Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 4
Capítulo 4




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/552041/chapter/4

O dia amanhece lentamente e acordo com os ombros cansados. Thomas está dormindo pesado, o corpo de bruços na cama aconchegante. Fito meus olhos de quimera inquietos nos cabelos dele e me lembro de ter me esquecido de algo. “Meu Deus!”

– Thomas, – eu digo, a voz alta, os olhos tão próximos dos cabelos dele quanto posso – ei, Thomas.

Ele começa a virar o rosto para cima, devagar. Parece adormecido ainda, como se estivesse se movimentando apenas para achar uma posição melhor para dormir. Seu rosto, que antes estava enterrado no travesseiro, agora está virado para a parede. Levanto-me da cama, sento ao chão, logo ao lado dele, fito meus olhos inquietos em suas pálpebras fechadas e falo alto.

– Thomas?

Lentamente as pálpebras começam a se abrir e eu consigo enxergar um espelho verde-escuro ali dentro. Os traços da íris estão vivos e a pupila pequena. Então ele sorri. Um sorriso calmo e pequeno, quase imperceptível, que encara meus olhos sem questioná-los.

– Bom dia.

– Bom dia. Eu sei que hoje não é o dia mais indicado para isso, mas preciso urgentemente ir a um salão de beleza. É urgente, muito urgente.

Agora o sorriso pequeno se torna uma grande curva, tão grande quanto o rosto dele consegue aguentar. Parece que um trovão de risadas vai desatar da garganta dele, mas ele não ri.

– Você é tão linda.

A essa altura, ele já devia ter entendido que eu realmente preciso ir a um salão, mas eu só respondo obrigado em tom baixo esperando a resposta para minha afirmação. Ficamos em silêncio por quase um minuto e ele percebe que estou falando sério. O sorriso dele não some, mas o tom de voz se torna mais sólido.

– Você não fez todo um tratamento nupcial antes de nos casarmos?

– Fiz, fiz sim. Mas me esqueci de algo importantíssimo que preciso fazer ainda hoje, se possível ainda agora.

– O que poderia ser? Vi nada de errado contigo. Mas tudo bem. Pede para a portaria ligar para um táxi e não demore muito, tudo bem? Quero te mostrar vários lugares hoje.

– Está bem, – digo, gritando enquanto corro até o banheiro e ajeito meus cabelos com os dedos. – vou ser a mais rápida que posso. Não vou demorar.

Atravesso a enorme porta de madeira e entro no elevador. Ali dentro, uma senhora de chapéu grande ajeita o acessório na cabeça enquanto seu marido fuça na câmera fotográfica. As portas do elevador se fecham.

– Mas, Susan, não consigo ligar isso aqui – ele diz, apertando vários botões ao mesmo tempo.

– Não é assim, Fernando – ela responde. – Você tem que apertar no botão correto. É aquele ali, ó.

– Esse?

– É!

Então a câmera se liga. Ouço o barulho da câmera ativar e as lentes abrirem-se. O elevador para. Preparo para sair às pressas dali, ouço um balburdiar quando atravesso o saguão rápida. Atravesso o saguão sem falar com alguém, passo pelas portas grandes de vidro e entro em um táxi que sequer chamei. Talvez, por sorte.

– O senhor fala português? – pergunto.

– Falo sim, senhora.

– Preciso ir para algum salão de beleza, o senhor conhece?

– Acho que sim.

– Então tudo bem.

O motorista põe-se a dirigir. Agora devo estar parecendo a mulher mais fútil de todo o planeta Terra. Sinceramente, não me importo. Prendo meu olhar pela janela e vejo o fluxo de carros. A cidade parece muito mais bonita que na noite anterior, frustrada e escura. Penteio meus cabelos com os dedos, cuidadosa. Olho-me pelo reflexo no vidro. “Droga!”. Se havia algo da qual eu não podia ter me esquecido, era aquilo. Prendo meus olhos na raiz de meus cabelos, visíveis no reflexo do vidro, e tenho vontade de me descabelar. Maldita despigmentação natural.

– É aqui – ele diz, apontando.

– Obrigada – digo, entregando uma nota de dinheiro e descendo do táxi.

– Senhora, o dinheiro está...

– Não tem problema – bato a porta e corro para dentro do ambiente amplo e alto.

Sinto uma aflição em mim. Minha vida está o caos. Milhares de buracos negros formam nas constelações da minha cabeça. Quero desaparecer.

– Senhora?

– Perdão – digo, tentando retomar a realidade.

– A senhora tem hora marcada ou...?

– Não, desembarquei ontem aqui em Viena e preciso retocar a raiz dos meus cabelos.

– Está bem cedo, então temos ninguém agendado por agora. Pode ser agora ou a senhora quer que eu marque horário?

– Não, agora, por favor.

Minha voz sai desesperada. Parece que vou expor ao mundo minhas vísceras. Tento manter a calma. Ao sentar na cadeira de couro escuro, sinto as mãos ligeiras passearem pelo meu couro cabeludo.

– A senhora pinta em qual tom, normalmente?

– O mais escuro. Não sei a cor nem o número da tinta. Pinta com a cor preta.

E o silêncio assentou. Só estava eu ali, àquela hora da manhã, e a moça que começava a ajeitar meus cabelos era profissional o suficiente para manter o silêncio durante todo o processo.

Depois de quase uma hora sentada, finalmente ela enxagua meus cabelos. Antes que ela pudesse me guiar até a poltrona em que os secaria, agradeço, caminho até a recepção e retiro quatro notas.

– Obrigada – digo.

– Mas senhora...

– Até mais.

Entro em um táxi, digo o hotel, ajeito meu corpo contra o estofado do carro e fixo meus olhos no meu reflexo novamente. “Aí está você”. É aterrorizante ver a raiz demasiadamente clara nascendo em minha cabeça. Tenho a rigorosa rotina de tingir meus cabelos todas as semanas, sempre avivando a raiz mais que o resto dos fios. Porém, com todo o furacão de casar, eu deixei passar batido a minha própria relíquia.

Desejo voltar para casa agora. Desejo meu quarto, meu ambiente empático e minhas verdades conscientes. Dividir-me não é bom. Na verdade, eu realmente sinto vontade de fugir. Nunca vou me esquecer do meu primeiro possível namorado. Ele era engraçado, amoroso e realista. Nunca dei uma chance real para ele porque, embora ele tivesse características interessantes, ele era facilmente influenciável. Pessoas assim me dão preguiça.

A primeira coisa que percebi ao voltar para o quarto de hotel foi que Thomas continuava enrolado nos lençóis seminu. Os olhos verdes me fisgaram. Dei um leve sorriso, desejando que ele entrasse em coma por dois dias inteiros.

– Qual foi a mágica que você fez? – perguntou, procurando algum vestígio de novidade em mim.

– Nenhuma. Descobri que, o que eu achava não ter feito, eu tinha feito sim. Mas fiquei presa no trânsito no caminho de volta.

– Jura? – disse, levantando.

– Aham.

Segurei nas pontas dos meus cabelos, ainda úmidas, e camuflei toda a minha ânsia de vida. Se eu pudesse reunir, em meus ossos, toda a coragem, eu fugiria sem olhar para trás assinando no meu atestado de óbito a frieza. Meus olhos decolam, como os temidos aviões, e minhas pernas cambaleiam. Quero dar uma pausa na minha vida.

Thomas sai vestido do banheiro, um cheiro bom de perfume caro envolve minhas narinas. Ele está bem vestido, os cabelos em topete volumoso.

– Vamos tomar café? – ele pergunta, claramente esperando um sim.

– Sim.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Dúbia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.