Upside Down escrita por Lirael


Capítulo 18
Despertar




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Soluço não soube dizer quando tempo ficou agarrado a ela chorando. Poderiam ter se passado dias ou horas e ele jamais saberia dizer a diferença. Ignorou totalmente a multidão entristecida de vikings à sua volta, ignorou Banguela que gemia baixinho como se chorasse e ignorou Dealan que observava Merida, desolado, parando de vez em quando para cutucar sua perna com o focinho, incapaz de aceitar a verdade.

Merida estava morta.

Na tentativa de lidar com a dor, sua mente fechou-se a todos os estímulos exteriores, se agarrando somente a seu corpo inerte, balançando-a lentamente para frente e para trás enquanto as lágrimas ensopavam seu cabelo ensanguentado.

Alguma parte de si repetia que Merida era uma guerreira e que mesmo não sendo viking, com certeza seria recebida nos salões de Odin com todas as honras, mas como poderia todo esse saber diminuir a dor insuportável que lhe despedaçava o coração? Ele chorou e chorou até sentir sua alma vazia e seus olhos secos. Com um olhar perdido, ele baixou o corpo sem vida de Merida lentamente até o solo e tirou alguns fios emaranhados de seu cabelo que se grudavam onde o sangue havia escorrido.

Sem querer, sua outra mão tocou de leve a superfície suave do pequeno embrulho que Merida trouxera sabe-se lá de onde. O feitiço. A raiva correu em suas veias como fel e ele ergueu o doce acima da cabeça pronto para atirá-lo longe. Foi impedido por um formigamento insuportável na mão. A sensação desceu rapidamente pelo seu braço, ombro e cabeça, deixando todo o seu corpo dormente. Sentiu-se estremecer, olhando confuso para o próprio braço. E por mais que tentasse, não conseguia controlar seu corpo. Um calor estranho tomou conta dele e sua visão escureceu.

Ele fechou os olhos com força, mas mesmo através das pálpebras um clarão branco o atingiu.

Como que inconscientemente, ele buscou Merida segurando sua mão. Um arrepio tomou conta dele quando a mão dela apertou a sua.

_____

Todo o seu corpo formigava. Ouviu sons abafados na multidão, gente gritando ou rindo, não soube dizer ao certo. Já não sentia frio. Abriu seus olhos lentamente e sua visão demorou alguns segundos para se acostumar com a luminosidade e ganhar foco. Havia alguém olhando para ela, mas com a visão embaçada, poderia ser qualquer pessoa. Ela piscou algumas vezes mas quem quer que fosse ainda parecia estar atrás de uma névoa grossa. Ela estreitou os olhos na tentativa de melhorar a visão e aquilo pareceu funcionar. Aos poucos, pôde enxergar com mais e mais nitidez. Mas antes que sua visão clareasse por completo, uma voz masculina e inconfundível se fez ouvir no meio do burburinho da multidão.

– Merida. - Soluço chamou.

O som de seu próprio nome nunca pareceu tão lindo.

Merida riu e as lágrimas inundaram seus olhos ao ouvir o som da própria voz - a voz de uma garota. Soluço também sorriu e agora ela podia ver seu rosto claramente. Apesar de todo o barulho, toda a gritaria e todo o alvoroço de pessoas comemorando, Merida e Soluço não conseguiam tirar os olhos um do outro. Com delicadeza ele a puxou para seu colo enquanto a mão dela acariciava seu rosto, seus dedos explorando cada traço, cada detalhe dele.

O barulho era insuportável agora, dragões rugiam, homens mulheres e crianças gritavam e em algum lugar alguém tocava flauta, mas Merida e Soluço permaneceram em silêncio, apenas olhando um para o outro.

E mesmo em meio à algazarra e toda aquela celebração, Soluço soube que não havia nenhum outro lugar onde ele quisesse estar. As duas figuras mantiveram-se em silêncio, ofegantes e trêmulas, com os corações batendo no mesmo ritmo. Soluço apoiou a nuca de Merida com um dos braços, aproximando seu rosto do dela. Ficaram assim por alguns instantes, as testas unidas e os lábios encostados. Sua outra mão moveu-se lentamente até os cabelos dela, enrolando os dedos nos caracóis vermelhos. Uma a uma, suas lágrimas caíram no rosto ruborizado de Merida. Incapaz de se conter, a princesa enlaçou Soluço pelo pescoço e buscou seus lábios para um beijo.

____

A tarde passou como uma nuvem levada pela brisa com os vikings envoltos na preparação de uma grande festa para comemorar a dissolução do feitiço. E como Merida já tinha visto antes, as festas dos vikings costumavam virar a noite.

