A Última Harrison escrita por Caderno Azul


Capítulo 7
Manipulável


Notas iniciais do capítulo

Com a correria de fim de semestre, autoescola e tudo mais o capítulo atrasou, mas chegou e em tamanho família. Muito obrigada a todos os comentários, cada um significa muito para mim! :)
Sem mais delongas, boa leitura!



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Apesar do início da semana avisar à Kate que o melhor a fazer seria permanecer trancada em seu dormitório pelo resto do semestre, a garota resolveu ignorar os olhares mordazes de Mary, Adam e Paul, resolvendo deixar o quarto com uma confiança que estava a anos-luz de sentir. Ela suspirou e bateu a porta, torcendo para que todo vestígio de insegurança ficasse para trás, como um rastro de poeira que se desintegrasse no ar.

Ela não sabia onde Mary estava e sinceramente, não se importava. Kate já tinha atingido a cota de olhares de desprezo por todo o ano.

Naquela quinta-feira, havia mais vento que esperava. Seus braços eram sua única proteção e ela se abraçou, franzindo a testa para o céu traiçoeiro. Uma tempestade estava por vir. Foi pensando nisso que entrou no refeitório, rodeado por suas paredes de vidro, e marchou implacável até a última pessoa que queria ver. Coincidentemente, também era a única com quem desejava falar.

Paul.

Ele ria de algo que seu amigo dizia, sentado relaxado com a mochila ao lado. Nenhuma preocupação em sua cabeça. Kate o invejou, desejando ainda ter um pouco daquela liberdade de poder pensar no que quisesse. Não sabia desde quando sua mente havia lhe feito refém.

– Por quê?

A pergunta pairou solitária, se perdendo no ar gelado daquela manhã. O garoto virou ao perceber que era o destinatário daquelas palavras. Agora ela percebia que não havia sinal de Adam tampouco, mas então não estava sentindo nem um pouco sua falta.

– Bom dia, Melissa – Paul a cumprimentou, se levantando com um brilho divertindo dançando por seus olhos pesados, longes da leveza que ele tentava aparentar. – Estes são Ben, Joshu...

– Não estou interessada – a garota o cortou, cruzando os braços e mostrando toda sua impaciência. – Preciso falar com você, a sós.

Os amigos de Paul imediatamente começaram a fazer barulhos que só podiam indicar alguma piada interna entre eles. Sem paciência para gracinhas, Kate continuou a olhar fixamente para o garoto, esperando uma reação.

Paul, sorrindo com os ruídos de seus amigos, se afastou da mesa que ocupara para sentar em outra, afastada dos olhares curiosos. Kate seguiu seu exemplo.

– Parece que a educação não te acompanha pela manhã. – ele comentou, ao acomodar-se na cadeira com má vontade.

– E pelo visto a ética jamais te acompanhou. – ela replicou estreitando os olhos. - O que houve com Susan, Paul?

O garoto se deteve antes de respondê-la.

– Desde quando você se refere a ela pelo primeiro nome?

Kate tentou não se denunciar com uma expressão assustada. Ao invés disso, revirou os olhos.

– É o nome dela, quer que eu a chame de que, tia? E não fuja do assunto.

Paul soltou uma risada seca.

– Eu não preciso fugir do assunto. Aliás, eu nem preciso te responder – Paul curvou-se na direção dela e a encarou semicerrando os olhos. – Eu só estou um pouco confuso aqui. Por que está se metendo nisso, Melissa? Virou advogada de defesa daquela mulher?

– Por que ela precisaria de alguém para defendê-la? O que ela fez a você, além de te mostrar a sua incapacidade de receber um sonoro “não”? – incitou Kate. Havia algo de muito prazeroso em irritar alguém tão detestável.

Se antes havia um esboço de sorriso no rosto de Paul, agora o que restara em sua expressão era algo mais parecido com um esgar.

– Acho que não estamos nos entendendo, Mel – ele disse, usando o apelido de forma irônica só para deixar mais claro o quanto os dois estavam distante de serem amigos. – Isso me incomoda, eu confesso. Porque você tem o péssimo hábito de se colocar em meu caminho. Você tem feito isso desde que chegou aqui e eu tenho sido paciente.

Kate ergueu a sobrancelha. Ela tinha muitas palavras para descrever Paul, mas “paciente” decididamente não entraria na lista. O garoto prosseguiu:

– Contudo, você ignorou todos meus avisos e continua a se meter onde não deve. E a pergunta que não quer calar é: por quê?

Ela sentiu-se empalidecer aos poucos. Precisava convencê-lo que seu motivo não tinha nada de especial a Susan.

