Asa Negra escrita por Claire


Capítulo 8
Wonderwall


Notas iniciais do capítulo

Aconselho que escutem a música Wonderwall - Oasis enquanto lêem. Obrigada àqueles que comentaram sempre, vendo em minha história algo mais do que simples palavras. Obrigada, e Asa Negra acaba por aqui.



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O céu chorava pedras aquele dia, e as missas foram suspensas, pelo menos até que o clima se tornasse mais favorável às pessoas para saírem na rua. Eu bebericava compulsivamente meu chocolate quente, e apesar do intenso frio que fazia naquela manhã, minha boca adquiria algumas queimaduras e uma insensibilidade pegava de surpresa minha língua, e que demoraria a passar, por conta da temperatura da bebida. Aquela manhã fora reservada para um bom livro, no qual não conseguia me concentrar em momento algum, enquanto meus dedos cutucavam a mesa de madeira furiosamente, em uma ansiedade que não passava. Quatro dias do sonho que reviveu em mim aquela Gabriela que eu esperava já ter conseguido esquecer. Quatro dias que meu coração ardia como lava, de ansiedade e uma absurda quantidade de confusão. Quatro dias que Kakabel não aparecia em casa...

Página 200, e eu ainda não sabia do que se tratava o livro.

Beberiquei mais um curto gole de meu chocolate ardente e me dirigi à janela, esperando um gato preto surgir em meu campo visual, em vão. A rua não abrigava carros e estava coberta por uma espessa camada branca e cinza, de neve e granizo, que demoraria a ser tirada, tornando a cidade menos acessível à ser explorada por mais tempo do que eu imaginava. Árvores, antes verdes, agora assumiam um tom desconhecido e minha visão tornava-se borrada. E em meio de tanto cinza lá fora, um pontinho preto chamou minha atenção, imóvel, no meio da rua. Minha mente automaticamente pensou em Kakabel, passando frio e medo, impedido de voltar para casa, ou ao menos de sair do lugar...

Desci correndo as escadas, sem nem me preocupar em colocar alguma roupa mais apropriada para o clima, ou simplesmente parar para tomar fôlego. A porta insistia em continuar fechada, impedida de abrir pela imensa quantidade de pedras em seu lado externo, e por mais que eu empurrasse, era inútil. Decidi partir para algo mais prático, ao invés de concentrar toda a minha atenção em algo que não cederia de maneira alguma. A janela estava trancada, e após alguns segundos aplicando nela uma força que eu não possuía, ela finalmente cedeu. Atravessei a pequena passagem com uma certa dificuldade, e sem dar ouvidos ao frio que congelava meus pés cobertos somente por meias, corri até o pequeno ponto preto em meio à todo aquele branco.

Mas o que encontrei foi algo completamente diferente do que esperei encontrar. Um robe negro transparente, acomodado confortavelmente na neve fria, e meu coração apertou... Era o mesmo que ela usara quatro dias atrás... Eu já paralisava, metade por confusão, metade pelo início de uma hipotermia, quando percebi que o robe se enroscava em algo mais denso, de mesma cor, e me ajoelhei para ver o que ela, em um gesto quase desesperado.

Meus braços adquiriam uma cor avermelhada, queimados pelo frio, e assim que meus dedos congelados tocaram o fino tecido, ele se desfez em pó, como se nunca houvesse existido. E em seu lugar, o objeto negro denso que antes se enrolava em seda, foi se definindo aos meus olhos... Minha visão turva, agora tornava-se mais clara, enquanto eu me dava conta de que o pontinho negro na neve, era o corpo inerte daquele amigo de olhos verdes e pupilas alongadas,que sempre estava comigo, e que preferiu a mim quando sua dona se foi...

De meus olhos escorriam lágrimas que não chegavam a tocar minhas bochechas, congelando antes disso. Eu estava ajoelhado, com o corpo de Kakabel no colo, acariciando seu pêlo sem vida.

–Por quê? Por quê tudo tem que acontecer comigo, meu Pai? Eu faço tudo o que o Senhor me manda, tudo, sempre fiz... Não entendo o que falta para me recompensar da maneira que eu realmente mereço! Por quê você tem que tirar meu único amigo, Pai? O QUE EU FIZ PARA O SENHOR?

Eu chorava compulsivamente, me lamentando por coisas que nunca lembrei, mas que agora me vinham à tona. Dores que nunca senti, agora entravam em meu peito sem permissão e ardiam, estouravam, como uma bomba... Meu rosto vermelho agora ardia em chamas, e o frio não se aventurava à chegar até mim, assim, mantendo meu corpo aquecido pela dor e pela raiva. Senti a aproximação de alguém, e um cheiro tão doce, tão característico, atingiu meu rosto.

–Vá embora! Você nunca esteve comigo em momento algum, e não é agora que quero você aqui para me consolar. Suas preocupações sempre foram consigo mesma, e EU SEI que aquele sonho não foi artimanha da minha mente, eu sei que foi você que fez aquilo! Para me torturar mais do que eu já me torturo por amar alguém de forma tão errada!

