Ignoto Submergido escrita por Wolfgang Schneider


Capítulo 1
Terra




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Pergunte para alguém como é que é possível sobreviver sem condições básicas. Em grande maioria, responderão que é algo utópico. E para outros, pode ser que seja verdade, que é possível.

Para quem mora em algum lugar assim, a morte perde seu sentido, não sendo mais alimentada da dor de sua vítima, quase ignorada pelos seus interesses ancestrais. Lembre-se disso, menininho...

— Ei você, acorde! Estou cansado de ouvir você falando sozinho. Não gostaria que eu te jogasse daqui, não é?

— Não... — falei tossindo, enquanto me apoiava no chão ainda semicerrando meus olhos devido a pingos de água que caia sobre eles.

— Tome essa toalha e cubra-se, essa chuva não vai passar tão cedo. — continuou o moço ainda ofegando. Jogando a toalha em cima de mim, pegou sua pá e continuou a remar.

Esse foi o sonho mais estranho que já tive! O que era aquilo que estava falando comigo? Por que estava falando de morte? Preciso chegar em casa logo. Apenas, preciso.

— Olha, estou confuso. — silenciei-me — Acabei de ter um pesadelo. — continuei com um tom de fraqueza. — respirando fundo continuei; — Fiquei pensando... “E se a gente caísse nesse mar?” iríamos morrer. — Com os olhos inquietantes que pairavam sobre o mar e o rosto do moço, me calei por um momento. Até que ele ajeitou sua roupa e continuou:

— Não, não fale bobagens. Confie em meu barco. E mesmo que caíssemos, essas pessoas iriam te ajudar. Acredito que boa parte saiba nadar. — ainda com a pá em suas mãos, colocou-a no chão. Abaixou sua cabeça e ficou assim por alguns segundos. Um silêncio que parecia a eternidade. Depois de um tempo, o moço levantou a cabeça e retornou a falar: — Ah, além disso, não estou nem um pouco interessado em saber do seu sonho. — com um tom de desgosto, como se tivesse se lembrado de algo. Pegou sua pá e começou a remar novamente.

— Mas...

— Mas nada! — retrucou-me, com um tom mais sério.

Tentei não o perturbar mais, o que quer que fosse, deveria ser muito sério. Pensando melhor, pode ser verdade! Mesmo não confiando nesse cara (na verdade desde que entrei nesse bote), poderia contar com a ajuda dessas pessoas que estavam ao meu lado. Sim! Pode ser que sim. Colocando minha cabeça no chão frio, pensei sobre o assunto por vários minutos. A sensação de alívio pairou sobre meu corpo. Quanto menos problema para me preocupar, melhor é.

Depois de certo tempo, a fome me veio à mente. A “não” falta de alimento aqui me deixava muito irritado. A regra que o moço colocou sobre ela era um tanto injusta para mim. Para cada pessoa uma só caixa de alimento, e dentro tinha: uma garrafa de água, um biscoito e só. Com certeza a pessoa que a planejou, teve seu momento mesquinho.

Mas o mais lamentável ou talvez pior, era que não tinha muitas.

Passando alguns minutos depois de que me levantei, passei um bom tempo olhando os meus companheiros. O frio que pairava sobre o meu corpo estava me atormentando. A chuva que era apenas um mero empecilho nesses últimos minutos tornou-se algo muito pior. Uma tempestade.

Trovões assustavam algumas crianças, e até algumas delas, acordavam e pediam um "socorro" para suas mães.

Nada melhor do que agradecer por ter cobertores naquele momento. Peguei-me olhando para a direção do moço. E pela primeira vez parei para analisar sua aparência. Possuía cabelos negros, enormes e que se remexiam a todo instante. Seus olhos... Não conseguia vê-los. Desde que eu me lembre, o moço nunca olhou em direção ao meu rosto. Tremulei com um vento frio e continuei examinando-o. Magro (até demais), vestia uma camisa de estampa neon, com uma bermuda marrom de couro. Parei para pensar e não compreendia como ele suportava remar por tanto tempo.

Cansei-me de olhar e então fechei os olhos. Toda angústia que senti do pesadelo, me deixou com uma dor na barriga horrível. Preferi tentar relaxar um pouco. Arrastei algumas caixas que estavam vazias e usei-as como um “travesseiro”. Apoiando minha cabeça e esticando minhas pernas, apalpei o coberto e fechei os olhos. O sono veio com tamanha rapidez que não me dei conta quando dormi.

