Diablo - Tramas Demoníacas escrita por NickGray


Capítulo 4
Capítulo III - A Reunião




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Capítulo III – A Reunião

 

Um intenso calor emanava de todos os lugares. Chamas gigantescas chicoteavam as paredes de pedra como línguas ardentes. Crânios de todos os tamanhos e formatos surgiam entre as rachaduras, enquanto do chão emergiam imensas estalagmites de mármore, imbuídas com ossos. Gritos podiam ser ouvidos de todas as direções; sofrimento e prazer se confundiam e se tornavam inseparáveis naquele antro acinzentado. O teto parecia poder desabar a qualquer momento: estava em ruínas, como tudo ao redor. Reproduções de casas, muralhas e até mesmo castelos, todos destruídos, estavam à vista, não muito longe de onde aquele homem pisava.

Ele tentava desviar-se das fincas do chão, já quase não conseguindo prosseguir. Em segundos, novas estacas duras brotavam do piso de pedra negra e quase o atingiam. Sua bata escura estava em farrapos e seu andar curvado dava-lhe uma falsa impressão de velho indefeso. Seus cabelos, quase brancos, existiam apenas nas laterais de sua cabeça. Ele tentava andar apressadamente, mas devido à difícil locomoção, parecia quase se arrastar por entre as rochas.

Mais alguns passos e ele pôde ter a visão desejada: ao longe, jazia um imenso trono de pedra, de uns trinta metros de altura. Nas laterais, enormes bandeiras com ilustrações de escudos e morcegos pairavam quase imóveis; o ar quente que soprava no local era lento e insuportável. Sobre o trono estava uma criatura horrenda. Com enormes patas aracnídeas e um tronco humanóide, o monstro permanecia em uma posição de soberania. Com a sua mão esquerda no queixo, ele observava com deleite o seu servo se aproximar. Apêndices finos com movimentos contínuos projetavam-se do ombro magro do monstro, e mais quatro destes da sua cabeça que, repulsivamente, prolongava-se para trás. Seu peito de ossos era parcialmente coberto por um tipo de cachecol de pêlos negros e grossos que saía dos poros de seu pescoço.

O homem aproximou-se a alguns metros do gigante, então se curvou em sinal de reverência. A estranha monstruosidade aranha-homem apenas passou a unha de seu dedo indicador sobre os lábios finos e fez um movimento com a mão, aplicando uma força sobrenatural no velho, forçando-o a se levantar dolorosamente.

— Desculpe-me senhor... – sua voz era trêmula — Mas és requisitado no Salão Negro. Teus Irmãos te aguardam.

— Sim... – uma voz seca e ríspida encheu todo o ambiente, em um volume extremamente alto — Já esperava.

O homem curvado virou-se e deu alguns passos à saída. Então, a voz da criatura novamente estremeceu todo o local:

— Nihlathak! Reúna meus generais. Quero vê-los aqui quando voltar... e... continue com o trabalho, acho que também é sua hora. Seu esforço não será esquecido.

O velho se curvou em outra reverência com um discreto sorriso, ausentando-se em seguida. Pouco depois, a criatura se levantou e começou a andar. As extremidades de suas patas possuíam algo como grossas formações de quitina, que produziam um som oco ao se encontrar com o chão. Enquanto caminhava, as estalagmites em seu caminho implodiam e se despedaçavam. Antes de desaparecer em um vapor de dor e desespero, sussurrou:

— Ótimo! Muito mais rápido do que eu imaginava...

 

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A noite estava quente como sempre. As árvores ao redor eram enormes, e a luz da lua cheia projetava muitas sombras sobre aquela aldeia. As pequenas casinhas de madeira maciça e entalhada estavam todas sem iluminação. Cortinas e panos cobriam as entradas, enquanto palha e galhos secos funcionavam como teto. Logo se via que elas haviam sido construídas recentemente, e serviam apenas como moradia temporária. Somente uma forte luz, produzida por muitas tochas, iluminava um altar no centro da aldeia. Todos ali tinham a certeza de que essas eram as únicas fontes artificiais de luz em um raio de vários quilômetros.

Muitos mosquitos voavam a procura de sangue para nutrir seus ovos. Um deles pousou sobre um braço delicado e macio. Esticando seu minúsculo aparelho picador, ele o projetou para dentro daquela pele branca, poucos instantes antes de ser esmagado pela mão da mulher.

