Distúrbios. escrita por Padecida


Capítulo 4
Banquete


Notas iniciais do capítulo

"Muitos foram os que desceram pelo abismo do inconsciente sem conseguir voltar. Os manicômios são sua moradias, pois deles são o reino da insentatez. Outros - pouquíssimos, apenas os escolhidos - seriam capazes de contar o que há por trás da loucura..." - H. P. Lovecraft



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III

Tomou a sopa de tomate direto do prato fundo. Esqueceu-se dos bons modos, colheres eram para os fracos que almoçaram. Larry limpou o bigode carmim com a manga da camisa e apoiou as duas tigelas na caixa de sapatos sobre o seu colo. Duas porque fez uma troca de cavalheiros com Joe Deformado: o seu pão duro pela sopa aguada dele. Sentia-se um executivo após fechar negócio tão favorável, como diria o amigo Bennett de papai.

Além disso, tudo é mais gostoso quando se espera decênios para comer. Não se lembrava do número de identificação, apesar do seu amigo insistir que o doutor deveria ter informado. As refeições estavam dispostas nas camas dos pacientes, amarradas por um farrapo que diziam para usar como guardanapo. O universo conspirou contra o sardento no momento em que cada uma das camas tinha uma plaquinha presa com arame na cabeceira que mais parecia a parede de uma jaula. Na plaquinha, um número de três dígitos. E Larry não sabia o seu número de três dígitos. Joe Deformado provou-se um bom camarada ao aceitar aguardá-lo para comerem juntos. Ficou tentando entreter Larry enquanto o cheiro de tomate corroía o menino por dentro.

Prestes a roubar sorrateiramente o pão-tijolo de um coleguinha distraído, Larry avistou uma enfermeira entrar pela porta-dupla para recolher os panos já usadas e umas tigelas vazias. Outra viria mais tarde, trazendo consigo o toque de recolher.

– Mo-moç... – Por que falar com aquela gente era difícil? Sentia-se pequenino em frente à mulher mal humorada que salvaria seu estômago.

– O pirralho não sabe qual é a cama dele – disse de uma vez, atropelando a fala de Larry.

– É a única que está sem gente – respondeu a mulher para os bizarros que a interrompiam de sair mais cedo do circo de horrores. Apontou com o queixo para a cama 355. Deformado ergueu o cotoco por instinto, franzindo o cenho. Fazia três dias que teve o braço arrancado e, caso tivesse com o membro, cobriria a cara de incredulidade. Bem que o menino aparentava uns retardos.

Agora sentavam um ao lado do outro na Zona da Alegria, nome que o próprio Collins deu ao seu pontinho no dormitório espaçoso, repleto de janelas inalcançáveis.

– Que nome horrível.

– Você que é horrível, seu horrível - disse Larry, num tom irritadiço que durou meio segundo. - Droga, fui grosso, não fui? Me desculpe. – Colocou as mãos na cabeça, como quem quisesse se esconder nelas. Bastava olhar para cara de perdedor que Deformado percebia que Larry não nasceu para dar patadas, assim como Joe Deformado não nasceu para ser babá.

– Tudo bem, tanto faz.

Mesmo quase incendiando uma casa no seu último trabalho como cuidador, Deformado seria incapaz de deixar o retardado largado por aí no dormitório das vinte e nove ovelhas desgarradas, solitárias em Barnes, onde a justiça é cega porque arrancaram-lhe os olhos. Por ninguém se preocupar com elas, os caprinos tornavam-se os ratos do castelo de caixas empilhadas. Engraçado, tem pensado muito em caixas desde que o sujeito chegou. Vai ver a psicose do menino é transmitida por osmose.

– Ei, Joe.

– Hm?

– Como você parou aqui? Você não grita, não se machuca, não corre nu livre, leve e solto pelos corredores (não fala com uma caixa de papelão FAMINTA!) ... – Os olhos redondos de esquilo estavam atentos, como quem estava prestes a ouvir a história de dormir que superaria qualquer um.

A pergunta pegou Joe Deformado desprevenido. Lambeu os fagulhos de pão que restavam nos dedos, pensando nas palavras que usaria para explicar ao garoto. Mentir? Não, sem saco para inventar uma fantasia em que ele era o herói injustiçado de uma cidade corrupta. Também odiava essas histórias, porque era um cara realista que beirava o pessimismo, apesar de se considerar um raio de Sol manco na vida de qualquer um.

– Eu curto caras, sabe?