Não, ela era Melissa Smith. Apenas uma menina teimosa que queria saber o que houve com bibliotecária e o deixaria em paz depois que tivesse a resposta. Era vital que ela o convencesse disso.

– Paul, talvez tudo isso seja apenas uma brincadeira para você. Mas estamos falando do emprego de uma pessoa, você não sabe se ela precisava dele.

– Se ela gostava tanto de trabalhar, talvez devesse ter pensando duas vezes antes de se meter com a pessoa errada. E isso serve a você. Está vendo os erros de Susan. Não os repita.

– Por que você sempre tem que ser essa pessoa, Paul? – Kate falou, se irritando e teve impressão que ele gostava de arrancar esse tipo de reação.

– Terá que ser mais específica.

– Você me acusa de ser uma pedra no seu caminho, mas desde o início foi você que se colocou entre eu e Adam. Das duas, uma: Ou você tem uma doentia fixação pelo seu irmão ou está entediado.

– Melissa, vamos tirar as máscaras – pediu Paul, franzindo a testa. - Você nunca se importou com meu irmão. Tentar me convencer é perda de tempo.

Kate ergueu o rosto, mostrando pouco caso.

– Eu não vou discutir com você.

– Sábia escolha. – ele comentou, sorrindo-lhe friamente.

Talvez tenha sido a partir desse ponto que Kate percebeu que só estava perdendo seu tempo lá. Ela se lamentou por ter cogitado recorrer ao garoto para alguma coisa. Ergueu-se aborrecida e a mochila ameaçou cair de seu ombro. Estava tão frustrada que caso isso acontecesse, iria simplesmente deixar seu material e partir em direção ao seu quanto de onde não sairia mais.

Para Paul, aquilo era só mais um dos seus jogos. Mas para ela isso podia ser um divisor de águas.

– Obrigada pela ajuda – ironizou, prestes a sair dali.

– Eu ouvi os comentários dos professores quando você chegou – Paul anunciou e aquilo captou a atenção dela de imediato. – “Melissa é uma guerreira. Mais que isso, ela é uma sobrevivente.” – ele se levantou com energia e quebrou a distância que ainda havia entre eles. – Seria realmente horrível se depois de tudo que passou algo acontecesse a você.

E então, finalmente perturbada, Kate deu as costas, se dirigindo o mais depressa possível do refeitório, sem perceber que esbarrara em sua colega de quarto que conversava com um Adam cabisbaixo.

A brisa gélida a recepcionou ao chegar aos jardins e ela se viu fazendo o caminho para a sua primeira aula. As engrenagens em sua cabeça não pararam um minuto, sua mente se tornara uma máquina determinada em achar uma solução. Kate começou a subir as escadas com uma lentidão preguiçosa. Ela não soube dizer quando, exatamente, que seu plano ganhou forma e vida, mas ao chegar à sua sala, já sabia como conseguiria a resposta que Paul se negara em dar.

E ela teve certeza. O garoto se arrependeria por não ter cooperado.

Se Paul a acusara de se colocar em seu caminho, agora seu plano dependia disso. E se colocaria no lugar onde ele mais tentou evitar que ela fosse. Adam. Se eles queriam medir forças, Kate estava mais do que ansiosa para que as cortinas se abrissem e ela pudesse encenar seu espetáculo.

Certa vez, Adam a acusara de brincar com as pessoas como em sua casa de bonecas. Na época, ela achava que o garoto estava exagerando. Mas agora ela faria jus àquela acusação. Se todos queriam enxergá-la como a vilã, era exatamente assim que ela se comportaria.

Na sexta, ela decidiu quem seria a primeira pessoa a convencer do seu teatro. Mary. Se não conseguisse convencê-la, não convenceria ninguém.

Esperou que a colega se levantasse e se vestisse. Mal se mexeu na cama. Mary a encarou com um semblante sério quando estava prestes a sair.

– Você vai acabar perdendo o horário – Mary a alertou, a contragosto.

Kate virou-se para o outro lado da cama, deixando claro que não queria conversa. Mary suspirou e saiu. Assim que a porta bateu com força, o plano começou a ganhar forma.

Possivelmente, na hora do almoço Mary voltaria para procurá-la, mas tinha que estar preparada para uma chance pouco provável de que o encontro se desse antes da primeira aula. Ergueu-se da cama, jogou as cobertas para longe, socou um dos travesseiros até que ele rasgasse e suas penas se espalhassem por todo cômodo, abriu sua mochila e espalhou com um descuido calculado todos os livros pelo chão, agora marcado pelas penas do travesseiro. Olhou em volta e observou o resultado. Parecia mesmo que alguém acabara de ter um ataque de raiva ali e era exatamente essa impressão que queria causar quando Mary irrompesse pelo quarto mais tarde.

