Da sacada escrita por Érica Ribeiro


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

É minha primeira postagem aqui no Nyah, espero que gostem :)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/550681/chapter/1

Da sacada todo dia eu a via. Quieta, encolhida sorrateiramente em um canto morno de sol. Eu a apreciava de longe, alimentando um amor platônico sem nem um olhar de correspondência. A magreza e a sutileza de seu corpo negro e dançante afetava cada mínima parte do meu ser sem que ela precisasse fazer nada além de existir. A existência dela era a dádiva da minha vida. Giselle... Descobri seu nome pelo sussurro de alguém, ali mesmo, da sacada. Ela podia não saber da minha existência, mas eu a tinha inteira em nome, imagem e sonho.

13 de outubro foi o primeiro dia em que a vi. Mais um dia em que, cumprindo minha rotina de fim de tarde, sentei-me em minha cadeira de balanço e abri meu livro, pondo meus antigos óculos de leitura, antes pertencentes, assim com a cadeira, ao meu avô paterno. Giselle surgiu de repente na varanda da frente e sentou-se no chão vagarosamente, abrindo seu caderno de desenho. De início cheguei a me perguntar se teria eu sido rabiscado por seus pincéis alguma vez, mas concluí, depois de um tempo, que tal fato seria impossível: Giselle nunca dedicou um segundo de seu olhar para mim.

Mas olhar para ela me bastava tanto que não importava que ela também me olhasse. Para o meu coração era suficiente ver suas longas pernas cruzadas e seus lábios carnudos e sempre pintados de vermelho morderem a ponta de um lápis indefeso. Por vezes comparei meu coração àquele lápis, tão dilacerado e destruído por ela. Mas tais pensamentos apenas me levavam ao ódio por mim mesmo, por culpar uma criatura tão bela por minhas imbecibilidades. Como poderia um tonto feito eu almejar o olhar ou - sendo o mais audacioso dos homens - o amor de Giselle? Nem os céus ou a terra são dignos de a olharem de graça.

Às 17h17 min, sempre nesse horário, Giselle se levanta e sai do meu campo de visão. Eu não me levanto em seguida, sempre espero até às 18h01, quando ela aparece acompanhada de sua xícara de chá fumegante e sorri para a lua, brindando ao nascimento da noite. Retiro-me da sacada antes de minha amada e jogo-me para debaixo do chuveiro tão ardente quanto eu imagino que sua pele seja. O banho dura exatos 13 minutos e eu me visto e volto para a sacada, onde Giselle geralmente está beijando seu namorado.

Mas não nessa noite. Às 18h14 do dia 19 de fevereiro, Giselle e seu namorado estão em uma discussão intensa e calorosa que resulta em uma Giselle encolhida e chorosa em um canto da sacada, às 18h48. Penso em gritar seu nome, mas me contenho. Prefiro virar as costas e sair para preparar o meu jantar.

- Até quando? - Dou um passo para trás e viro-me. Giselle me observa, de pé na sua varanda. As palavras que ouvi foram realmente proferidas por ela. Nossas varandas são próximas o suficiente para que eu possa ouvir sua respiração ofegante e entrecortada ou é a unicidade do momento que me faz perceber apenas sua presença no mundo?

- Como? - Consigo perguntar. Giselle sacode a cabeça de modo nervoso.

- Esqueça.- Ela diz e se retira rapidamente da varanda. Observo-a se mover da maneira dançante de sempre e entrar no apartamento. Continuo na varanda, esperando que ela volte. O vento, no entanto, não a trás de volta. Entro em meu apartamento e jogo-me no sofá, me preparando para ligar a TV. A campainha toca antes e eu me levanto para atendê-la.

Giselle está na porta. A beleza dela ultrapassa qualquer limite humano de compreensão. Chego meu corpo para trás com o intuito de deixá-la passar, mas ela não parece notar. Está olhando para mim. Olhando demoradamente. Sinto as borboletas em meu estômago baterem suas asas metafóricas... Penso em dizer alguma coisa, mas Giselle passa por mim e se dirige à minha varanda. Eu a sigo. Lá, Giselle senta-se na minha cadeira de balanço e abre as páginas amareladas do meu "Sonho de uma noite de verão". Eu continuo observando-a da porta. Giselle encontra uma página qualquer e passa minutos olhando para ela. Até que começa a chorar copiosamente, parecendo mais uma criança do que a mulher adulta e sedutora de um minuto atrás. Aproximo-me dela delicadamente, com cuidado e ofereço a ela minha mão. Giselle me marca com seus olhos marejados, mas ignora a mão estendida.

Antes que eu possa me afastar, no entanto, Giselle me puxa para um abraço.

Se o mundo viesse abaixo naquele momento, seria eu o homem mais feliz que o mundo alguma vez já vira.

Meu momento, entretanto, não foi eterno. Giselle me soltou, novamente chorando, e saiu do apartamento com a mesma surpresa que entrou.

Ainda assim, dormi alegre aquela noite.

No dia seguinte, às 17h17, Giselle não apareceu.

Nem no outro.

E nem na semana seguinte.

E nem no mês. Nada de Giselle.

A sacada em frente a minha estava a cada dia mais gelada e vazia. E eu tão gelado e vazio quanto ela. A falta de Giselle era como a falta do ar que eu precisava para conseguir respirar.

No fim de dois meses sem a presença de Giselle na sacada, eu me forcei a esquecer de esperá-la.

No quarto mês a porta que dava para a minha sacada nunca mais se abria.

No sétimo mês eu havia perdido a chave.

Na noite do dia 12 de outubro, quase um ano depois do primeiro dia em que a vi, não suportei o ambiente. Pela primeira vez em toda a minha existência, que só começou a ser contada depois de Giselle, eu saí para um bar. 04h01 eu me encontro desolado e em frangalhos, mas nem um pouco bêbado. A única embriaguez que me assola é a emocional, que me dilacera e transporta minha alma fragilizada e destruída para qualquer lugar bem distante de mim.

Volto para a casa. Nada mais me resta além da certeza de que Giselle saiu para nunca mais voltar. Jogo-me na minha cama branca e choro feito um menino que acaba de ter seus sonhos roubados, feito o último cachorro da cesta que foi largado na chuva.

Naquela noite, Giselle vem até mim em meus sonhos, como em todas as noites anteriores.

Acordo às 17h13 e, em um impulso absurdo, abro a gaveta da direita e pego a chave maldita do sofrimento. Entro na sacada sem me importar com a cadeira de balanço ou o livro.

Apenas espero.

Dois séculos depois o relógio marca 17h16. Conto os segundos que parecem horas anos milênios e espaços infinitos de dor. Abaixo os olhos, sem a coragem necessária para enfrentar o que me espera do outro lado.

59 segundos depois, olho para a frente. Quase arrancando meu coração do peito, vejo que ela está lá.

Giselle sorri para mim.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Beijok's



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Da sacada" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.