Diablo - Tramas Demoníacas escrita por NickGray


Capítulo 3
Capítulo II - Um Lar Distante




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Capítulo II - Um Lar Distante

 

Na entrada da tribo havia machados cruzados e pendurados sobre duas edificações de madeira formadas com cabeças de lobos entalhadas, conhecidas como totens. Era o símbolo sagrado da tribo, e todo machado que fosse produzido ali possuía um emblema em formato de lobo no cabo. Os de Heoragar não eram diferentes.

Casas de pedra, algumas com fumaça saindo de chaminés finas, ficavam espalhadas pela planície artificial. Aquele não era o local original da tribo, eles tiveram que migrar para lá quando a destruição subia e se espalhava pelo Monte Arreat e suas proximidades. Mesmo não estando tão próximos à montanha, eles decidiram migrar alguns quilômetros para o leste, para garantir a sobrevivência. Sempre viveram em um clima difícil, e eles conseguiram se adaptar sem muitos problemas ao novo local. Tiveram que planar as colinas mais íngremes, mas não foi muito difícil reconstruir a tribo. As Crianças de Bul-Kathos, como os bárbaros se autoproclamavam, eram um povo forte e robusto, e não se entregavam facilmente.

No centro da tribo estava a casa de Poltruc, e Heoragar imaginava o que sua filha estaria fazendo naquele momento... talvez misturando ervas de cura, ou quem sabe lendo livros chatos sobre premonições.

Heoragar nunca aprendera a ler, sempre preferiu treinar, ficar sempre em movimento. Era sabido que a maioria dos homens só possuía livros em suas casas se suas esposas ou mães fossem curandeiras ou Anciãs. Essa última opção era rara, pois só era permitido a uma mulher utilizar magia se ela fosse a última de sua linhagem, ou se fosse uma escolhida. Iany praticamente não tinha escolha: era a última de uma família de procedência mágica e possuía os olhos especiais.

A casa do bárbaro ficava do outro lado da tribo, e ele teve que atravessar todo o local. Não existiam muitas casas, mas elas eram bastante distanciadas, permitindo que a tribo crescesse. Todos estavam dentro de seus domicílios, se preparando para o ritual de comemoração da “Ascensão de Madawc”.

— Mãe! Cheguei! – disse Heoragar ao bater forte na maçaneta e abrir a porta facilmente. Jogou a corça no chão e fechou a porta atrás de si.

Poucos segundos depois, Martha saltou em seu colo, suspirando profundamente. Ela estava nervosa, com o rosto molhado:

— Graças aos Antigos! Pensei que você tinha ido embora!

— Ido embora? – ele estava confuso — Mãe, quem te disse que eu iria embora?

Ela ficou sem graça, mas disse em seguida:

— Foi o Jurg... ele me disse que você não voltaria mais... ele me falou que você tinha conversado com ele antes de sair e...

Heoragar ficou zangado, e bateu com força na mesa que estava em sua frente. Ela virou, derrubando os pratos de metal que sua mãe havia colocado sobre ela. Para a sorte da mulher, estavam vazios.

— Aquele desgraçado! Ele gosta de falar idiotices, não é? Vamos ver o que ele vai fazer depois de ter a boca quebrada! – Heoragar afastou sua mãe e abriu a porta com força, saltando para fora e se dirigindo a uma casa próxima. Chegando lá, abriu a porta com um chute e entrou gritando:

— Jurg! Apareça, seu idiota! – seu rosto estava vermelho e seus punhos fechados.

Uma cabeça surgiu no outro lado, espiando cautelosamente. Seus cabelos mal-cortados e seu nariz curvado eram inconfundíveis.

— Desgraçado! Volte aqui! – disse Heoragar, vendo que a cabeça se escondera ao ser vista. Ele correu e encurralou Jurg no quarto, próximo à cama.

— Por que você disse aquilo à minha mãe? – edirecionou  um soco no rosto do homem. Ele colocou a mão na frente, mas o ato apenas fez com que sua própria mão atingisse seus dentes, impedindo que Heoragar se cortasse.

— Desculpe... – Jurg era um homem forte, com o corpo quase tão trabalhado quanto o de Heoragar. Entretanto, sua força parecia ser três vezes menor — Você me fala isso às vezes... pensei que você tivesse ido de uma vez...

Martha tocou o punho do filho quando ele se preparava para dar outro soco, impedindo que ele concluísse o pretendido.

— Não tem importância! Já passou, Heo! Não precisa criar confusão por causa disso... – ela parecia realmente preocupada.