Restava o mais difícil. Kate hesitou, como qualquer pessoa faria diante o momento iminente de dor. Ainda que fosse uma dor esperada. Suspirou. Era agora ou nunca, pensou. Deixando-se cair de costas para a parede sentada, pensou em tudo que havia acontecido a ela até agora.

Não é como se não tivesse chorado desde que seus pais morreram. Não é como se ela não tivesse sofrido. As lágrimas deviam estar por ali, em algum lugar obscuro dentro de si. A princípio, ela culpou o choque. Depois, o plano de vingança foi desenvolvendo com tamanha força que ela tentou ater-se a ele. Mas não conseguia entender como não pôde ter seu pranto. Ela sabia que aquelas lágrimas queriam sair de lá há um bom tempo.

Talvez fosse medo.

Se começasse a chorar, não tinha certeza se conseguiria parar.

Não tinha certeza se conseguiria calar a explosão que se instalara em si e ameaçava entrar em erupção. Ela temia pelo momento que teria de deixar toda essa angústia transbordar e vazar pelo lado de fora.

Encostou-se contra a parede e fechou os olhos. Reviveu aquela noite mais uma vez. Os cadáveres na sala, o estampido dos tiros, o cheiro do fogo. Mas o pior havia sido o silêncio. Ela nunca havia escutado um silêncio tão terrível quanto daquela noite. E agora percebia com mais clareza, que em si, um silêncio também crescia. Um vazio que ameaçava consumi-la por completo, de dentro para fora. Havia vezes, como nas noites que ela deitava para dormir, que se lembrava de que não havia mais ninguém para lhe desejar boa noite. Dias em que ela acordava e sabia que não haveria ninguém para perguntar se havia dormido bem. Momentos roubados que ela pedia silenciosamente por sua destruição.

Ela queria ser consumida. Ela queria sumir.

Mas então, lembrava que isso significava que tudo havia sido em vão.

Seus punhos cerraram e ela gritou, calando aquele silêncio ensurdecedor. Mas não havia ninguém para ouvi-la.

Então ela reviveu aquela noite mais uma vez. A dor. Os corpos. Tiros. E outra vez. Balas. Sangue. Seu sangue. Derramado. Chuva. Chumaços de cabelos. A espiral de pesadelos continuava. Sem pausa para respirar. Sem perdão.

As lágrimas vieram. Elas chegaram ávidas e espessas. Sua garganta se apertara, ela se abraçara. E por um instante, ela ficou grata pelo seu plano.

Ela pôde ter o seu momento. Vulnerável. Sem defesas. Frágil.

Ela não ouviu quando Mary entrou. Ela só percebeu quando o rosto tomado de preocupação da colega se colocou no seu campo de visão. Ela havia se ajoelhado a sua frente e pôs as mãos em seus ombros, num gesto silencioso de apoio.

– Melissa, o que houve?

O nome falso a trouxe de volta. Havia algo a ser feito. Ela tentou formular a frase que planejara.

Mas ela já não havia como impedir que as lágrimas seguissem seu percurso.

– Saia daqui, Mary.

A garota não obedeceu. Pelo contrário, se colocou do lado de Kate, sentando-se também.

– Se você não quer me falar, tudo bem. – disse depois de algum tempo, em voz baixa. -Mas eu não vou te deixar sozinha.

Kate sacudiu os ombros. As lágrimas eram reais, mas a partir dali todos os motivos seriam falsos. Tomou fôlego e vestiu sua máscara:

– Por que você ainda se importa? Você me odeia.

Mary demorou um pouco para se recuperar:

– Que coisa horrível de se dizer! – exclamou nervosa. - Eu não te odeio.

Kate virou para encará-la.

– Sim, você. Adam. Paul. Todos vocês.

– Duvido que ele te odeie – Mary murmurou. Kate preferiu não pensar naquilo. Sabia a quem estavam se referindo.

Mas se pensasse demais, acabaria recuando.

– Não, vocês estão certos – ela soltou uma risada seca. – Quero dizer, se eu consegui afastar as duas únicas pessoas que foram gentis, acho que isso prova algo.

Sua colega balançou cabeça em sinal negativo.

– Não sabe do que estou falando.

– Talvez eu não saiba de nada. Afinal, a culpa é minha. – ela soltou em um fio de voz.

Restava apenas saber se Mary ia morder a isca que ele jogara.