Passou o resto da tarde trabalhando com afinco na conversão do kilt em uma saia longa, um pouco corada por saber que praticamente toda a Berk a havia visto de pernas nuas, imaginando o escândalo que sua mãe faria se soubesse. Ela soltou um risinho, afastando o pensamento por agora. Nunca fora um grande exemplo com agulha e linha, mas por hora, aquilo ia ter que servir. Quando finalmente acabou, vestiu uma camisa e abotoou a saia na cintura. Rodou sobre si mesma para avaliar o trabalho. A costura havia ficado um pouco franzida na barra, mas ninguém notaria. Dealan a observava deitado ao lado de sua cama, espiando-a com um único olho quando achava que ela não estava vendo e fechando-o em seguida sempre que ela se voltava na direção dele. Parecia querer vigiá-la para ter certeza de que não se meteria em mais problemas.

Merida parou diante dele e esperou que ele abrisse os olhos, mas o dragão continuou sua encenação de sono.

– Pode parar agora. Eu sei que você está acordado. - ela acusou. Novamente Dealan não se mexeu. - Como eu estou? Você acha que estou apresentável?

Dealan enfim pareceu reagir, abrindo os dois olhos e soltando um bocejo tão ensaiado que Merida pensou que o dragão deveria ser ator. Ele a olhou por alguns instantes, inclinou a cabeça de lado e suas pupilas se dilataram. Por fim, fungou e voltou a se deitar, como se não tivesse nenhuma opinião a respeito do novo visual da princesa. Merida sorriu. Era Dealan afinal de contas. Uma sugestão de movimento atraiu seus olhos para os cobertores na cama. A pequena Terror Terrível de escamas amareladas surgiu por entre os cobertores e encarou Merida com seus grandes olhos esverdeados.

– O que você acha, Isean?

Merida sorriu ao chamá-la pelo nome que em sua língua significava "pequena". Merida não havia conhecido nenhum dragão menor que Isean e também não conseguira pensar em nenhum outro nome. A Terror Terrível pareceu não se importar e em pouco tempo acostumou-se a seu novo nome. Isean olhou para Merida, inclinou a cabeça e colocou sua língua bifurcada para fora, lambendo seu próprio globo ocular. Ela suspirou.

– Bem... Vai ter que servir. E também vou precisar de toda a coragem do mundo para o que eu vou fazer agora. Me desejem sorte.

Respirando fundo, Merida saiu de seu quarto e caminhou decidida até a sala. Ele já estava lá, sentado em um catre, bebericando uma caneca de hidromel. Caminhou na ponta dos pés, como se tivesse medo do ruído que fosse provocar, mas Estóico era um guerreiro fabuloso. Mesmo muitos anos após a guerra com os dragões, o chefe viking ainda se mantinha alerta. Ergueu-se do catre em sua amplitude deixando a caneca de lado e olhando para Merida com uma expressão indecifrável. Ela precisou de toda a sua força de vontade para não desviar os olhos dos dele.

– Poderíamos conversar? – ela pediu, um pouco incerta da reação dele.

Estóico assentiu, sem dizer nenhuma palavra e fez um gesto em direção a uma cadeira, sugerindo que Merida se sentasse. Ela obedeceu. Respirou fundo, olhando para as próprias mãos enquanto Estóico também se sentava. Um eco do medo que sentiu quando ele esteve prestes a matá-la ressoou na sua mente, mas ela tentou se concentrar no fato de que ele era pai de Soluço, o homem que ela amava. Ela lhe devia isso.

– Eu não sei como começar... - ela disse, em um tom de voz baixo e cauteloso. Forçou-se a olhar para ele enquanto falava, tentando ao máximo não vacilar sob o peso daqueles olhos. - Nada do que eu diga pode mudar o que eu fiz. As coisas que eu fiz... - ela vacilou ao vê-lo franzir a testa, mas continuou assim mesmo. - O que eu fiz é indefensável. Não tem desculpa. Eu sei que lhe causei mais sofrimento do que eu causei a Soluço ou a mim mesma. Eu me arrependo sinceramente. E se eu puder fazer alguma coisa, qualquer coisa...

– Chega. - Estóico interrompeu num tom de voz suave, mas Merida não pode evitar se encolher. - Você tem razão ao reconhecer que o que você fez é indesculpável. Acredite em mim quando eu digo, princesa, que se não fosse pelo status do seu nascimento e o seu significado para essa aliança, já estaria morta a muito tempo.

Merida estremeceu. Não tinha esperança de que a conversa iria correr bem, mas não esperava que as coisas fossem tão ruins.

– Entretanto. - ele recomeçou, interrompendo a linha de pensamento de Merida. - As suas ações de ontem a noite provaram que você realmente se arrependeu e que as suas palavras são verdadeiras. Meu filho demonstrou nutrir um afeto por você que me foi, no mínimo, inesperado.

Merida mordeu o lábio inferior. Estóico provavelmente vira toda a cena do beijo. Corar foi inevitável. Ela quis que que um buraco se abrisse no chão e a engolisse.

– E ver a sua irresponsabilidade e teimosia - ele disse em um tom duro, observando Merida tremer diante das palavras e fechar os olhos quando ele fez uma pausa. - para se colocar em perigo pelo meu filho, me faz pensar que eu não poderia desejar uma noiva melhor para o Soluço.