— Espero que dê certo. Os mosquitos estão me matando. – disse ela, que possuía o cabelo preso em um belo coque. Em seu rosto, tatuagens tribais desciam de suas maçãs e chegavam até o busto, em ambos os lados do corpo. Usava pouca roupa: apenas o bastante para cobrir uma parcela dos seios, a parte baixa do ventre e poucos centímetros de coxa. Suas costas e barriga estavam à mostra, somente entrelaçadas por tiras de couro preto. Ela também usava ombreiras de madeira, e botas negras seguiam até a altura dos joelhos. Seus olhos, igualmente negros, brilhavam com o reflexo do fogo.

— Acalme-se, Lorene. – disse outra mulher. Ela usava uma túnica marrom que cobria todo o seu corpo e rosto, chegando a se arrastar pelo chão. Lorene sabia que ela possuía mais de setenta anos de idade, mas, caso um desavisado olhasse sua postura ereta e robusta sob a túnica e ouvisse sua voz melodiosa, logo pensaria que os anos não a haviam afetado. — Você já cumpriu bem o seu trabalho. Realizou com sucesso uma missão tão importante. Atravessou, pela nossa Ordem, os Mares Gêmeos, e retornou. Você foi realmente muito bem.

Lorena inflou-se. Realmente, tinha que ser recompensada. Lut Gholein era muito longe dali, e ela fizera o trajeto de ida e volta em tempo recorde. Só era uma pena que os outros dois não tivessem conseguido sobreviver... um ligeiro sorriso contorceu seus lábios.

— Mas agora – disse a mulher, cortando as sádicas lembranças de Lorene —, dependemos dos feiticeiros. Eles já estão chegando.

Quando a mulher terminava de falar, Lorene ficou alerta. Ela ouviu um ruído alguns metros atrás. Tirou dois katares de sua cintura e apontou-os para o vento. Dois homens de vestes vermelhas e douradas apareceram subindo a escada do altar.

— Wow! – um deles quase teve o pescoço perfurado. — Somos nós! Pra que tanta agressividade? Estamos isolados nessa aldeia, nãos se preocupe.

Ela apenas guardou suas armas, parecidas com lâminas de trinta centímetros que se estreitavam à medida que se distanciava do punho. Elas eram empunhadas para frente, e por isso eram conhecidas por leigos como “adagas de soco”.

A mulher que acompanhava Lorene direcionou sua cabeça para os homens:

— Que bom que chegaram, feiticeiros Ammuit. Já estamos prontas para um contato duradouro.

— Boa noite, Natalya – disse o outro homem, posicionando-se, seguido pelos outros presentes, ao redor de um espelho que estava deitado no chão. As bordas do objeto, que media cerca de vinte centímetros, eram de ouro e encravadas com variadas pedras preciosas e semipreciosas. Cálices prateados, contendo um estranho e viscoso líquido vermelho, estavam nas duas extremidades do espelho.

Os feiticeiros começaram a entoar palavras estranhas, em uma língua que nem mesmo as duas mulheres entendiam perfeitamente.

— Killhar mìnus vrat! Huqq’il kolij guioviz, hûrs, byndas lupristersäng. Precevûn flortenccy! K’olíq!

Eles se entreolharam, enquanto as mulheres permaneciam ajoelhadas observando o reflexo de seus rostos. Os feiticeiros voltaram ao posicionamento de início; parecia que iam recomeçar o ritual. Mas as tochas ao redor deles explodiram em enormes labaredas, e todos se levantaram depressa.

— Funcionou! – disse um deles para Natalya, que ainda mantinha o rosto oculto nas sombras do capuz. — Agora, me dê o Livro Negro.

— NÃO! – ela virou-se rapidamente e abraçou seu corpo. Seus olhos brilharam na escuridão de sua face — Muito obrigada feiticeiros, mas vocês sabem que eu mesma desejo fazer.

Eles deram de ombros e afastaram-se alguns passos para trás. Lorene suspirou profundamente, fazendo seus seios fartos apertarem-se na roupa de couro. Ela apenas observou quando sua mestra tirou do bolso interno da túnica um livro velho, com inscrições na capa. Aquele era o Livro Negro, o precioso livro que Natalya tivera tanto trabalho para roubar há cinqüenta anos. Desde então, ela tentava traçar um grande plano e buscava o feitiço correto para fazer o contato. Conseguira, mas a comunicação permaneceu por apenas alguns segundos antes de ser quebrada. Com um pouco mais de estudo, os feiticeiros descobriram afinal que um precioso artefato poderia auxiliá-los: o Espelho de Horazon. E dessa vez eles o possuíam.