– Do que você está falando?

Bingo.

Kate suspirou pesadamente antes de anunciar:

– Meus pais estão mortos por minha culpa.

Mary arregalou os olhos e tentou envolver a colega com os braços.

– Melissa, você não pode...

Kate a cortou, se esquivando do abraço:

– É verdade, fui eu que insisti em voltar para comprar aquela maldita bolsa. Eles não queriam, eles estavam cansados de dirigir, mas aí pegaram o retorno e aquele caminhão...

Ela parou de falar, como se a memória a sufocasse de tal modo que a impedisse de prosseguir com seu relato.

– Melissa... – Mary tentou novamente, ainda que sem sucesso.

– Não. – ela negou balançando a cabeça. - Não tente consertar as coisas porque está com pena de mim.

Num impulso inesperado, se levantou dando as costas para uma Mary sensibilizada, que insistia em consolá-la:

– Adam não te odeia.

De novo aquilo. Kate começava a desconfiar que houvesse algo que não sabia, mas preferiu prosseguir com o plano. Antes que pudesse esboçar mais alguma frase, no entanto, a voz de Mary interpelou seu raciocínio.

– É por isso que o está afastando? Por que acha que não o merece?

Kate queria gritar que não, ela não estava chorando porque algum garoto não gostava dela. Ela queria explicar para Mary que seus motivos não seriam tão fúteis. Que se pudesse nem os veria novamente. Trocaria toda uma geração de Burtons para ver sua família mais uma vez.

Mas ela resolveu se calar mais uma vez. Mary acabou tomando a impressão errada.

– Porque você o merece. Você foi a única que conseguiu tirar Adam do coma em que ele normalmente se encontrava. Você não tem ideia de como tem sido um ano difícil para ele e isso foi antes que a sua mãe, Mirian morresse.

E então, aquele nome despertou o interesse de Kate subitamente.

– O que isso quer dizer?

Mary olhou para os lados, como se esperasse que alguém irrompesse pela porta e a impedisse de revelar o que tinha insinuado. Por fim, decidiu seguir em frente.

– Ele teve uns problemas com drogas. A menina que dormia aqui, a Isabelle, era instável. Ela e Adam começaram a namorar, mas ela sempre o desafiava a ir além – ela deu uma pausa, com a cabeça perturbada por cenas que queria esquecer. – Tudo corria bem, até que um dia o corpo dele não resistiu.

– Ele teve uma overdose? – quis saber Kate, esquecendo momentaneamente do motivo de estar ali.

Mary confirmou com a cabeça, muito séria.

– Foi terrível – ela confidenciou em voz baixa, ainda que não houvesse mais ninguém ali. - Isabelle estava no quarto dos irmãos só com Adam, mas eles não tomaram cuidado. O cheiro da droga já se espalhava em todo dormitório masculino. Eu e Paul tentamos avisá-los que os inspetores estavam chegando, mas quando chegamos lá... Você não tem ideia. – Mary torceu as mãos em agonia, relembrando de tudo - Eu estava logo atrás de Paul e vi. Isabelle segurava a cabeça de Adam, ele estava inconsciente. Começava a engasgar com seu próprio vômito. Isabelle nos encarou sem saber o que fazer.

Kate mal havia piscado desde que o relato começara.

– E o que vocês fizeram?

– Eu mal conseguia mover um músculo. Acho que estava em estado de choque ou algo assim, mas Paul conseguiu agir. Ele empurrou Isabelle de cima do corpo de Adam e o segurou. Eu nunca o vi tão assustado. Puxou Adam para o lado para impedir um auto sufocamento. Isabelle, como a grande covarde que era, – Mary acrescentou revirando os olhos - agarrou meu braço e juntas, pulamos pela janela, o quarto deles fica no térreo. Nós fugimos antes que os inspetores chegassem. Mas eles acharam Paul tentando reanimar o irmão e ele assumiu a culpa pelas drogas, mesmo que tenha sido Adam. Os dois quase foram expulsos, mas Paul que levou a pior. Ele levou uma suspensão e teve que encarar a Reunião Disciplinar com todo o Conselho. O pai teve que tornar pública a doença da mãe e usou isso para amolecer o Corpo Docente. Funcionou. Adam nem foi punido e Paul pegou uma suspensão. Isabelle não teve tanta sorte. Ela foi pega naquela noite nos jardins e como estava drogada, foi expulsa.

– Eu pensei que você fosse a razão para a expulsão da menina que ficava aqui – Kate lhe disse, ajudando a colega a se levantar.