Me levantei e me virei de frente para ela, com Kakabel nos braços, protegendo-o como um filho, como se ele tivesse alguma chance de retornar à vida...

–Me escuta, Gabriela, durante muito tempo o simples som do seu nome me torturava, me fazendo inventar mil e uma soluções para poder viver o resto da minha vida com você. Acontece que você nunca pensou em nada que não fossem apenas os SEUS sentimentos, e eu não estou disposto mais a alimentar essa... coisa que eu sinto por você

Suas mãos pálidas percorreram toda a extensão de seu corpo, como se querendo consolar a si própria. Seus dedos correram por seu casaco de pele preto aberto, revelando seu corselet preto e pararam na extremidade de sua calcinha de renda. Suas asas negras e longas não existiam mais, e suas pupilas de gato, agora eram apenas redondas, como de qualquer pessoa, e suas íris antes amarelas, tinham uma cor mais puxada para o mel, um tom mais humano, mas que não tirava sua essência.. Ela tremia de frio. Quando finalmente reuniu coragem para olhar fundo em meus olhos, eu percebi que chorava.

–Eu... Cícero, eu.. Não sei o que dizer, me desculpa...

Gabriela chorava compulsivamente, derramando lágrimas em meus ombros quando me abraçou com força, e mesmo eu não retribuindo seu abraço, ela insistia em se manter firme em meu corpo, como se eu fosse seu refúgio, seu apoio.

–Eu tenho que... Cícero... Fui eu. Me desculpa, por favor...

–Foi você que fez o que, Gabriela? – meu rosto se tornava mais sério, com a curiosidade clara em meu rosto envelhecido para a idade, enquanto meus braços ainda abrigavam Kakabel.

–Eu... Achei que você me queria e... Escolhi ficar aqui, por você Cícero. Mas... – ela parou de chorar por um tempo, e censurou o abraço por instantes, para fixar seu olhar no meu – Eu precisava fazer uma escolha... E escolhi você. Mas para eu me tornar humana... Minha alma teria que sair de seu portador e vir a mim... Então ele..- seus olhos se dirigiram à Kakabel em meus braços

–Quer dizer que vocês...

–Dividíamos a mesma alma, somos os mesmos, Cícero.. Mas anjos não têm corpo, e humanos são possuidores únicos de sua própria alma..

–Você... Você MATOU ele para...

–...Ficar com você... – eu me via perplexo- Mas não se preocupe, ele era apenas um corpo, não o matei, não posso matar a mim mesma Cícero. Apenas escolhi não me dividir mais ao meio.

–Quer dizer então que Kakabel era..

–...Uma parte de mim. Eu nunca te deixaria Cícero, estava com você o tempo todo, mesmo que não soubesse disso.

Minha cabeça trabalhava de forma quase impossível, tentando absorver toda aquela informação e formular uma resposta coerente para todas as perguntas que me rondavam, tentando fazer a escolha que mudaria minha vida eternamente. Pedi um tempo para formular uma resposta, e ela, séria, aceitou a proposta, ficando combinado que nos encontraríamos ao meio-dia do dia seguinte para esclarecermos as coisas. Minha noite se passou em claro, eu já sabia que lado iria escolher, mas formulava listas mentais de tudo o que ganharia e perderia nos dois casos. No dia seguinte, minha resposta estava formada muito antes do horário combinado, e eu ansiava por encontrá-la o mais rápido possível.

Nos encontramos em um restaurante completamente vazio, que consegui convencer o dono a abrir em troca de um horário para confissão reservado, apesar do clima lá fora. Assim que Gabriela se sentou à minha frente na pequena mesa, eu disse que tinha feito a minha escolha, e que ela era imutável a partir de agora. Eu escolhera o sacerdócio. Por todos aqueles que viam em mim um galho onde se agarrar, pelo brilho nos olhos das crianças ao receber a primeira eucaristia, pelo respeito dos idosos e dos jovens, que viam em mim um exemplo de fidelidade àquele que é o maior de todos, conseguindo manter o celibato com rigidez. Por tudo isso, e pelo amor que eu sentia por Gabriela, que agora se revelava com mais clareza, como um amor de pena, de carências... E com um beijo suave depositado na mão da dama, eu me declarei fiel eternamente ao amor, e mais fiel ainda ao compromisso que havia assumido com Deus. Depositei-lhe mais um beijo em sua mão pálida, paguei a conta, e fui embora, com um sorriso eterno, uma sensação de calmaria e leveza, uma certeza de que fizera a coisa certa, e um dente-dos-sonhos preso em minha lapela..


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Notas finais do capítulo

Bom, obrigada à todos que acompanharam esta história até o fim, e principalmente aos que comentaram, independentemente se foram críticas ou elogios,vocês que me motivaram a continuar. Obrigada



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