Natalya abriu o Livro Negro em uma página marcada, e então começou a entoar:

— Dos abismos mais profundos, eu vos chamo, Senhores dos Demônios. Respondeis ao Reino Mortal, despejeis vossas palavras sobre este plano. Atendeis-me, Demônios Primários, deixais vossos eternos castigos e voltais vossa atenção a mim, eu vos suplico. Que da infinita chama, vossas vozes ecoem; que através deste, vossa serva possa atender vossos desejos!

Alguns segundos de silêncio. Todos ficaram atentos, aguardando que algo acontecesse. Natalya fechou o livro com força e, guardando-o no bolso, praguejou algo. Já estava voltando-se para sair, quando o espelho começou a tremer.

Lorene sorriu e disse cinicamente:

— Tudo por aqui parece ser um pouco atrasado... – e olhou para Natalya, que não retribuiu.

Dentro do Espelho de Horazon, uma estranha nebulosa de muitas cores girava rapidamente. Algum tempo depois, os quatro estavam com as mãos nos ouvidos. Havia funcionado! Gritos extremamente agudos ecoavam em suas mentes. Entretanto, todas as outras pessoas da aldeia pareciam dormir com calma sob o cricrilar dos grilos. Aquele ritual era do interesse de todos naquele lugar, mas fazê-lo em segredo impedia que a informação vazasse ou que algo saísse errado por interferência alheia. Exatamente por isso, Natalya ordenara que Lorena desse um sumiço em seus prévios parceiros de missão; eles não eram inteiramente de confiança; ninguém era. Esse era um passo pequeno, porém extremamente importante para o andamento do plano.

— Sim... – uma voz que queimava os ouvidos saiu de algum lugar, dessa vez ecoando alto na floresta. — Você conseguiu... manteve-se fiel a nós e provou ser digna novamente!

Um semblante vermelho e com dois grandes chifres retorcidos começava a se tornar visível na superfície daquele, agora comprovado, poderoso espelho. Natalya voltou-se para ele, seu cérebro retornando ao normal após a diminuição dos ruídos dentro de sua mente. Algumas luzes se acendiam pela aldeia, mas nenhum dos participantes do ritual parecia notar ou mesmo se importar mais com aquilo, já que o contato já estava em andamento.

O rosto vermelho e escamoso se distanciou da superfície do espelho, e o estranho monstro, parecido com um réptil bípede, chegou para trás e posicionou-se ao lado de outras duas figuras grotescas.

— Sim, Diablo, Senhor do Terror, nosso plano começa a ganhar forma – Natalya parecia extremamente excitada com tudo aquilo. — E claro, Baal, Senhor da Destruição e Mephisto, Senhor do Ódio. Sua servente fiel está pronta para a sua tarefa.

O monstro vermelho era, como todos ali sabiam, Diablo, o Senhor do Terror, um dos três Demônios Primários. Ele estava localizado à extrema esquerda de uma enorme sala totalmente negra, com estranhas criaturas de sombra pairando e emitindo sons aterrorizantes atrás. Ele possuía uma pele com grandes escamas fulgentes. Uma enorme cauda balançava em cima do chão, e sobre ela subiam duas fileiras paralelas de espinhos negros, que chegavam até o pescoço do demônio.

Na ponta direita constava Baal, o Senhor da Destruição. Seu corpo aracnídeo era repugnante, e seu poder e astúcia eram lendários.

No centro, encontrava-se o mais horrível dos Demônios Primários. Mephisto, o Senhor do Ódio, não possuía pernas. Em seu lugar, uma nuvem eletrificada flutuava a metros do chão, contendo em seu meio apenas uma cauda óssea que pendia da terminação da sua coluna vertebral. Seu tronco era formado quase que somente por costelas expostas e pele alaranjada. Quatro apêndices caiam de seu corpo, dois de suas clavículas e mais dois dos lados de seu lombo descarnado. Os braços, extremamente longos, eram também formados excepcionalmente por ossos e pele, que terminavam em mãos finas e duras. Seu pescoço magro levava a uma cabeça com o crânio alongado para trás, com dois chifres que se curvavam levemente para cima. Seus olhos eram da cor de polidas safiras.