– Eu estava mentindo – confessou Mary, com desgosto – Achei que isso a intimidaria. – voltou a falar, dessa vez com os olhos em alerta. – Melissa, você tem que me jurar que isso não sai desse quarto. É muito importante, eu nem deveria saber dessas coisas.

Kate concordou.

– Tudo bem, mas você não pode contar ao Adam sobre o que conversamos. Promete?

Mary ergueu as duas mãos, mostrando suas palmas para ilustrar inocência.

– Prometo.

As duas se abraçaram. Mary não pôde ver o sorriso de Kate, satisfeito com o rumo que as coisas estavam tomando. A colega não conseguiria guardar um segredo nem se fosse para salvar a própria vida.

– Ah, e já que estamos esclarecendo tudo – replicou quando elas se separaram. – O que de tão interessante você fazia na Lan House que eu não podia ver?

A resposta perfeita surgiu num sopro de inspiração.

– Eu queria ver algumas fotos antigas dos meus pais – Kate se explicou, plantando um rosto supostamente envergonhado. – Não queria usar o seu computador e ter que receber aquele olhar de pena.

– Eu me sinto péssima – Mary se lamentou. – Me desculpe por ter sido tão dura com você essa semana. Podemos colocar isso para trás?

– Considere esquecido – sorriu Kate e elas voltaram a se abraçar. – Contanto que me ajude a pensar em alguma explicação plausível para o estado desse quarto.

– Sem problemas. Acredite, ele já viu dias piores. – riu Mary ao ver o estado do travesseiro.

Se havia alguma parte dentro dela que sentia mal por estar se aproveitando da boa fé de Mary, essa parte permaneceu em silêncio no fundo do seu subconsciente.

Adam demorou mais que o esperado para procurá-la. Kate estava quase jogando todo seu autocontrole para o alto e indo ela mesma até ele, quando na manhã de sábado o garoto finalmente a interceptou durante o café. Mary piscou para ele, revelando sua posição de cúmplice.

Kate engoliu em seco e se preparou para a segunda parte de sua estratégia e se levantou. A duas mesas de distância, Paul a observava desconfiado.

Adam a levou aos jardins em anexo aos refeitórios. Eles sempre passavam por ali a caminho das aulas, mas nunca davam muita atenção ao lugar. Lá havia todo tipo de brinquedo, direcionados aos filhos dos professores que moravam na vila dos funcionários. Kate ficou tentada a se sentar em um balanço, mas o romantismo adocicado naquela ação começava a enjoá-la. Ela só queria acabar com aquilo de uma vez e descobrir o que realmente havia acontecido com Susan.

Mas representaria muito bem o papel até conseguir a sua resposta.

– Eu conversei com a Mary – começou Adam, colocando as mãos no bolso. – Ela conseguiu fazer com que eu me sentisse um idiota.

– E por que isso? – Kate perguntou, simulando uma calma que estava longe de sentir.

– Porque eu fui um – ele respondeu, encarando-a. – Com você. – ele acrescentou e seus olhos ganharam intensidade. – Acho que eu te devo um pedido de desculpas.

A garota se remexeu, desconfortável. Ela sorriu sem graça, sem mostrar os dentes.

– Você não me deve nada. Nós mal nos conhecemos.

– Sabe que não é assim. – Adam passou a mão no cabelo revelando um pouco do seu nervosismo – Houve algo, mesmo que eu ainda não tenha ideia do que esse algo signifique. – Ele suspirou. – Eu quero descobrir o que é isso, Melissa.

– Isso o quê? – ela o questionou, consciente de que se arrependeria logo depois da pergunta.

– Isso que me faz falar o que não devo, agir como um idiota que eu nem conheço, sentir raiva, mais raiva que eu me permito sentir. – Adam se aproximou dela e Kate teve que lutar contra si mesma para não se afastar. – Quando eu já tenho problemas demais, isso acontece. Mas o que quer que seja isso, eu quero dar uma chance.

O que Kate temia desde que ouviu as insinuações de Mary finalmente acontecia. E ela daria tudo para conseguir um botão de rebobinar.

– Adam, eu...

Mas o garoto a cortou:

– E eu sei que você também tem seus fantasmas, Melissa. Eu sei que você não consegue enxergar que não teve culpa nenhuma no que aconteceu, que não havia nada que pudesse fazer...

A raiva que acumulava de Mary só crescia a cada segundo que passava. Ela sabia que a garota não conseguia se controlar, mas Adam realmente tinha que saber de todos os detalhes do que ela supostamente havia contado em segredo?

– Eu podia ter feito alguma coisa sim. Mas nada disso importa mais – ela disse, odiando voltar àquele assunto. Quantas vezes teriam que apertar aquela tecla novamente?

