultos dele. — Mais importante, como chegou até aqui?!

— Como sobrevivi? Como cheguei aqui? — o sarcasmo saia cuspido do âmago do amargurado homem. — São perguntas excelentes! Excelentes pra mostrar que sou superior, pra mostrar que posso te matar com facilidade e ficar com todo seu precioso ouro! Será um prazer esfregar na sua cara como tudo sempre esteve ao meu favor e não ao seu!

— Pois então, mostre-me! Quero ver onde errei no meu minucioso plano ao vir para cá — desafiei, acrescentando mentalmente: “e saber como raios sobreviveu ao afogamento!”.

— Sobre a sua tentativa de me matar, foi realmente um fiasco, do começo ao fim! Não percebe que jamais daria certo? A primeira onda que veio já me virou para cima e a segunda me acordou de imediato, dando chance para a sobrevivência. Sabe por que vou te matar com essa espada? Porque ninguém fica vivo se não tiver cabeça! Quando quiser matar alguém, faça como eu, certifique-se de que fez isso direito!

— Está dizendo que sou incompetente?

— Estou! — vociferou. — E não foi muito difícil recuperar-me do seu golpe, uma paulada na cabeça não faz muito estrago, afinal — desdenhou. — Mas eu sabia, se voltasse rápido para revidar, as chances de vencer seriam baixas, queria que pensasse que estava morto! A surpresa do desprevenido sempre foi sua melhor arma, no tempo de pirata, não foi? Nada melhor que usá-la contra você!

— Por isso, quis esperar o momento certo. — dei corda para que não parasse por aí e mostrasse o ponto falho na minha vinda para o Grande Stein. Estava curioso, pensei não ter deixado nada para trás!

— Sim. Aquela vez, no bar. O homem todo encoberto de panos e correntes — arregalei os olhos. Era ele! “Bastardo de uma figa!”. — Achei que ali seria a chance correta e esperei que se embriagasse. Mas, não, pelo visto, você queria somente ficar conversando com um bando fedido de bêbados para tentar saber se havia sido visto. Deixei que voltasse para casa, não queria ser precipitado.

“E bastou apenas continuar à espreita e o momento perfeito veio junto com Jean. Ouvi toda a conversa. Até o seu incrível monólogo depois que ele foi embora. Ah, você falando como um parvo o seu tolo plano em voz alta, conversando sozinho, feito maluco... Me ajudou muito, se quer saber — então era aí que estava a falha! Jamais suspeitei que poderia ser vigiado na minha própria casa. Prosseguiu, debochando: — Não esperei para vê-lo desenterrar o “precioso e querido ouro”. Fui direto para seu armazém e localizei a parte separada de caixas que sairia para Tufurium. Quando certifiquei-me da entrada e saída dos tripulantes para carregar os navios e a brecha onde eu entraria clandestino, voltei para sua casa, quase na hora em que terminava de encaixotar a falsa mercadoria. Acompanharia de perto a sua rota para o porto, preparando meu próprio plano.

— E esperou um dia inteiro só pra me acompanhar de perto? Se já tinha ouvido tudo como eu faria, porque todo esse trabalho?

— Para não perder nenhum detalhe! Vi com atenção todos os seus movimentos até o porto e te acompanhei na segunda viagem, ida e volta. Acompanhei a terceira também, praticando para a quarta vez, que seria definitiva.

— E por que não me matou logo na primeira? — interrompi sua emocionada narrativa.

— Ora, se você já ia esconder o ouro todo, arranjar-me um ótimo esconderijo, pronto para morar, um lugar isolado onde poderei jogar seu corpo fora sem o menor incômodo... Perfeito para mim! — “canalha”, xinguei, mentalmente. “Além de me matar quer ficar com os frutos do meu trabalho e todo o ouro!” — A única surpresa foi que não houve a quarta viagem e por isso demorei para chegar aqui, precisei de tempo para reajustar os conformes, mas não foi algo tão difícil assim...

— Engenhoso, devo admitir... Por isso é que sempre foi o que mantive mais próximo de mim, pensa bem antes de agir, melhor que eu em algumas vezes... Uma coisa você não pode negar, eu sempre soube reconhecer o talento dos outros!

— O problema é que também sempre foi um grande orgulhoso! — gritou, novamente tomado pela raiva. Que lástima de erro é a cegueira pela raiva. — MAS ESSE PROBLEMA ACABA AQUI! — vociferou e levantou sua espada acima da cabeça.

Com um buraco no lugar do coração, Storng caiu no soalho e deu seu último suspiro, entre tosses que preludiam sua morte. Assisti a agonia até que o corpo sem vida terminasse com as convulsões. Arrastei-o para fora, levei o cadáver bem longe, na direção das costas da casa, para nem ser incomodado pela visão dos abutres pela minha janela. Limpei o chão e preparei alguma coisa para comer, o susto que me deu foi realmente muito grande.

A partir de então, continuei foragido por duas semanas e meia. Depois, virei frequente figura numa cidadezinha distante, onde não era muito próximo a ninguém, nem muito influente, nem muito aparente. Apenas um homem que passava o dia a andejar pela cidade, hora almoçando no bar, ora jantando numa pensão, desaparecendo por um dia ou outro... Continuei minha vida, amando meu ouro, minha paz e solidão, quando voltava para casa.

Fiquei sabendo, pelos jornais que às vezes pegava no armazém de Jean, que um tal detetive Hansel e seus dois policiais mais competentes, Ruther e George, estavam trabalhando arduamente para localizar os piratas que roubaram mais de cem caixotes de ouro do Rei de Vetzztrudel. Jamais me encontraram, como devem saber.

Hoje, já estou mais que velho, devo admitir, e nem sei se meus destinatários estarão vivos. Contudo, espero que pelo menos o registro da carta seja feito e esta vire um documento histórico dos feitos de um pirata, com sucesso do começo ao fim da vida.

Devo parar por aqui, já não aguento mais escrever. Enviarei a carta e voltarei para o casebre. Estarei deitado no porão, com todo o ouro espalhado pelo chão e eu em cima dele, o tão estimado. Com meu ouro, meu chapéu favorito e escondido do mundo, esperando minha morte.


Ass.: Curtner, o capitão pirata.


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Notas finais do capítulo

O que acharam?



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