— Pois bem... – a voz gélida de Mephisto fez todos tremerem. — Seu trabalho foi esplêndido, Natalya, e agora devemos continuar.

Baal tomou frente e disse:

— Após séculos – bem – apenas décadas para vocês, mortais, ficamos ansiosos pelo momento que se aproxima. Nossa caminhada pelo Santuário foi interrompida, mas nosso retorno será triunfal. Os Três dominarão de uma vez por todas os humanos, e depois... – sua língua passou pelos seus lábios — Os portões dos Céus serão subjugados e ondas massivas de Destruição, Terror e Odio correrão pelas nuvens! E choverá sangue, agonia e dor!

A voz do demônio estava preenchida com o sabor da vitória. Entretanto, Natalya sabia que ainda teriam muito a fazer.

Durante todo o tempo da conversa, pessoas saíam de suas casas e ficavam ao redor do pequeno altar, que era coberto por um teto envolvido por trepadeiras. O murmúrio aumentava, e Baal se sentia incomodado. Ele era o mais ansioso, e seu nervosismo era aparente no roçar de suas mãos.

— BASTA!

Seu grito seco ecoou pelas árvores, e muitos pássaros levantaram vôo apavorados. As pessoas encolheram-se paralisadas e silenciaram imediatamente, permitindo que a conversa continuasse.

Mephisto deu as ordens seguintes:

— Agora, minha pequena... você deve viajar.

Natalya balançou a cabeça verticalmente, e o demônio continuou:

— Como conseguimos dialogar em nosso primeiro e rápido contato, não há aberturas atualmente que permitam a passagem de energia suficiente para o nosso retorno ao Santuário. Nós pensamos, e encontramos uma maneira de abrir essa mesma fenda espectral que vocês estão usando para se comunicarem conosco. Essa é uma das maiores aberturas que conseguimos localizar e, energizando-a, seria possível a passagem de pelo menos um de nós. Depois... bem, creio que você saiba. Afinal, o plano original é seu.

Ela sorriu nas sombras e olhou para Lorene, que piscou vagarosamente.

Os Demônios Primários se entreolharam, e Diablo continuou:

— Sua missão é difícil de ser concluída – sua boca quase não se movia enquanto ele falava. — Chegamos ao acordo de que, utilizando os poderes das Pedras-Alma, vocês poderão canalizar poder espiritual o bastante para intensificar essa fenda espectral.

Os feiticeiros contraíram as sobrancelhas, e Lorene falou, surpresa:

— Mas pelo que fui instruída, as Pedras-Alma estão destruídas! Até mesmo os seus núcleos, uma vez usados por vossas senhorias, foram destruídos na Forja Infernal. Como poderíamos usar os seus poderes, se elas não mais existem?

Diablo sorriu e seu rosto se contorceu de modo estranho. Baal respondeu rapidamente:

— Natalya. Você não parece ter doutrinado seus aprendizes corretamente. Como uma informação tão importante pôde passar em branco?

— Desculpe, senhor. Não achei que poderia ser útil de alguma maneira. E–

— Achou? – ele a interrompeu — Pensei que pregassem que o conhecimento fosse a arma mais poderosa, mortal. Sua Ordem não deve omitir nenhum fato de seus instruídos, pois só assim eles poderão realizar seu trabalho conforme deve ser feito. TODOS DEVEM SABER DE TUDO!

Sua voz podia ser ouvida a quilômetros de distância, ressoando como o bater de um martelo em uma placa metálica. Ele continuou:

— Aproximem-se. Venham e conheça todos os fatos. Sua ordem de assassinos está prestes a receber uma missão que nunca antes foi confiada a mortais: a quebra das barreiras entre os Planos, a libertação dos Irmãos e suas hordas sobre o Santuário!

Todas as pessoas que se esgueiravam pelo local chegaram para mais perto do altar. Mulheres e homens vestidos como Lorene, ou com o corpo totalmente coberto com um pano negro. Havia, ainda, feiticeiros Ammuit, de ambos os sexos, com batas e mantos das mais diversas cores, segurando cajados, cetros e orbes. Não parecia haver mais ninguém em suas casas: todos estavam ao redor do local em que Natalya, a chefe do clã, estava se comunicando com os Demônios Primários, um feito que jamais seria esquecido por nenhum presente. Baal então continuou:

— Diga, Natalya, diga... – e levou dois dedos aos lábios, como se tentasse silenciar a si mesmo.