– Importa sim – replicou Adam calmo. Com uma das mãos, ele tocou sua bochecha, mas a garota estava nervosa demais para vibrar com aquele toque. – Porque onde quer que eles estejam, sabem que a filha deles, essa garota incrível, está viva.

Kate queria lhe dizer muitas coisas. A primeira era que ela estava a quilômetros de distância de ser a menina que ele idealizara. A segunda era que ele a deixasse em paz e parasse de tirar conclusões erradas.

Embora a mais importante fosse que no fundo ela o entendia. A ideia de ocupar a lacuna que seus pais deixaram era tentadora. E Adam podia ser a pessoa a preencher aquele vazio. Era isso que ele estava oferecendo com toda aquela conversa incrivelmente desconfortável e invasiva.

Mas ela não podia lhe oferecer o mesmo.

A lacuna de Mirian, a lacuna de Isabelle. Tinha em mente uma estratégia em andamento e só a ela seria fiel. Mas no momento essa mesma estratégia exigia que não o descartasse.

Mesmo que tivesse que usá-lo.

Mesmo que tivesse que enganá-lo.

– Eu estou com tanta raiva da Mary e da sua enorme boca.

Uma das poucas verdades que falara naquele dia.

Adam a examinava com um semblante peculiar.

– Eu estou grato por ela me fazer enxergar o que estava bem na minha frente – ele a encarou, antes de avançar. A mão que deslizava pela bochecha de Kate encontrou sua nuca e a envolveu, guiando o rosto da menina de encontro ao seu.

O beijo se iniciou quente e tímido. Não havia pressa, mas havia a beleza do desbravamento, das primeiras sensações. Ela, numa batalha interna se dividia entre a culpa por aquele momento descuidado e pela entrega em pedaços aos braços de Adam. A outra mão do garoto se concentrou em sua cintura, aproximando-a ainda mais de si. O enlace dos corpos se tornou mais intenso e o beijo foi se modificando, ganhando mais cor, mais avidez.

Não fosse o som amargo de sua consciência, Kate poderia ter sucumbido ao momento e esquecido a realidade que os cercava. Poderia ter se convencido que havia achado um porto para ancorar-se.

Mas ela já havia descoberto que Adam não era seu porto seguro. E ela não estava procurando por um substituto. A lacuna permaneceria em aberto.

E se ela fosse preenchida, não seria por uma pessoa. Seria por um sentimento.

Quando Adam e Kate finalmente voltaram ao refeitório, encontraram o olhar contente de Mary os esperando na mesa que agora também era ocupada por Paul. Kate resolveu se aproximar cautelosamente, como se o garoto fosse uma cobra a espera de dar o bote.

E ela sabia que mais cedo ou mais tarde, era exatamente isso que ele faria.

– Vejo que os pombinhos finalmente se acertaram – ele comentou tendo a decência de esperar até o fim da refeição, quando os dois já faziam menção de se retirar.

– Paul, não comece – Adam o alertou, enquanto Kate apenas o encarou para ver qual seria seu próximo movimento. Ergueu a sobrancelha num gesto mudo de desafio.

– Eu vim em paz – respondeu lhe sorrindo, e aquilo a alarmou. Naquele instante ele não deveria ter motivos para sorrir. – Estou feliz por vocês. – Adam e Kate franziram a testa, não acreditando nem por um momento no discurso saudoso. – E para provar isso, estou estendendo meu convite a ela para amanhã.

– O que tem amanhã? – a garota perguntou, sem entender.

– É meu aniversário, cunhada. Se anime, se tiver sorte poderá até conhecer o sogrão. – ele respondeu com uma piscadela e em seguida deixou a mesa, satisfeito com a sua expressão receosa.

Kate percebeu que não devia ter ficado surpresa com a notícia. Já devia imaginar que uma pessoa como Paul seria leonino.

O que a alarmava era que o garoto não parecia fazer nada gratuitamente. E o que ele tivesse em mente para antes de apagar as velas, não seria boa notícia.

Para piorar sua situação, desde que Mary havia descoberto sobre o motivo por trás de suas idas a Lan House, tinha insistido para que ela usasse seu computador. Até saía do quarto para dar mais privacidade. Adam e Mary, com isso, achavam estar dando mais liberdade à suposta Melissa, mas Kate jamais se sentiu mais presa.

Sem chance de ver o que a madrinha teria mandando, só lhe restou imaginar. Contudo, se Kate abrisse seu e-mail ela veria como suas suposições estavam longe da realidade. A mensagem de sua tia jazia solitária na caixa de entrada, exigindo por uma resposta que nunca chegaria:

“Kate,

O que quer que faça não saia da escola.