Jurg estava sangrando. Sua mão estava cortada, assim como a sua boca. Ele caminhou, encontrou seus pais e seguiu para a cozinha, murmurando algo. O coração de Heoragar estava disparado, ele não conseguia se conter quando alguém brincava com sua mãe. Ela era a única naquela tribo que era sincera com ele, ela era a única que realmente o amava.

Martha o abraçou, deu-lhe um beijo no rosto e disse:

— Vamos voltar. Precisamos nos preparar para a festividade...

— Droga de festa... – ele estava apenas nervoso. Na realidade, ele sempre gostou da “Ascensão de Madawc”, sentia-se como se algo de bom pudesse acontecer com ele em uma daquelas noites quentes e alegres.

Eles deixaram a casa, Martha se desculpando para os pais de Jurg no lugar de seu filho. Eles estavam perplexos, não se atrevendo a falar uma única palavra. Ela então correu para arrumar a bagunça que Heoragar tinha feito em sua própria casa. Havia pessoas em frente à casa de Jurg, agitadas e curiosas, querendo saber o que havia acontecido. Os pais disseram ter havido apenas um mal entendido, e a confusão se dissipou forçadamente em seguida.

 

Heoragar tomou banho com água aquecida por sua mãe, e então se dirigiu à cozinha para ver como andava a corça. Martha já tinha tirado o couro, limpado-o e pendurado-o do lado de fora da casa. As entranhas do animal também já haviam sido removidas, e ela começava a temperar a carne. Heoragar sentou-se em uma cadeira, observando o serviço de sua mãe. Ela era uma mulher alta e forte, como todo o seu povo. Passava sal pela carne e a apertava, quando soltou uma frase:

— Seu avô realmente gostava de cervos... – ela passou o dorso da mão sob os olhos.

Heoragar ficou sem fala por alguns momentos, mas disse:

— Me desculpe mãe... eu sei que ele era seu pai e tudo mais... mas a senhora sabe que eu não suporto falar daquele velho. Ele era um covarde.

A mão de sua mãe tremeu, mas ela se controlou. Sua voz saiu um pouco mais tensa que o normal:

— Mas não se esqueça que foi pela covardia de Hekur que você está aqui hoje, Heoragar! Se nós não tivéssemos saído do caminho de... – ela parecia hesitar — ...de Baal... – fez uma pausa em seguida — ...você não estaria aqui. Eu também teria morrido, e você não chegaria a vir a esse mundo.

O homem virou o rosto indiferentemente.

— Não importa! O que interessa é que ele fugiu, algo que nenhuma Criança de Bul-Kathos deveria fazer. Ele abandonou a sua tribo, e por isso não merece a minha admiração.

— Eu duvido que Bul-Kathos, nosso Grande Rei Ancestral, iria querer que uma de suas tribos fosse extinta. Todos que estão aqui hoje sobreviveram apenas pelo fato de terem fugido à destruição. É pela covardia daquelas pessoas que a tradição do machado não teve fim. Nós devemos honrá-los, nós devemos agradecê-los. Eles... nós... fizemos o que era certo, e duvido que alguém se arrependa de ter escolhido a vida. O Senhor da Destruição não tinha piedade... – um suspiro e algumas lágrimas — Você não estava lá. Você não sabe como foi terrível assistir à ruína de nossa linhagem, de nossa cidade... de nossa vida.

Ela terminou de passar sal e condimentos na carne, sem dizer uma palavra por vários minutos. O clima estava tenso. Apesar do comportamento dele, ela não queria brigar com seu filho. Mudando de assunto, perguntou:

— O que você fez com a cabeça dessa corça, Heo?

Ela parecia estar gostando de discutir. Desde que ele havia voltado do treinamento, o clima só piorava... e iria piorar mais: ele sabia que ela não gostaria da resposta, mas disse a verdade:

— Eu dei pro Hu-Ken.

Ela virou e o encarou com um rosto de decepção. Dessa vez foi inevitável se descontrolar; sem tirar as mãos da carne, soltou alto:

— Já te pedi para não ficar andando com aquele Abominável! Ele é perigoso!

— Não gosto quando vocês os chamam assim! Não vejo nada de abominável naqueles animais. Eles são inteligentes, e são ótimos amigos.

— Tá, tá... sei que você conseguiu domar um daqueles monstros, mas isso não quer dizer que todos os outros sejam bonzinhos.

