Quando O Mar Fala Conosco escrita por Pinguim Pirata


Capítulo 3
Uma luz que queimou rápido demais


Notas iniciais do capítulo

Desculpem pela demora



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Encarei o portão ligeiramente enferrujado da casa por longos minutos antes de entrar. Nossa avó havia morado por anos naquela casa, e eu tinha ótimas lembranças de mim e meu irmão correndo por aquele quintal, o cheiro de outono sempre no ar. Quando entramos na adolescência, nossa avó já havia se mudado, mas ainda íamos á aquele lugar. Era nosso refúgio, e um ótimo lugar para bebermos escondidos.

Enquanto as folhas secas estalam sob meus pés, eu sinto os fantasmas das minhas lembranças há minha volta. Um desses fantasmas em especial se destaca dos outros: a última vez que estivemos juntos ali, eu e Gabriel, na madrugada de nosso aniversário de quinze anos, á mais pouco mais de dois anos atrás. Nós dois atravessamos o portão correndo para não sermos visto da rua, e Gabriel sacudiu a garrafa de vinho barata que estava escondendo precariamente dentro do casaco. Mas não exatamente disso que a carta de meu irmão estava falando.

Nos fundos da casa, havia um grande espaço onde minha avó costumava cultivar seu jardim, e nesse lugar eu e Gabriel costumávamos tirara a terra escura e fértil dos grandes sacos de estopa e construir castelos de areia. O jardim bem cuidado de minha avó se mudou com ela, o que restava agora era apenas um pedaço de terra revirada com grama crescendo irregularmente, mas de algum modo aquele quintal ainda tinha o cheiro da minha infância. Quase como se eu pudesse ouvir nossas risadas quando fechei os olhos.

Não demorou a encontrar a outra carta. Estava em uma fissura da velha árvore. Antigamente havia uma plataforma de madeira em um galho firme da árvore, a base de uma casinha não acabada, onde subíamos para brincar, mas o galho parecia frágil e a madeira da plataforma estava apodrecida. Na verdade já estava assim quando eu e Gabriel viemos pela última vez, então foi inteligente da parte dele não subir naquele galho e deixar a carta em um lugar baixo.

O envelope era o mesmo, a mesma caligrafia dizendo “Para Ian” e nada mais na frente, apenas com a diferença de que esse envelope parecia mais grosso, indicando uma carta maior. Sentei-me ao pé da árvore, aproveitando a luz do Sol que ainda restava e respirei fundo antes de abrir a carta.

“Querido irmão

Fico feliz de saber que você veio até aqui em busca de respostas, e já lhe aviso que essa carta será bem maior do que a última. Só peço que depois de ler essa história, não pense mal de mim. Você vai entender o porquê.

Você se lembra da Alice? Ela foi minha melhor amiga quando tínhamos treze anos, e isso é provavelmente tudo o que você sabe sobre ela, mas a história é maior do que isso. Você sempre fez parte do grupo dos inteligentes, mas eu era do grupo dos deslocados. Aqueles que não são nada em especial para se encaixar em qualquer outro grupo .Os garotos perdidos. Na verdade, nós simplesmente não existíamos aos olhos da maioria das pessoas das outras ‘panelinhas’. Acho que foi por isso que Alice se juntou a nós assim que entrou no colégio.

Você deve se lembrar dela, tímida, sempre se escondendo atrás dos outros, como se quisesse desaparecer. Acho que foi isso que me atraiu nela, o fato de que ela tentava ser invisível enquanto todo o resto do mundo buscava por um lugar nos holofotes. Com o tempo, ela se tornou minha melhor amiga. Ah, e que pessoa fascinante era ela, irmão! Eu realmente gostaria que você tivesse tido a chance de conhecê-la melhor.

Algumas vezes, uma pequena chama colorida e vibrante se acende no meio desse mundo molhado e cinzento. Alice era uma dessas pessoas. Eu perdi a conta de quantas noites passei em claro apenas ouvindo seus pensamentos, o som da sua risada. Ah, o que eu não daria para ouvir aquela risada de novo. Mas uma chama, por mais quente e vibrante que seja, não pode sobreviver muito tempo nesse mundo molhado.

Quando uma pessoa nasce com essa chama, Ian, ela é imediatamente encarregada de um fardo grande demais para ela, e esse mesmo fardo muitas vezes acaba matando essa chama. Mas por muito tempo foi assim com Alice. A cada pedrada que ela recebia da vida, ela devolvia uma flor. Acontece que um dia as flores secam, seus hematomas já não saram mais e você simplesmente para de tentar erguer os braços para se defender, e foi exatamente isso que aconteceu com ela

Com o tempo, nós dois nos tornamos mais confiantes um com o outro, e eu pude ver algo a mais surgindo nos olhos dela. Aliás, acho que só cheguei a notar aquele brilho um tempo depois dele surgir. Resumindo: Alice havia se apaixonado por mim. Era uma paixonite sutil, o suficiente para eu ter levado um tempo para perceber. Não me entenda mal, Ian, Alice foi uma das pessoas mais importantes da minha vida, mas eu não a amava. Não desse jeito.

Eu não sei se você chegou a saber isso, mas Alice era adotada. Na verdade o homem que a dotara era o terceiro em toda sua vida. Ela me contou isso. Nós dois dividíamos segredos, eu contei a ela o meu maior segredo e ela me contou o dela. Você quer saber o segredo dela? Eu te digo.

Ela era estuprada. Pelo pai adotivo.