Eu estou a caminho.

Anabelle”

Ignorante ao aviso da tia, no dia seguinte Kate deixou o quarto com Mary a caminho para a saída da escola, onde imaginou encontrar pelo menos uma dúzia de alunos.

Como estavam esperando apenas uma reunião mais íntima, Mary não foi dada a grandes produções. Manteve-se casual e apenas emprestou mais um de seus vestidos a colega. O Sr. Wallace, pai de Mary ciente do problema com o guarda-roupa de sua mais nova afilhada, já havia prometido uma expedição às compras para resolver a questão. Sua filha, afoita por transformações, mal podia esperar que esse dia chegasse.

Kate, no entanto, tinha outras preocupações em mente:

– Você não achou muito estranho Paul me convidar? – perguntou, dando vazão aos seus pensamentos aflitos.

– É, não esperava por essa. Mas vai saber? Paul pode ser imprevisível. E além do mais, talvez ele tenha pensando que estivesse fazendo um favor a Adam.

– Talvez – Kate fingiu concordar, mesmo tendo certeza que Paul pouco ligava para o que irmão queria. Mesmo porque Adam não gostou nada daquela história, ela acabava indo de encontro com a sua tentativa falha de lhe dar espaço.

– Ah, nem pense em desistir, Melissa! - exigiu Mary animada. – Aposto que você nem vai ter que olhar para a cara do Paul por muito tempo, do jeito que deve estar cheio.

– Eu já ouvi algo parecido com isso e adivinha o que aconteceu?

Ela estava se referindo ao seu primeiro dia lá, na primeira reunião dos Burton que as duas foram juntas, onde ela tivera sua primeira discussão com Paul. A primeira de muitas que viriam.

As risadas de Mary foram interrompidas ao chegar ao ponto marcado. Apenas Adam estava ali, tão confuso quanto elas.

– É, parece que vai ser uma festança – disse Kate consigo mesma, tentando prever o que Paul podia ganhar com aquilo.

– Será que todo mundo se atrasou? – perguntou Mary, também estranhando e olhando para os lados a procura do aniversariante.

– Não, Paul me ligou. – informou Adam, abraçando Kate num gesto de apoio. - Disse que todos foram na frente com ele.

Mary cruzou os braços, com raiva brotando de seus olhos:

– Eles foram antes? Isso não faz sentido, Joshua teria me falado!

Adam sacudiu os ombros, mostrando que não podia ajudar. Mary se afastou para fazer uma ligação.

Kate estava prestes a inventar uma dor de cabeça para não ir quando Adam, como se adivinhasse seus pensamentos , disse em tom brincalhão:

– E você, mocinha, nem pense em inventar uma desculpa para me largar aqui – disse ele a puxando mais para perto. Kate sorriu o envolvendo com os braços também, gostando de conhecer um lado mais relaxado do garoto.

Em momentos como aquele, ela queria poder ser apenas Melissa e deixar Kate para trás.

Mas não havia motivo em enganar uma pessoa legal como Adam, se não se esforçaria para arrancar dele a informação que procurava.

– Eu nunca te perguntei – ela começou num tom que julgou ser despreocupado. – Mas como ficou toda aquela situação da bibliotecária?

– A Susan? – ele se surpreendeu com aquelas palavras. – Por que a pergunta agora?

– Ah, curiosidade – respondeu com uma risadinha. Nada daquilo era engraçado, Mary em breve voltaria da ligação irritada que estava tendo com alguém e Kate não teria outra oportunidade de insistir no assunto.

Mas para sua sorte, Adam se convenceu de sua ingênua curiosidade.

– Pelo que meu pai falou, ela tinha ficha criminal e nem poderia estar trabalhando aqui – ele contou, mas a notícia só serviu como combustível para a mente da garota que trabalhava como máquina para dar sentido à nova informação.

– Ficha criminal? O que ela tinha feito?

– Não sei, ele não se estendeu muito no assunto. Parece que já a conhecia de alguma manchete de jornal.

Kate não tinha engolido nada do que ouviu. Como uma escola tão renomada como aquela não tinha um processo seletivo eficiente para procurar justamente esse tipo de detalhe no currículo dos candidatos a funcionários? Ela já tinha outra indagação preparada, mas Mary voltou-se para eles, frustrando seus planos:

– Se Joshua pensa que pode me enganar, está muito enganado – vociferou beirando a histeria – Vamos, o carro já chegou.