— Eles não são bons ou maus. Apenas tentam proteger o seu território... Olha mãe... – ele suspirou profundamente — A senhora precisa aceitar que tenho dons... que posso fazer coisas que os outros não podem. E por isso não posso ficar aqui, sendo tratado como se não fizesse parte da sociedade. Não acredito que terei de viver toda a minha vida agüentando desaforos e ofensas por ser diferente.

Martha apenas tossiu e colocou a corça em uma enorme bandeja de ferro. Lavou a mão em um balde de água e passou por seu filho, indo para seu quarto. Ele também estava carrancudo, mas foi atrás.

— Vá se arrumar. – disse ela — A festa já vai começar.

Ele virou o rosto e dirigiu-se ao seu quarto, ao lado do dela. Encostou a porta de madeira cortada e pulou em seu colchão de palha, que era colocado sobre um enorme bloco de pedra entalhada. Sua mãe o amava, ele sabia disso, mas ela nunca o aceitaria. Todos os outros eram normais. Treinavam muito, mas não deixavam os seus afazeres de lado. Caçavam sempre, cuidavam das criações. Tinham vidas sociais, namoravam, trabalhavam com a família. Só ele não agia como os outros, e percebia que isso incomodava a todos. Martha ficava preocupada sempre que ele saía de casa, esperando que ele nunca mais voltasse; o que Jurg havia falado não de todo mentira: várias vezes ele havia comentado com o vizinho a vontade de fugir e desaparecer no mundo. Mas seu coração não permitia. Ir embora sem avisar não era o que ele acreditava ser o melhor a fazer, e ao mesmo tempo não tinha coragem de dizer para Martha que deixaria a tribo para... vagar por aí. Tinha medo de ferir seus sentimentos de uma maneira que não teria mais volta.

Ele colocou as mãos atrás da cabeça, sonhando com o que havia além de todo aquele gelo. Observava as cabeças de animais penduradas na parede: havia uma cabeça de cervo, uma extremamente grande de um urso, e algumas de lobo. Mas a que ele mais se orgulhava não estava mais ali. Era um estranho animal que ele havia encontrado dois anos atrás.

No dia Heoragar havia discutido com sua mãe, e fora até as proximidades da montanha onde costumava treinar, conhecida apenas como Cordilheira Norte, procurando por seu amigo grandão. Quando avistou a caverna correta, um horrendo monstro saltou em sua frente. Ele possuía um rosto de javali, porém com olhos vermelhos e dentes maiores que o normal. Mas essa era a parte normal de sua descrição. Além, ele tinha o tamanho de uma criança de dez anos, andava sobre duas patas e possuía uma camada de couro grossa e muito resistente em suas costas, incrustada com nódulos ossudos.

Quando o monstro o viu, abriu a boca e emitiu um som horrível que desde então ecoa nos sonhos do bárbaro. A criatura tentou fugir para dentro da caverna, mas foi surpreendida por Hu-Ken e alguns de seus amigos. Encurralado, saltou para cima de Heoragar, cravando seus dentes sujos na clavícula do bárbaro, enquanto tentava arranhar suas costas com garras enormes. Heoragar quase caiu, mas tirou um machado imediatamente de seu cinto. Decepou a criatura com um único golpe.

Quando chegou em casa com seu troféu, ele o pendurou em seu quarto, chamando todos para ver. Quando os mais velhos da tribo olharam aquela cabeça, quase pareciam ter um ataque. Eles afirmaram que aquela criatura era um demônio, que havia sido trazida pelo Senhor da Destruição. Bem, se era apenas um animal estranho ou realmente um demônio ele não tinha certeza, mas teve que se livrar imediatamente daquela coisa. Poltruc queimou-a na fogueira de chama azul, dizendo que assim purificaria o local.

Ninguém falou diretamente, mas Heoragar ouviu muitas conversas e fofocas. O fato pareceu apenas aumentar o receio que as pessoas tinham dele; diziam que ele tinha atraído aquele demônio, que ele era uma ameaça a segurança da tribo.

Heoragar franziu a testa ao lembrar desses acontecimentos. Por quantos constrangimentos ele havia passado, as pessoas saindo de perto quando ele passava, raramente conversando com ele. Na verdade, a maioria da tribo apenas dirigia-lhe a palavra quando ele perguntava, e as respostas eram quase sempre monossilábicas.

