Irreal escrita por Pepper


Capítulo 4
Lágrimas clandestinas Part.2




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Já disse para ti, que no fundo, entendo porque sou tão associada ao sofrer? Por que me culpam pelos cacos de um coração partido?

Porque simplesmente, é minha culpa.

Os deuses me amaldiçoaram, não pode ser! Estou sempre presenciando dias macabros. Como me odeio por isso! Lembra-se de quando disse que abençoara Janaína com a beleza? Que ela seria uma garota amável? Admito que isso teve um lado ruim, e este fato se concretizara naquela noite em que eu a visitara anos depois. Ela tinha seus dezessete anos, se mal me engano. Lastimo tal dia até hoje... Bati à porta da casa perto do Rio Hudson que estava inquieto pela chuva forte daquele fim de tarde. Atendeu-me uma jovem morena, esbelta e ferida. Seu rosto manchado de sangue lágrimas que insistiam em sair.

–Não conta pra minha mãe. - A menina, antes doce e feliz, agora me abraçava, machucada, marcada.

Eu passei a mão em seus cabelos embaraçados, a empurrei com delicadeza pra dentro da casa e fechei a porta. Segurando seus braços, a sentei no sofá e me ajoelhei a sua frente, para ver melhor o rosto.

O olhar como o de Clarinha ao ver a mãe morta, machucado, marcado. Olho roxo, corte nos lábios e na maçã do rosto. Um corte que não parava de sangrar. Assim como seu coração.

– Querida, o que houve? Cadê sua família? Seus irmãos, seus pais...

– Estão todos trabalhando... - Ela respondeu cabisbaixa. -Eu me arrumei hoje para sair com meu namorado e... - Ela começou a chorar mais e mais, se apoiou em meu ombro, e eu já sabia o que havia acontecido. Fui tomada por raiva e impotência. Eu não podia fazer nada, eu era a causa disso.

– Porque? - Eu a perguntei, calma, sem esperar exatamente uma resposta. Depois de muito chorar, ela ergueu a cabeça e eu sentei ao seu lado, ela me olhou, ainda com lágrimas caindo sem permissão.

– Eu quis terminar com ele... Disse que já não sentia a mesma coisa. Fui sincera, como você me ensinou Tia... Ele ficou bravo... Começou a gritar, perguntando o que ele fez, que ele me amava... Eu disse que eu não podia estar com alguém sabendo que não vou amá-lo... Como pensava amar... Ele ficou com raiva e... e... - Ela não conseguiu terminar de falar.

– Tudo bem... Não se force a falar. Se acalme. - Eu a abracei e não a larguei até se acalmar, quando finalmente o fez eu perguntei. - Vamos cuidar de você primeiro, tudo bem? - Ela apenas assentiu.

Fui procurar na casa algo que a ajudasse. Não entendia muito disso, mas já vi pessoas fazendo isso. Achei remédio que limpa machucados, e uma pomada para hematomas, após muito procurar, claro. Fui até ela e limpei seus ferimentos, via em seus olhos que estava distante, provavelmente lembrando do que havia acontecido, de vez em quando lágrimas clandestinas atravessavam-lhe o rosto, e cada lágrima doía em mim, como a dor de envelhecimento, só que mais forte e minha aparência física não mudava. Aquela era a afilhada do Amor, e estava ferida, tanto no rosto, quanto na alma.

– Quer ir a polícia? - Lhe pergunto quando termino de cuidar dela. Ela nega. Eu respiro fundo e pergunto: - Onde ele mora.

Ela me olha apreensiva.

– Tia Bélle, não vá fazer nenhuma besteira, por favor.

– Diga.

– Não, ele pode te matar tia! O pai dele é chefe de polícia.

Eu coloco uma mecha de seu cabelo atrás de sua orelha.

– Não vou fazer nada, apenas me diga onde ele mora.

Ela suspirou, pegou uma folha de papel e uma caneta, que sempre ficava disposta em cima da mesa central da sala. Lá, ela escreveu o endereço e dobrou o papel e me entregou.

– Não quero você lá sozinha.

– Não temas por mim, querida. - Lhe beijo na testa. - Vá para seu quarto descansar, vou esperar seus pais chegarem. - Ela não protestou, apenas me abraçou e desapareceu da sala, me deixando só, com meus pensamentos. Não demorou muito para sentir a presença de minha amiga, Morte.

– Sabe que é besteira. - Ela aparece sentada ao meu lado. A morte usava um sobretudo preto, aparentava ter seus 25 anos e era bonita. (Não sei se comentei, mas como a morte trabalha muito, ela nunca envelheceu como eu)

– O que? - Pergunto, fingindo-me de desentendida.

– Eu vim por causa do pensamento de morte que senti, e pela intensidade, percebi que vinha de você. Sabe que não é a primeira vez, e fomos punidas com a mortalidade.

Eu fui punida não? Reclame quando as pessoas pararem de morrer. Eu aparento ter o dobro de sua idade! Como vão puni-la? Tirando a morte do mundo? Tornando humanos eternos deuses? Eles tiram o amor, não a morte.

– Não se faça de vítima. Você pelo menos interage com as pessoas, e elas tem adoração por você, e tem muita gente que busca o amor. Todos me temem, e eu só tenho você. Sem falar que algumas almas são pesadas! Minhas costas doem!

Nós rimos.

– Não vou matá-lo, não cometerei este erro novamente... Mas ele vai pagar pelo que fez com Janaína.

– Depois não reclama quando dizem que o amor é vingativo... - Ela zomba.

– Escuta aqui, você não tem almas para recolher, não?

– Tenho... Bom, agora me despeço, cuidado, você não nasceu para ser assassina, e não quero levar-te embora ao mando dos deuses. - E a morte se foi.

Mas meus pensamentos se embaralhavam cada dia mais. Me fazendo lembrar de muito tempo atrás, quando eu nunca envelhecia, quando todos amavam, e quando a primeira morte por amor nasceu. Ao contrário do que deves pensar, o primeiro que morrera por minha causa acontecera não ha muito tempo distante daquela época... E foi, literalmente, minha culpa. Os deuses puniram a mim e a morte por isso, mas claro, apenas eu sai mais afetada. Quando as pessoas pararem de morrer, ela poderia reclamar. As pessoas mal alcançavam os cem anos... Do que ela poderia reclamar de tal punição? Aparentaria 25 anos eternamente.

Clara chegou primeiro, abriu a porta e me cumprimentou feliz por me ver lá. Mal sabia, que não ficaria feliz por muito tempo.

– Clara, preciso te contar uma coisa... É sobre Janaína. - A mãe se assustara, e eu contei o ocorrido, com ela sentada para não cair dura no chão da casa ao lado do Rio Hudson.

Bom, olha a hora! Criança, tens de voltar para tua casa, amanhã, ou depois, quando quiser, voltes, e contar-lhe ei mais sobre tais dias macabros.


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