Ela confiou em mim o suficiente para contar isso, e é por isso que eu me sinto tão culpado. Ela contou para mim e eu não contei para ninguém. Mas para quem eu poderia contar? Para a assistência social, que a largou nas mãos daquele bêbado? Segundo ela, isso já havia acontecido com outras garotas adotadas, e nada fora feito para ajudá-las. Deveria eu pedir ajuda aos adultos? Aqueles mesmos que fecham os olhos para esses abusos e fazem piadas sobre? Ou seria melhor falar com alguns dos nossos ‘amigos’, que em sua maioria se afastariam dela e até a julgariam por isso?

Sabe o que mais me incomoda na lembrança do dia em que Alice me contou isso, irmão? O modo como ela implorou. Ela implorou para que a ouvisse até o fim, pare que não fosse embora, para que não contasse a ninguém, porque ela tinha medo do que o pai adotivo poderia fazer, implorou para que não a julgasse. Porque é isso que fazemos, somos ensinados a culpar as vítimas, a cutucar suas feridas com ferro quente e minimizar seus problemas, porque nossa visão medíocre nos impede de escutar seus gritos por ajuda.

Talvez eu devesse ter pedido ajuda, por ela. Mas nós dois estávamos perdidos, agarrávamo-nos um ao outro, com medo demais de nos afogarmos para procurar outro apoio.

Então eu só ficava lá com ela, secava suas lágrimas e beijava seus hematomas, incapaz de fazer qualquer outra coisa. Toda vez que eu penso o quão perto estive de ajudá-la, sinto como se não fosse digno do amor que ela me deu. Alice era um cristal raro e frágil, e eu sinto como se houvesse visto ela cair e deixado-a estilhaçar-se em milhão de pedaços brilhantes, sem tentar salva-la.

Mas, eu a vi definhando, irmão. Eu vi seus sorrisos se tornando escassos, seus olhos perdendo o brilho e seu espírito morrendo. Eu a vi morrer um pouco mais a cada dia. Foi então que eu decidi buscar ajuda. Deveria haver algum lugar com alguém disposto a ajudá-la. Era isso que eu iria dizer para Alice quando planejei r até a casa dela. Mas era tarde demais.

Essa parte você sabe: Alice tomou um frasco inteiro de soníferos.

Se eu não tivesse sido tão covarde, seu eu tivesse dois minutos de coragem insana, talvez eu pudesse ajudá-la. Talvez ela ainda estivesse aqui.

Eu fui visitar o túmulo dela alguns dias antes de eu mesmo cometer suicídio. Era uma lápide simples e pequena num canto do cemitério onde não batia Sol. Alice merecia mais do que isso. Ela merecia uma nação chorando por ela, merecia o mais belo lugar de descanso, as mais belas flores, a melhor paz. Ela merecia uma rua com seu nome, ela merecia ser lembrada como pouquíssimas pessoas merecem. Ela merecia viver.

Eu me culpo pela morte de Alice, porque eu a podia ter evitado. Esse é um dos meus motivos. Eu sabia, eu poderia ter feito algo, mas eu não fiz. Agora ela está deitada em um lugar nas sombras e o monstro que a destruiu ainda está por aí.

Por favor, irmão, não tente dizer que não foi minha culpa, porque eu sei que foi. E agora já não adianta mais.

Eu a amei com a mais pura e inocente forma de amor. Ela me amou como seu único fiapo de esperança, e eu a decepcionei. Ela tinha a mais bela alma com as mais profundas cicatrizes, mas ninguém mais viu isso. Ela sabia dos meus segredos, das minhas falhas e vergonhas, e acabou tornando-se uma delas.

Agora eu torturo a mim mesmo, irmão. Ouço sua risada toda vez que fecho os olhos, só pra me lembrar que nunca mais a verei sorrir para mim. Vislumbro seus cabelos no meio da multidão só pra me lembrar que não é ela, não pode ser. Passo em frente a sua antiga casa e me lembro de quantas vezes estive lá dentro, debaixo do mesmo teto que o homem que corroia seu espírito e fui covarde demais para qualquer coisa.

Eu a vejo em meus sonhos. É apenas um fantasma que minha consciência me manda para me lembrar que eu tive uma das almas mais preciosas em minhas mãos e a deixei escorregar por entre meus dedos como areia.

Ela foi a luz que iluminou a minha vida, mas queimou rápido demais.

Por isso, irmão, eu fiz o que fiz. Porque eu não suporto viver em um mundo onde os gritos de angústia são abafados pelos aplausos de uma platéia sádica, eu não quero viver para ver a beleza sendo despedaçada e pisoteada como uma flor frágil em um chão sujo qualquer.

Eu espero que você me entenda, algum dia.

Com amor,

Gabriel”

Minhas mãos tremiam levemente enquanto eu dobrava a carta novamente. Eu tentei, mas não pude segurar os soluços que sacudiram meu corpo. Lembrava-me sim de Alice, das poucas vezes em que saia com os amigos do meu irmão. Ela era o tipo de pessoa para quem não se olha duas vezes. Eu nunca poderia imaginar uma história dessas acontecendo com ela, e com meu irmão envolvido.

A pista estava em outra folha de papel, dessa vez uma menor, e dizia:

“Sob a luz das falsas estrelas

Com o mar a nossa volta

Eu quase me confessei a você

Mas os barulhos me assustaram

Que bom que você estava lá para me proteger”

O sol já havia se posto há algum tempo quando eu deixei a casa. Algumas crianças brincavam de pique - esconde na rua calma, e o som de suas risadas me deixou melancólico. Melancólico por que meu irmão estava certo, porque nenhuma beleza sobrevive nesse mundo. Perguntei a mim mesmo quanto tempo levaria para a inocência daquelas crianças ser destruída pela realidade, e desejei minha própria infância de volta.


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Notas finais do capítulo

Gente, desculpe se ficou meio confuso, eu pensei em colocar a carta em negrito, mas iria ficar muito ruim, então vai assim mesmo