Eles, não querendo contrariar uma Mary muito irritada, entraram no volvo preto que os esperava. Adam cumprimentou o motorista e perguntou por que ele não tinha sido informado da mudança de planos.

– Só sigo ordens, senhor – o funcionário respondeu com a aparência cansada. – Só sigo ordens.

Adam não insistiu e se sentou entre Mary, que ainda espumava de raiva e Kate, que era atentamente observada pelo motorista. O trajeto de vinte minutos se passou com pouca conversa, todos ali tinham seus motivos para se calaram em aflição.

Quando chegaram, foram recepcionados por um resistente portão negro e todo um sistema de segurança. Quando foi dada permissão para que passassem, o verde do jardim e suas esculturas de grama passaram rápido num borrão sinuoso e colorido. Mais à frente, eles se depararam com a casa que Kate sempre imaginou pertencer aos irmãos. Tinha formato retangular e de ponto a ponto exibia dois andares da nobre cor marfim. Uma música dançante se projetava de seu interior.

Eles saltaram do carro, e Adam a ajudou a descer, oferecendo-lhe mais uma vez a oportunidade de fazer com que ela se sentisse culpada por não merecer sua confiança.

Paul os esperava na sacada. Parecia ainda mais perigoso, aos olhos de Kate, vestindo um terno branco e um sorriso enigmático.

Adam e Mary não conseguiram permanecer sérios com aquela visão.

– Você realmente tinha que se vestir que nem o pai? – perguntou Adam, tentando se controlar. Eles entraram na casa e Kate pôde perceber que ela era tão meticulosamente decorada como sua fachada prometia.

– Aposta é aposta – o outro lhe respondeu, não dando muito caso. – O que me lembra: ele quer falar com você, está lá em cima. – e então se voltando para Mary completou: – não tenho ideia do que disse para Joshua, mas ele te procura e não está feliz.

Mary, ignorando todos ao seu redor, seguiu para o cômodo de onde vinha música. Paul a seguiu em passos preguiçosos. Adam segurou o rosto de Kate ao falar:

– Eu vou ter que subir, mas já volto para te fazer companhia. Você vai ficar bem?

– Claro – ela o respondeu, sorrindo.

Adam, depois de trocar um selinho e afagar seu cabelo, a deixou e subiu as escadas, sem perceber que Paul voltava com duas taças de espumante e fechava a porta do salão em anexo.

– Melissa, eu tenho uma ou duas palavras para trocar com você, se não se importa.

Kate engoliu em seco, mas achando ser mais uma de suas ameaças corriqueiras e se sentindo protegida pelo evento que acontecia ao lado, seguiu Paul até o cômodo que ele mostrava.

– Depois de você – o garoto lhe sorriu cortês, e Kate entrou insegura na sala ampla com uma grande mesa redonda circular e algumas cadeiras dispostas. Era uma sala de reunião, ela concluiu silenciosamente, recebendo a taça que Paul a oferecia.

Ele fechou a porta, que se trancou num clique.

– Ao que brindamos? – a garota perguntou casualmente.

Toda a descontração que Paul demonstrara há segundos desapareceu. Seu rosto se contorceu em vitoriosa desconfiança. E nesse momento, ele mostrou à garota que ela só estava engatinhando no jogo. Mas não conhecia todas as regras e certamente, desconhecia os participantes daquela perigosa teia. O verdadeiro mestre da manipulação estava ali e a presa havia caído em sua cilada.

Ele deixou isso claro em uma única palavra. A última de sua fala.

– Brindamos a você, Kate.


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Notas finais do capítulo

Um brinde a cara de pau da autora, que acaba assim o capítulo. Hehehe
Gente, quero agradecer muito a minha nova beta, a Luana Dias. Ela me ajudou nesse capítulo, além de corrigir o meu texto, o transformando. Muito obrigada, Lu!
A Maricélia, leitora linda, que também me deu várias dicas.
E claro, a Thays e a Bird pelas recomendações lindas! Muito obrigada, meninas!
Aliás, quem ainda não conhece o Prenúncio de Ágape, a fic da Tha, vale a pena conhecer.
A capa desse capítulo foi feita pela talentosíssima Unwordly, ela também escreve. E muito bem, por sinal ;)
E é isso, pessoal! Muito obrigada pelos comentários, por favor me contem o que acharam desse capítulo, é um marco bem importante essa descoberta e queria saber a opinião de cada um de vocês (até dos fantasminhas, sei que vocês também têm algo a dizer). :)
Eu viajo dia 21, mas vou me esforçar muito para postar antes, ou terei de esperar por 2015!
Abraços fortes!