Não se passaram muito tempo e acordei assustado com uma das crianças berrando. Pelo menos a dor de barriga felizmente passou. Todavia, uma baita de dor em minha cabeça foi intensa. Parecia que tinham atirado uma bigorna em minha cabeça. Coçando meus olhos e fechando-os para tentar diminuir, uma moça de vestido engraçado me emprestou um gelo que estava sobre a sua caixa coberta com um lençol rosa. O gelo doía mais do que a dor anterior. Pelo menos depois de um tempo, as duas pararam.

Sentei-me e comecei a observar novamente as pessoas ao meu redor (já que era a única coisa a se fazer além de dormir ou comer). Fitei-me a olhar para a primeira pessoa que visse primeiro. E por sorte, foi uma menina.

Com o cabelo desbotado e de aparência um tanto estranha, a menina tinha pele e olhos que pareciam pedras, prontas para a qualquer momento serem quebradas. Seus cabelos fediam a peixe cru, o que não era muito agradável. Não a culpava pela falta de sentimentos que o moço tinha. Ele a colocou perto de alguns cardumes que ele tinha pescado de manhã, antes de todos partimos para o mar. Sem muita coordenação, a menina se enroscou na rede de pesca e caiu sobre ela. Segurei-me para não dar risada. Ela agora estava sentada ao lado de uma caixa aberta. Parecia procurar comida insanamente. Jogando mais e mais para fora, o que não a agradava. Encarando-a, não demorou muito para notar que eu a estava olhando. E me virei.

Tinham outros que estavam olhando para o horizonte. Que me faz lembrar de quando o sol ainda estava para nascer. Quando ainda estava colocando minha “ex” mala no bote. Que no caso, foi jogada no cais junto com outras coisas inúteis. Claro, de acordo com o moço.

O sol tão vívido. Sendo tristemente abandonado agora por nuvens horas sádicas, tristonhas e algumas vezes macabras. Pareciam rir do nosso sofrimento.

Estava cansado de: olhar, dormir, olhar, cochilar e olhar. Pondo-me de pé e enrolando o coberto em minhas costas. O prendi em minhas mãos, e fui lentamente para não escorregar no piso do bote. Parando atrás do moço, cutuquei o seu ombro e indaguei:

— Estamos perto de chegar? — Essa sua pá é muito lenta. — comentei rindo cuidadosamente para não ofendê-lo. Ainda segurando o meu coberto, o apertei ainda mais para junto do meu corpo. Tive calafrios devido ao vento que passava daquela direção em uma intensidade muito mais forte.

Um pequeno silêncio ocorreu.

— Como você reclama! — retrucou-me o moço quebrando o silêncio. E no seu tom, pareceu expressar como se fosse à milésima vez que o perguntava sobre isso. Ainda virado para o mar, sem esboça nenhum movimento a mais, tossiu com uma forte rajada que passou e falou baixinho: — Sim, chegaremos o mais rápido possível em Boondock. Antes que essa tempestade nos leve. — inclinou sua cabeça para cima e ignorou minhas últimas tentativas que tive de puxar assunto.

Fui capaz de ouvir um risinho abafado. Dei um sorriso também. Mesmo que fosse inútil; devido a ele nunca ter virado o rosto para mim.

Não era possível saber se naquele momento era tarde ou noite. As nuvens escuras tomaram conta de todo o céu que nos hospedava. Enquanto faróis grandes e robustos iluminavam várias partes, e que por acaso, tinha vários deles.

— Ouvi algo! — gritou um homem. Colocando suas mãos em sua boca para ampliar a sua voz, gritou mais algumas vezes. Qualquer um do bote deveria ter o ouvido em alto e bom tom.

Em poucos segundos uma rajada de sussurros infestou o bote. Todos comentando sobre ouvir um barulho estranho e de onde supostamente teria vindo. Deveria ser algum avião ou algo do tipo. O que seria estranho, já que devido à tempestade que ocorria ali, ir seria burrice; que no nosso caso, já estávamos perdidos mesmo, o que custaria...