– Isso não é motivo – começou Larry, naquela determinação infantil. – Eu também gosto de garotos, tanto que você é o meu melhor amigo. – Melhor amigo? A relação andava rápida demais para o coxo acompanhar. Respirou fundo na tentativa de conseguir paciência e arrumar uma explicação melhor. – ... Joe é nome de garoto, não é? – Larry ficou tenso, pensando que talvez não seja um Joseph, mas uma Joenna. Nossa, se fosse assim, isso significava que ele foi enganado o tempo todo pelas armadilhas de seu aparelho psíquico!

– Claro que é nome de garoto – o menino soltou um suspiro aliviado. Descobrir que seu amigo é amiga seria muita informação para um dia badalado como aquele, já que o pequeno Collins era ruim com as meninas. – Só que não gosto desse jeito. É de outro. Gosto de garotos para dar uns beijos, namorar.

Larry ficou de boca escancarada, esperava por alguma coisa. Pronto, estava feito. O esquisito se afastaria dele, dizendo que a mamãe falou que isso é doença de depravado. Talvez ele começasse um ataque psicótico e acertasse seu olho com a ponta da caixa mágica.

– Só isso?

Uma reação inesperada esperada. Bastava bater o olho no menino que dava para perceber que ele não entendia como o mundo funcionava. Quem sabe ele foi criado por animais, que nem o Nate do dormitório quatro. A terapia coletiva acabava quando ele mijava no tapete. Joe gostava muito dele por sua utilidade e simplicidade. E coragem. Juntou um tanto dela e continuou:

– Eu trabalhava na cozinha de uma mansão. Era o cara da limpeza que atraiu os olhos do dono de uma das maiores indústrias de armamento do Reino Unido – Joe deu um sorriso metade ampliado pela cicatriz. Sorria como quem se lembrava da primeira vez que comeu um scone com geleia de amora. - Me apaixonei por ele, me apaixonei mesmo.

– E aí? – Perguntou Larry, que também sorria ao imaginar um Joe não quebrado de mãos dadas com o chefe. Havia um jardim aos fundos do desenho que mentalizou e órgãos substituindo as rosas do arbusto. Estranho, não tinha imaginado desse jeito. Eram os bichinhos mexendo na sua cabeça, porque estavam com (FOME).

– E aí que comecei a amá-lo muito, sabe. Aquela coisa de entregar o coração pulsando e idiotices do tipo.

– Eca - imaginou o amigo arrancando o coração do peito com um martelo, poc, poc, poc nas costelas. - Ele começou a fazer comida para você? Mamãe fazia comida para mim quando queria mostrar que me amava. E eu comia de volta.

– Não, não fazia – soltou o riso sem graça de quem foi pego aprontando. – O cara gostava de mim para fazer de tapete e começou a me maltratar. Como não sou de receber coice, peguei a faca de queijos, aquela com duas pontinhas assim e acertei bem no pescoço. Aí ele se engasgou com o próprio sangue, fui pego, e ninguém ligou se ele ia me estuprar, porque o homem era da Periferia, e eu sou do Centro. Seria condenado, Dr. Riley entrou no meio e disse que “o meu caso de distúrbio sexual merecia atenção” – Joe imitou o sotaque de inglês nobre do médico. Larry não conteve as risadas. Quem estranhou a reação do menino foi o assassino com as risadas após uma tentativa fajuta de aliviar o clima pós-confissão.

– Você fez o certo – tinha medo do olhar dele. Era esse que mamãe fazia antes de lhe dar uma bronca, uma mistura de surpresa e dúvida (e ódio) que o fazia se encolher. – Ele ia te pisar, você pisou antes.

– Que nada... As pessoas são recalcadas. Recalcadas e perversas. Eu não fujo à regra, e procurar explicar a merda que fiz não vai apagar ela. E tanto faz, agora tenho o músico totalmente na minha - fitou Gavin, de bochechas coradas e um sorriso que ressaltava a cicatriz disforme. - Falaram que ele ama gatos.

Larry entregou as tigelas para enfermeira junto com o pano de chão que enrolara o jantar. Joe Deformado estava errado. Dizer que a humanidade inteira é malvada era dizer que as flautas /ou clarinete, era clarinetes? Não sei/ do Apocalipse sopravam. E mamãe, papai e irmão eram a prova que isso era errado, porque no fundo da gaveta de seus corações, onde havia calçolas furadas e meias sujas, existia bondade. Talvez. Era difícil dizer depois de doze anos impedido de sair, vendo crianças brincarem de pipa e escalarem árvores pela pequena janela do quarto empoeirado. Larry cogitou que talvez sua família talvez não fosse o melhor exemplo para refutar a tese do amigo deformado. Mas existem umas mil vários zeros à direita de pessoas, uma delas com certeza quebraria a regra.