Ela abaixou o capuz de sua túnica, revelando um rosto branco e muito jovial. Seus cabelos curtos eram rebeldes, e seus olhos brilhavam, apertados. Apesar de sua idade biológica, ela aprendeu segredos de juventude prolongada pela obtenção do Livro Negro. E muitos segredos ainda se ocultavam entre aquelas páginas manchadas.

Natalya abriu a boca e uma voz flutuante e tranqüila, mas ao mesmo tempo determinada, chegou a todos:

— Como vocês sabem, os Demônios Primários foram aprisionados dentro das Pedras-Alma em sua primeira estadia em nosso plano. Para a sua libertação, generalizando, as poderosas Pedras tiveram que ser quebradas. Eles então possuíram um corpo humano e, sabendo do poder mágico daquelas Pedras, imbuíram seu novo corpo com o seu núcleo. Quando foram banidos novamente para o Inferno, esses núcleos foram destruídos na Forja Infernal. Entretanto – ela levantou a cabeça e respirou fundo, — lascas menores das Pedras ainda existem no mundo mortal.

Todos cochicharam por alguns instantes, mas pararam logo para ouvir o que mais ela tinha para dizer. Porém, quando ela abriu a boca, Mephisto a interrompeu com um assovio irritante.

— Obrigado Natalya. Deixe-me continuar... – ele aproximou-se da superfície do espelho de modo que seu rosto tomasse conta de quase toda a visão. Falou:

— As Pedras Alma eram artefatos poderosos... muito poderosos! Mesmo quando quebradas, seu poder ainda podia ser sentido até mesmo por um mero mortal. E eu... – disse, olhando para os Irmãos — Eu fui o único a utilizar toda a essência da minha Pedra-Alma!

Diablo e Baal contorceram suas faces. Sabiam que era próprio de seu velho Irmão vangloriar-se. Mas o Senhor da Destruição não se calou:

— E mesmo com todo esse poder, caro Irmão, a sua derrota foi a primeira a ser atingida – disse ele, claramente irônico.

Mephisto olhou-o com desprezo, mas continuou:

— Bem, como sabem, após ter sido aprisionado sob a Torre Guardiã em Kurast, eu utilizei-me do conhecimento sobre o meu próprio cárcere – a Pedra-Alma –, e com o seu poder consegui projetar minha influência sobre os meus guardiões. Os Horadrim foram idiotas em confiar algo àquelas Crianças de Zakarum, devotos de uma religião de fácil corrupção, como eu mesmo provei.

Diablo passou uma garra pelo queixo, acariciando um de seus espinhos. Eles não tinham tempo para histórias, Mephisto poderia se mostrar em outra oportunidade! Mas o demônio sem pernas continuou:

— Não foi fácil. Trabalhei durante séculos, mas finalmente consegui influenciar os mais fracos com o meu poder. Em seus sonhos, eu os corrompia com meu ódio, fazia facilmente com que eles se voltassem contra seus superiores e contra a própria Religião Zakarum – e o melhor, tudo isso sem o menor conhecimento ou interferência de Khalim, o Que-Hegan – ele pigarreou e continuou. — Então, eu finalmente consegui obter poder sobre Lazarus, o Alto Sacerdote a cuja minha Pedra-Alma estava sendo confiada. Ele era forte, mas havia em seu peito muita ganância e sede de poder; e após alguns anos, ele caiu sob minha influência.

Natalya ouvia tudo sem piscar. Ela sempre admirou Mephisto mais que os outros dois: ele demonstrava ser o mais argucioso e potente, além de ótimo estrategista. A assassina conhecia tudo sobre a Religião Zakarum: uma vez forte em várias partes do mundo, atualmente não muitos mais a seguiam, devido aos fatos decorrentes no passado. Apenas os mais crentes e fiéis não foram desencorajados pela corrupção espalhada pelos Três. Abismada por aquela experiência, ela se mantinha imóvel.