O bárbaro passava a mão na cicatriz que ele havia ganhado no dia da luta contra o monstro quando ouviu sua mãe abrir a porta. Saltou apressadamente e disse:

— Já estou indo... – e tratou de pintar o corpo com os símbolos do ritual. Um grande rosto de lobo negro, bem no centro de seu peito nu, brilhava com a luz da lua que entrava pela janela. Uma grande cômoda com prateleiras portava suas roupas, seus cintos, seus suspensórios e seus machados afiados. Ele pegou uma máscara solitária que ficava na parte mais alta e colocou-a no cinto, prendendo-a com uma amarração leve. Parecia ser feita com ossos, e dentes foram colocados sobre os olhos. Com seus dois machados na cintura, ele saiu do quarto e juntou-se à sua mãe. Ela estava parada na porta, observando as pessoas saírem de suas casas.

Na parte central da tribo, bem ao lado da casa do Ancião Poltruc, havia uma enorme mesa de pedra recentemente colocada. Sobre ela, uma estatueta de bronze, reluzente com as velas ao redor. A mesa era cercada de cadeiras grandes de madeira. Entre os assentos e a mesa, havia um espaço largo, de seis ou seis metros e meio, que era usado para a dança. Várias pessoas já estavam sentadas, e outras chegavam sorrindo e cantando. Todas usavam algum tipo de máscara feita por elas próprias; mesmo as crianças, apesar de as delas serem geralmente de galhos e pedrinhas amarrados.

— Vamos, Heo! – sua mãe estava empolgada: já usava a sua máscara de pedra polida. Ela agarrou o filho pelo braço e correu tentando puxá-lo, mas não obteve sucesso. Ela o encarou, e ele então começou a andar.

As pessoas estavam felizes. Todos conversavam e se divertiam como crianças. Havia nas proximidades pequenas outras mesas e fogueiras, onde a comida era colocada. Heoragar apenas andou devagar, acompanhando sua mãe. Quando ela parou para cumprimentar e conversar com uma amiga, ele desviou do curso e deu a volta para trás da casa de Iany. Pela janela, ele a observou. Ela ainda estava lá dentro, ajeitando sua trança grossa. Ele sentiu seu coração acelerar quando ela se virou. Ele se escondeu, mas teve a impressão de que ela o havia visto.

Respirando rápido, voltou para perto de sua mãe, que estava sentada no círculo de cadeiras. Sentou-se ao seu lado, afundando no assento. De repente, sentiu um cheiro delicioso de carne sendo assada. Lembrou-se:

— Mãe! A senhora esqueceu a corça. Vou pegar pa--

— Não.. – interrompeu ela — Deixa que eu vou, fica aí conversando.

Ela deu um sorriso, passou a mão no ombro do filho e dirigiu-se para casa. Algumas pessoas cochichavam e olhavam para ele, mas Heoragar nem mais ligava. Virando o rosto, encontrou os olhos de outra pessoa.

A mulher que estava do seu lado era Helga. Grande, bonita, de vinte e um anos, e parecia ser a única garota a se interessar por ele. Ela olhava-o de modo estranho, mas ele tentava evitá-la de todas as maneiras. Quando ele sentiu que ela ia investir, disse rapidamente:

— Vou até ali, só um instante... – e levantou-se. Respirou e, quando ia dar o primeiro passo, viu Poltruc saindo de sua casa seguido da filha.

Ficou paralisado observando a beleza de Iany enquanto ela caminhava lentamente para perto da mesa. Todos colocaram suas máscaras, e Heoragar sentou-se rápido. Olhou para trás e viu sua mãe correndo para o local onde as carnes estavam sendo assadas. Ele então colocou sua máscara, acompanhando os movimentos de Iany. Ela se movimentava graciosamente, e sua máscara de penas deixava seus raros olhos à mostra.

Ela nunca poderia saber que ele a amava... ninguém nunca poderia saber. Todos já o consideravam uma aberração, imagina se ainda dissesse querer ficar com a vidente da tribo. Ela era apenas uma garota, mas com uma enorme responsabilidade. Isso não era justo. Enquanto ela dizia não possuir nenhum poder excepcional, enquanto dizia querer apenas ser normal, todos a tratavam como uma princesa, mas ao mesmo tempo jogavam sobre ela uma enorme pedra. Agora... e ele? Que claramente possuía habilidades diferenciadas, que queria ser alguém especial... era tratado apenas como uma anomalia que devia ser mantida à distância. Só porque a sua família não era nobre. Se sua linhagem tivesse tradição na tribo, talvez ele conseguisse receber um tratamento adequado e fosse encarado de outra maneira. As pessoas ainda o olhavam com desconfiança e temor, e ele sabia que nunca se livraria disso. O bárbaro deu de ombros. Não importava. Um dia ele ainda encontraria o seu lugar.


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