Ele terminou de falar com um sorriso e deliciou-se com a expressão contente e ao mesmo tempo surpresa de Merida ao olhar para ele.

– Não há mais nada a perdoar. - Estóico concluiu, assustando-se com a rapidez com que Merida se ergueu da cadeira e o abraçou. Ele sorriu com o gesto, colocando os braços em volta dela.

______

Mais tarde, Merida empurrou com força as grandes portas do Grande Salão. O ruído a atingiu em cheio, juntamente com o cheiro de cerveja, hidromel e pão recém assado. Dealan caminhava altivo ao lado dela, mal respondendo aos olhares de outros dragões. Merida tinha a intenção de encontrar Soluço, mas a cada dois passos dados um viking parava para parabenizá-la pelos seus feitos, cobrindo-a de elogios pela sua coragem e bravura. Se havia uma coisa que ela havia aprendido era que os vikings adoravam atos de coragem irrefletidos. Merida sempre sorria e agradecia em resposta, feliz com a mudança de tratamento que ela havia conseguido conquistar. Aquela festa também era para ela.

Avistou Soluço não muito distante, junto com seu habitual grupo de amigos. Bocão se juntara a eles e tinha um braço apoiado no ombro de Soluço. Os dois davam gargalhadas com alguma coisa que Perna de Peixe dissera. Ela parou e ficou observando de longe, encantada com o seu sorriso e sem querer interromper o momento. Então seus olhos se encontraram e ele parou de rir. Sorriu para ela com uma expressão carinhosa e aquilo só fez chamar atenção dos outros para si própria. Dealan empurrou-a com o focinho e Merida caminhou em direção a eles.

– Merida! - Astrid exclamou com um enorme sorriso, puxando-a pelas duas mãos e olhando-a de cima abaixo. - Me deixe olhar para você. Eu não sabia que você era tão bonita. - elogiou.

A princesa apenas sorriu, um pouco encabulada.

– É verdade. - comentou Perna de Peixe, que olhou encabulado para Soluço e depois para Merida. - Com todo o respeito é, claro.

– Obrigada, Perna de Peixe. – Merida agradeceu, curvando-se brevemente.

– Agora você realmente parece uma princesa. - comentou Melequento. - Exceto pelas roupas, é claro.

Merida franziu o cenho ao ver Melequento mencionar a sua costura deficiente.

– Princesa ou não, ainda sou capaz de derrotar você em uma luta, Melequento. Lembre-se disso. - disse, com um sorriso maldoso ao ver Melequento se encolher e perder metade da pose que tinha antes.

– Talvez mais tarde. - Sugeriu Soluço, segurando a mão dela. - Ao invés disso, você poderia nos contar como conheceu Dealan, Merida.

O dragão deu dois passos à frente com a menção de seu nome, observando o rosto de Soluço e em seguida, sua mão segurando a mão de Merida. Dealan não parecia se sentir muito à vontade na presença de tantos estranhos, mas fez o seu melhor para se mostrar indiferente, como Merida notou.

– Sim. Um Skrill é um dragão muito raro. - comentou Perna de Peixe. - Quase tanto quanto um Fúria da Noite, acredito. Só tivemos notícia de um deles, e foi há muito tempo.

– Encontrei Dealan na floresta. - o dragão rugiu para ela, e Merida lhe dirigiu um sorriso afetuoso. - Ele me encontrou. Nós ficamos amigos.

– E você o treinou sozinha? - perguntou Cabeça-Dura.

– Eu não o treinei. Acho que ele ainda é tão selvagem e desconfiado quanto no dia em que eu o encontrei. Mas nós temos temperamentos parecidos e nos damos bem na maioria das vezes.

– Quando vai colocar uma cela nele?

Dealan arregalou os olhos e depois encarou Merida. Ela se aproximou dele e tocou-lhe o ombro.

–Não acho que ele gostaria muito disso. - A princesa comentou, olhando Dealan com ternura. - Eu gostaria de mantê-lo o mais confortável possível.

Quando falou a última frase Merida viu o afeto refletido nos olhos do dragão.

– Ela está certa. - comentou Soluço. - Nossa única experiência com um Skrill deu totalmente errado por que nós não sabíamos que nem todo dragão quer ser treinado. Talvez por isso Dealan tenha se aproximado de Merida. - ele olhou para ela com uma expressão de admiração - O que você fez não foi uma coisa pequena.

– Claro, claro, foi uma coisa muito boa, mas não vai durar. - disse Melequento.

– O que você quer dizer? - Perguntou Merida, estreitando os olhos.

– Que Dealan não vai poder ir para Dunbroch quando você partir.

Merida sentiu Soluço estremecer. Nenhum dos dois havia tido tempo para pensar nisso. Merida não era mais uma refém. Com a dissolução do feitiço, ela agora poderia ir para casa.


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Notas finais do capítulo

Ah, vocês não acharam mesmo que eu ia deixar a Merida morta, não é mesmo? Será possível que vocês pensam que eu sou assim tão cruel?



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