— E então, um grande passo foi concluído: a morte de Khalim foi o início para o meu plano! – ele passou languidamente a língua em seu queixo fino e prosseguiu. — Como líder, a sua morte desestruturou ainda mais a Religião da Luz. Eventualmente, um novo Que-Hegan foi nomeado. Ele era Sankekur, um homem extremamente poderoso, mas não incorruptível como seu antecessor. Eu tinha certeza que logo o seu coração seria meu!

“Entretanto, o novo líder era arrogante demais. Observando o estranho comportamento de Lazarus, ele conseguiu com que ele deixasse o seu posto de guardião da Pedra-Alma. No início, Lazarus quis liderar uma guerra interna, mas então eu contei-lhe dos meus outros planos. Induzi-lhe a viajar para o ocidente, na companhia de um grande rei, com a desculpa de espalhar as doutrinas da Religião. Creio não precisar dizer para onde ele foi, não é?

Lorene sorriu, e Natalya abaixou a cabeça em consentimento.

— Não se preocupe, todos aqui sabem o quão importante foi a sua maquinação desde o início, Senhor do Ódio.

O Demônio Primário sorriu, mas Baal também estava impaciente:

— Isso não importa agora, Irmão! Não tome todo nosso tempo com suas histórias, deixe-nos prosseguir com as ordens!

— Não me interrompa, não pretendo falar por uma era!

Natalya e Lorene estavam surpresas. Não sabiam que os Demônios Primários discutiam tanto entre si. Com um pouco mais de reflexão, perceberiam logo que isso era exatamente o que deveria acontecer. Caos era o objetivo dos moradores do Inferno, e essa era a sua natureza.

Baal cerrou os olhos de modo ameaçador, mas Mephisto apenas tomou frente ao espelho novamente e continuou o seu discurso:

— Após a partida de Lazarus, eu já podia enterrar mais fundo a semente de meu ódio no coração de meus futuros seguidores. Em pouco tempo eu já conseguia dominar alguns poderosos sacerdotes, e finalmente utilizei-me de sua magia para me libertar. Eles partiram minha Pedra-Alma, e meu espírito se viu livre novamente. Mas eu precisava de um corpo poderoso, e me instalei em Sankekur. Ele era resistente, sim, mas não podia contra o poder do Ódio!

Diablo não conseguiu mais evitar: soltou um urro grave e extremamente alto, levantando a sua cabeça de escamas vermelhas e reluzentes. Mephisto fechou os olhos e virou-se para o Irmão, dizendo algo em uma língua estranha. Ao som dessas palavras, algumas pessoas caíram ao chão e começaram e se retorcer. O Senhor do Terror ignorou as palavras de Mephisto, e então disse através do Espelho de Horazon:

— Já chega! Não podemos continuar com isso. Cale-se Irmão, é a nossa vez de falar!

Relutante, Mephisto olhou para os outros Demônios Primários. Ele então flutuou alguns metros para trás irritado, mas deixando que Diablo seguisse com as palavras.

— Nada disso possui muita importância. Nosso Irmão estava querendo chegar ao fato de ter utilizado as outras lascas de sua Pedra Alma em seus arcebispos. Isso os deixou fortalecidos, apesar de não o suficiente.

Ele posicionou-se ao lado dos outros Irmãos, deixando todos à vista dentro do espelho.

— Então, as lascas da Pedra Alma de Mephisto ainda se encontram em algum lugar de Travincal, a antiga cidade templo de Kurast, onde os arcebispos Zakarum foram eliminados há meio século de seu tempo. E vocês devem reuni-las, a maior quantidade e o mais rápido que puderem.

— Sim, mestre do horror, faremos o que nos for ordenado – Natalya era firme em sua voz, apesar de seu coração estar disparado de emoção. Ouvir os Demônios Primários em suas conversas, discussões, receber suas ordens diretamente; tudo extremamente estimulante.

— Mas vocês precisam conhecer a localização das lascas das outras duas Pedras-Alma. Devo imaginar que isso não é um mistério, sim?

Natalya sorriu. Ela sabia exatamente onde elas estavam. Mas...

— Desculpe-me, senhor. – ela demonstrava um enorme respeito pelo demônio — Mas elas não seriam deixadas tão desprotegidas.