Joe Deformado esperou a caquética de branco sair para voltar a falar com o garoto que encarava o nada com a mesma concentração de quem aguça os ouvidos, desejando escutar a voz do locutor entre os ruídos estáticos de um rádio.

– Andou aprontando o quê para parar aqui? Acho que nunca vi crianças nesse dormitório.

O garoto demente segurou a caixa com força, apertando as unhas roídas contra as laterais. Torciam o cérebro molengo como se quisessem livrar água de uma toalha úmida. Apertou as têmporas com a palma das mãos. Doía ao ponto de desejar ter força o suficiente para amassar o crânio. A dor certamente pararia após uns ossos expostos.

– Err... O que foi?

(FOME)

/Quando todo mundo dormir, prometo! Vou dar comida, parem com isso, por favor, é como se a minha cabeça fosse explodir, aí vou manchar a cara de Joe e ele não será mais meu amigo, parem, por favor chega eu quero morrer socorro eu vou chorar e você vão se sentir mal/

A dor sumiu. Soltou o ar dos pulmões como se tirasse um elefante dos ombros e limpou as lágrimas que ameaçavam cair. Seus olhos estavam vermelhos, e ardiam como se derramassem chá quente em seus olhos.

– Eu vou contar, desculpe. Meus bichinhos ficam pedindo comida a cada minuto – soltou um dos “ha”s nervosos. – Não sei direito o que aconteceu, quer dizer, sei, só que é esquisito de explicar.

– Vai por mim, já vi muita coisa esquisita esses anos. Não é um menino de doze anos que vai me assustar com o monstro debaixo da cama – Larry se lembrou de papai e da primeira vez que conseguiu assustá-lo. O Sr. Collins tomou um belo susto com os seus monstros debaixo da cama, mas depois pai e filho deram belas risadas com o feito. Mamãe gritava de comoção ao ver seus dois rapazes conversando tanto.

– Se você diz... – Imaginava a história como nas tiras do Menino Amarelo, personagem dos jornais velhos que ganhava de presente, coroado como favorito ao sair em cores. O traço engraçado davam à sua história o ar lúdico que deixava as coisas menos feias. – Em uma bela manhã, acordei no chão do quarto de mamãe, tonto porque tinha brincado de gira-gira com Cabrito Vermelho. Olhei para a porta e vi um monte de empregados me olhando com a cara de “oh, meu Deus!” – Imitou os empregados, fazendo uma cópia mal feita daquele quadro com o moço aos gritos. Ao fundo, um paciente de metade da sua altura realmente gritou, a voz de narrador de novela continuava incrível mesmo quase rasgando as cordas vocais.

Um gnomo narrador, demais! Merecia a sua total atenção, nunca tinha visto um antes. O jeito que arrancava a barba aos tufos era fofo como aqueles cartões baratos de dia dos namorados. Parou de apreciar o Zangado quando Joe Deformado estalou os dedos à procura de atenção.

– Dá para agilizar o passo? Toda vez que Rick grita é porque tá próximo do toque de recolher.

– Está bem, está bem. Olhei a cama e mamãe... Estava com o rosto... Era como se tivessem tirado a cara de mamãe com uma colher de sopa gigante. O cérebro estava rasgado, ela engoliu os olhos e eu estava sujo de sangue da cabeça aos pés. Acharam que fui eu, mas juro que não! Ninguém acreditou, perguntaram-me coisas que não sabia responder, começaram a gritar e apontar para mim como se fosse um vilão malvado! Sabe quando você dorme e, quando acorda, está afogado nas tripas de um parente?

– ... Sei? – Joe Deformado ouvia a história fantástica de Larry sem esconder a repulsa. Enfiar umas facas no amante filho da puta parecia brincadeira.

– Pois é, foi isso que aconteceu! Estranho, não? – Pôs uma mão debaixo do braço enquanto usava a outra para alisar o cavanhaque que não tinha. Isso dava aos homens periféricos a sensibilidade de um entendedor das ocorrências etéreas. Entendia nada da frase, mas tinha certeza de que era algo suuuuuuuper legal para irmão falar tanto sobre.

– Nossa, Larry – disse Joe Deformado, incapaz de conter o rosto repleto de dúvida, fitou o menino. – Nossa. Tem mais alguma coisa importante que não sei sobre você?

– Bem... – Pensou, pensou. – Eu gosto de batata cozida e meus bichinhos gostam de (carne crua pingando sangue) (fome) (FOME) (FOME)

– De...?

– Abraços quentinhos – abraçou a caixa de sapatos com um sorriso estampado no rosto sardento. Tinha de parecer normal enquanto os monstros enfiavam pregos em sua cabeça desmiolada.


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