— Olhem! — berrou o mesmo homem de voz grossa. Enquanto apontava para um local. Assim interrompendo meu pensamento sobre o assunto. Tropeçando nos pé de algumas pessoas e abrindo espaço entre braços e caixas, cheguei o mais perto possível dele para ver a situação.

Segui a direção do seu braço. — Mas o que é isso? — espantado, murmurei.

Uma abertura gigantesca emergiu no meio do céu entre as nuvens, estavam ligadas aos diversos feixes de luzes que os faróis lançavam para o centro. Um estrondoso e ainda mais alto barulho de faíscas e engrenagens se mexendo começaram a se expandir até chegar aos ouvidos de todos. Raios caíram sobre partes aleatórias do mar, que a cada segundo, estava ficando cada vez mais agitado. Todos do bote olhando afligidamente para cima. Tentando entender o que se passava ali. Podia-se ver o desespero de algumas pessoas. Algumas andavam de um lado para o outro com sacarmos em seu tom, comentando sobre que suas vidas realmente estavam perdidas, enquanto outras estavam sentadas e agarradas com seus filhos. O céu começou a ficar em tons avermelhados, assim como as luzes dos faróis. Enquanto um cheiro de ácido empeçou o ar, o oceano ameaçava devorar todos do bote em uma única “bocada”.

— Não, não, não. Não! — uma idosa do lado de uma das caixas, com a expressão mais tenebrosa que presenciei, murmurou. Estava agarrada com um bebê em seus braços. O desesperou se apresentou a todos no bote. Colocando cada um em uma dança de acordo com o nível de sua música.

A abertura começou a se fechar. Deixando o céu entrelaçando entre as cores vermelhas e cinzas em tons diferenciados. O bote ficou em um silêncio apavorante. Todos olhando para seus companheiros com a falsa esperança que nada mais iria acontecer. O som passou a não existir mais. Para alguns, um mero alívio de seus sentimentos que foram atingidos friamente pelo medo. Para outros, algo pior do que a surdez que ali estava, poderia acontecer. Alguns tentavam emitir algum som. Mas até o mar, grande e poderoso. Calou-se.

Sons graves começaram a entrar em meus ouvidos. E supostamente, em todos que estavam com expressão de surpresa, também.

Inesperadamente...

O moço que estivera apagado nesses últimos acontecimentos, levantou-se e abrindo os braços, sibilou palavras que não consegui identificar. E virando o seu rosto para mim pela primeira vez, fixou seus olhos em meus pés. Seus olhos. Eram de azul intenso, e me deixavam com aflição só de olhar.

Mesmo assim, olhei na trajetória de seus olhos e tive a sensação de desespero entrando e agitando todo o meu corpo. Meus pés estavam encharcados com muita água que estava entrando. Não tinha furos ou algo do tipo no bote, como poderia esta entrando? Não tive tempo para pensar, e instantaneamente olhei para trás para ver o porquê de algumas pessoas estarem gritando.

— Mas que... — olhei com a infeliz sensação de que meu corpo finalmente parasse de funcionar. Minha visão começara a ficar turva e desfocada, enquanto não sentia meus pés. Estavam paralisados do medo que sentia.

O mar estava literalmente nos fechando acima. Entre os feixes de luz que emitiam os faróis. Formando uma espécie de “bolha” em cima de nossas cabeças.

— Finalmente... — falou o moço, com uma expressão macabra marcada em seu rosto. Se soubesse, teria me arrependido de me perguntar como que seria sua face. De pele pálida e com várias marcas em seus olhos, começou a falar novamente: — Ah! Finalmente podemos entrar em casa. — Um breve silêncio — Na minha casa, na sua casa! — cuspindo a cada pausa enquanto se remexia suas mãos com uma frenesis que parecia inesgotável. Apoiou-se no chão com a pá, e subiu para a ponta do bote. Às vezes tropeçando em tascas quebradas de madeiras.

— A-G-H-I-E-L. — continuou. Folgando a cada sílaba que falava. Ainda olhando em minha direção.

Tudo a minha volta começou a perder a forma. Minha visão não enxergava nenhuma cor mais além do cinza. E em círculos minha cabeça foi caindo ao encontro do chão.

A escuridão tomou conta dela.

E tudo ficou escuro.


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