Diablo contorceu o rosto, mas foi Baal quem disse as palavras seguintes:

— Não, querida – palavras cobertas por uma falsa melancolia — As lascas que foram levadas para estão protegidas por guerreiros sagrados, sem dúvida. Mas saiba eles não estão lá para proteger as lascas, mas por um motivo ainda maior, e que seria possível recuperá-las com um pouco de jogo sujo sem que haja muita luta, e já estamos trabalhando nisso. Mas as lascas da Pedra-Alma de Mephisto e de Diablo não devem ser protegidas por guerreiros muito poderosos. Não creio que pensassem que aquelas pequenas lascas representassem perigo a ponto de guardá-las com seres sagrados. Mal sabem o quanto estão enganados! Ainda assim, nada disso deve parar sua Ordem!

A assassina de túnica encheu o peito de orgulho. Fora elogiada pelo próprio Senhor da Destruição. Disse:

— Sim. Estamos prontos para o cumprimento da tarefa que nos levará ao triunfo sobre os outros mortais.

— Bom! – disse Baal com os olhos maliciosos. — Muito bom!

Natalya passou a mão por seu cabelo curto, assimilando as informações. Então ela deveria reunir quanto mais lascas pudesse, para energizar a fenda espectral e libertar um dos Demônios Primários. Parecia um trabalho árduo.

— Mas tenho ainda algumas dúvidas...

— Sim, querida... mas seja rápida – Baal ficou sério subitamente. — Consigo sentir através de nossa ligação. Vocês não estão completamente sozinhos.

Natalya, com apenas um movimento de mão, ordenou que homens e mulheres, já treinados e designados para o trabalho, cercassem a pequena aldeia e ficassem de tocaia, guardando todo o local.

— Rápido! Eles já estão muito próximos! – apressou o demônio.

— Como poderemos realmente abrir ainda mais essa fenda espectral? Não acho que apenas energizando-a com as Pedras ela se tornará apta a permitir a passagem de um dos Três.

O Senhor da Destruição olhou para os lados e falou com pressa:

— Não há tempo agora! Vocês terão que fazer outro conta–

E o espelho refletiu o rosto da assassina. As tochas diminuíram seu fogo e Natalya, assustada, examinava tudo. O que aconteceu? Senhores!

— ELES ESTÃO AQUI! – um dos assassinos que guardavam a parte sul da aldeia gritou alto, e em seguida um raio caiu sobre um dos feiticeiros que estavam ao lado de Natalya, deixando-o tremendo no chão como um epilético.

— Desgraçados! – ela murmurou. — São os malditos Vizjerei! Vamos Lorene! Chegou a hora de testar as suas habilidades de verdade!

Natalya agarrou o Espelho de Horazon e o colocou no bolso interno, ao lado oposto do Livro Negro.

— Ela está ali! – gritou um homem que trajava uma bata vermelha e prata, segurando um enorme cajado de madeira retorcida. Ele apontava para Natalya. Ela olhou para Lorene e saltou para o lado, bem a tempo de uma enorme bola de fogo atingir o altar, que nada sofreu.

A mulher de túnica pulou para frente, tirando duas garras de sua cintura. Elas funcionavam como katares comuns, mas no lugar de uma lâmina larga, três menores e extremamente afiadas se projetavam para frente. Sem piedade, ela as passou no pescoço de um dos feiticeiros inimigos. Ele caiu sobre uma pedra e seu sangue brilhava sob a lua cheia enquanto escorria para a terra, que o absorvia com uma incrível sede.

Lorene tirou do bolso muitas estrelas de metal – shurikens –, e as lançou no meio da batalha. Apesar de haver muitos assassinos e feiticeiros aliados em sua frente, nenhum deles foi atingido. Apenas os Vizjerei tombaram com seus corpos e crânios perfurados.

Quase todas as casas de madeira já estavam em chamas, enquanto árvores ao redor congelavam formando uma grossa barreira de gelo... Os Vizjerei pareciam determinados a não deixar ninguém fugir, a ponto de arriscarem a sua própria vida para isso. A batalha teria que terminar ali, de qualquer maneira.

Dois feiticeiros Ammuit permaneciam atrás de Lorene. Eles pareciam recitar um encantamento, um tipo de ritual. Ela percebeu a importância do ato aliado, então se colocou de guarda. Qualquer um que se aproximasse era morto pelos shurikens da mulher.

Os assassinos da ordem de Natalya estavam prejudicados. Sofreram poucas perdas, mas os Vizjerei estavam em grande vantagem. Recuando, todos eles começaram a se reunir ao redor dos dois feiticeiros Ammuit que estavam sob a proteção de Lorene. Era a única esperança. Aqueles malditos Vizjerei pareciam ter acertado dessa vez, finalmente conseguiram pegá-los em desvantagem numérica, em um ataque surpresa.

Juntos, os subordinados de Natalya formavam um tipo de barreira humana, enquanto lançavam bombas de fogo e estrelas de metal. Os poucos Ammuit sobreviventes, apenas dez ou onze, entravam no círculo se unindo aos outros dois na realização daquele encantamento. Natalya respirou profundamente. Ainda havia uma chance.

Os Vizjerei continuavam vindo, alguns sendo explodidos pelas bombas lançadas pelos assassinos, outros tendo os pescoços arrancados por lâminas negras voadoras. Um deles, provavelmente o líder, levantou o seu cajado. Ele entoou algumas palavras em sua língua, mas que Natalya conseguiu identificar. Não era nenhuma bênção ou galanteio.

Sobre seus aliados, nuvens brancas começaram a constituir-se.

— Mantenham a formação! Não fujam! – ela gritava, e todos obedeciam.

A líder olhou para trás, mas os feiticeiros continuavam entoando as suas palavras. Se demorassem muito, seus destinos eram certos: encontrariam seus mestres no Inferno.

Outros Vizjerei fizeram surgir enormes flancos de gelo ao redor dos inimigos, deixando-os realmente sem lugar para fugir. E sobre eles, uma intensa tempestade parecia se compor. Sons estranhos vinham de cima, e eles podiam apenas ficar imóveis. Estavam perdidos! Natalya segurou suas garras e cruzou-as sobre a cabeça, na tentativa de barrar o que quer que viesse do céu.

Com um enorme estrondo, tudo ficou branco. Durante alguns segundos, Natalya pensou ter morrido. Aos poucos, abriu os olhos e viu, acima de sua cabeça, inúmeros fios de eletricidade serpenteando lentamente para baixo. Olhou para trás e viu os Ammuit caídos e inconscientes. Isso era exatamente o que deveria acontecer.

— Funcionou! Rápido, peguem os Ammuit e... matem todos os outros!

Com movimentos rápidos, os blocos de gelo que os detinham foram cortados em cubos. Os assassinos os chutaram para frente, mas eles não caíram, pareciam ignorar a gravidade. Quando a visão exterior foi liberada, eles viram que tudo estava praticamente imóvel. Os Vizjerei pareciam não se mover.

— O Feitiço de Parada do Tempo não durará muito! Eliminem-nos!

Em menos de um minuto os assassinos haviam passado suas armas nas gargantas de todos os feiticeiros Vizjerei. Eles ainda estavam de pé e pareciam não ter consciência da sua morte. Nenhuma gota de sangue pingava, e todos do clã de Natalya se reuniam novamente.

— Vejam... – disse a chefe, passando a mão sobre o ombro de Lorene – Veja como seria a nossa morte.

Ela mal acabou de falar quando inúmeros raios atingiram o círculo de gelo onde eles estavam anteriormente. Por incontáveis segundos, eles caiam com uma velocidade enorme, fazendo um som ensurdecedor e provocando pequenas descargas elétricas no corpo dos assassinos, mesmo àquela distância. Ninguém olhou, mas ao mesmo tempo sangue voava e cabeças rolavam no chão ao redor deles. Finalmente, o centro do círculo de gelo estava quase um metro mais fundo e a terra estava tão quente que exalava uma fumaça acinzentada.

Natalya suspirou, observando o solo vermelho e as casas flamejantes. Ela então tomou frente a todos e disse, de maneira imperial:

— Não importa como eles nos descobriram, não há tempo para discutir isso agora. Peguem tudo o que puder valer alguma coisa, pois partiremos imediatamente. Temos uma importante missão a cumprir. A humanidade nunca será a mesma, e nós, a Ordem de Assassinos Amm-Jaq’keer seremos dominantes! Teremos à nossa disposição os poderes do Céu e do Inferno, reinaremos sobre muitas terras como dirigentes dos Três. Teremos poder infinito, e nossas vidas mudarão para sempre. Nosso destino está selado à vitória!

Ela virou-se e caminhou, sob gritos entusiasmados de anuência. Longe de todos, seus lábios esticaram-se em um largo sorriso. 

 


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