Entre Ódios e Desejos escrita por Lara Campos


Capítulo 3
Capítulo 3 - Quem disse que tenho culpa?


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem de como estou retratando as personagens. Sugestões e críticas são bem vindas. Boa leitura!



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Acordei mais cedo do que o usual com uma sirene filha da mãe entupindo os ouvidos. Tapei-os, ou ficaria surda, e sentei-me na cama de cima da beliche de mau humor.

_Que merda é essa agora, Latina?

_Eu não sei, branquela, mas para de dar chilique.

Ela era um amor.

Morello – a garota da van – passou pela nossa porta batendo com as mãos uma na outra e avisando que ficássemos de pé, pois uma detenta estava desaparecida e haveria uma contagem surpresa. Todas nos encostamos em nossas camas. Eu estava com medo, por algum motivo. Não sabia muito bem porque, mas odiava profundamente aquele som estridente da sirene que me acordara e que se manteve por uns bons dois minutos inteiros em minha cabeça, pelo menos. Fechei meus olhos em um ato de impaciência e uma imagem me veio à cabeça.

Minha mãe.

Todas as vezes que me buscava da escola, passava, logo após, na loja de conveniências em que trabalhava no Brooklin, para comermos. Ela sempre aproveitava o horário de almoço dos funcionários para me enfiar na cozinha sem que os chefes vissem e me dava algo para comer almoçar ali mesmo.

“É só mais hoje, filha, só mais hoje”, dizia ela todos os dias e eu nem reclamava mais, apesar de odiar sair com meus sapatos cheirando a gordura daquele lugar.

Foi aí que percebi de onde vinha meu súbito medo. Na verdade, angústia. Aquele som se assemelhava aos chamados para o almoço no trabalho dela. Todos os dias durante mais de um ano, ouvi-o, ininterruptamente, e me esquivei dos olhos atentos para conseguir dois pedaços de frango e uma marmita com macarrão e molho de almondega.

Um rapaz gordinho e simpático fez a contagem, em meu cômodo, e o bigode engordurado, mais conhecido como pornstache, passou logo após só para dar aquela checada final e nos aporrinhar com seu baixo calão.

_Bom dia, senhoritas – saldou-nos em posição de sentido – Hoje é um dia muito importante para todos nós, sabe porque? Apareceremos em rede nacional.

Raven, Martha e a Latina sem nome definido começaram um murmurinho e vários Oh’s foram proferidos como se aquilo fosse grande coisa.

_Somos a prisão modelo agora, gostosão? - Raven enrolou uma mexa dos cabelos ruivos com o indicador direito -.

_Minha querida – o guarda se aproximou da detenta, cheirando-a. Nojento – Quem você pensa que é pra me chamar assim no meu território?

_Achei que...

_Você não tem que achar nada! – bradou e sua voz ecoou saindo pelo corredor – E passe em minha sala hoje as seis – sussurrou em seu ouvido, sendo eu a única a ouvir o que de fato ocorreria -.

Todos se aquietaram, cada guarda voltara a seus postos e saímos mais cedo para o café da manhã industrializado que Red – a russa da cozinha – preparava. Enquanto cada um daqueles que trabalhavam no presídio se empanturrava de rosquinhas e donuts, fazendo questão de mostra-los a nós durante as refeições, comíamos algo parecido com uma coalhada meio amarelada e duas bolachas Wafer aborrachadas. Definitivamente eu nunca me acostumaria com aquilo. Infância pobre, vida adulta de fartura, e agora miséria total novamente. Justiça americana filha da puta.

Raven comentava sentada ao meu lado – apenas ela em minha mesa - que ninguém sabia exatamente o porque da aparição em rede nacional.

_É irado não é?

_O que? - indaguei-a sem animação -.

_Nós, Leitchfield, rede americana nacional, branquela.

_Isso não faz a menor diferença, garota.

_Claro que faz! – ela parecia ter doze anos com aquela fala entusiasmada idiota – Aposto que se eu aparecer nas câmeras meus pais vão vir me visitar. Eles vão ver onde estou, isso é do caralho.

Resumi-me ao silêncio. Ela era, mesmo, apenas uma criança. Parecia muito uma garota que certa vez eu havia entregado heroína a ela numa rua de Londres, e que por ser uma de minhas primeiras entregas, fez com que eu me sentisse muito culpada. Mas, definitivamete, aquele sentimento era passado.

Eu não diria soberba, mas eu me sentia um pouco menos baixa do que todas aquelas mulheres. A justiça, a mesma filha da puta que me fazia estar naquela prisão federal medíocre e comer como uma...detenta, igualava-nos, todas nós. Cada discurso idiota de separação de castas com que convivíamos todos os dias, só me fazia refletir sobre o quão iguais todas nós éramos ali, sem distinção étnica, de cor de pele ou status social. Nosso status era o de “prisioneiras”.

Eu nunca havia matado ninguém, aliás, nunca fiz mal a uma mosca. Talvez a controvérsia sobre o tipo de negócio em que eu me inseria, poderia dizer que, sim, eu fazia mal a milhares de pessoas mundo afora, colocando-as no vício. Mas, sinceramente, eu não acreditava em bulhufas desse discurso ideológico agitador de palanque político. Só há comércio onde há demanda. Se cada estado não sabia legislar tão bem seu território, cuidar de seus jovens; se cada família não ensinava o que era decência a esse bando de delinquentes drogados, nós, da máfia, não tínhamos culpa. Quem educa é a escola e os pais; nós, apenas sobrevivemos.

A Latina veio correndo à minha mesa em meio ao nada, de repente.

_Querem te ver na sala do Conselheiro, Vause.

_Eu?

_Claro, chica, mova esse traseiro antes que eu mova ele pra você.

Levantei-me sem entender, transitei por vários corredores e Healy me esperava na porta de sua sala com dois homens de terno parados ao seu lado. Pediu-me que eu entrasse em sua sala, fechou as portas e se sentou.

_Olha, Vause, nós nunca tivemos uma detenta tão, digamos, importante como você. Aparentemente as mães de família da América toda querem sua cabeça.

_Merda, isso tinha que ser sobre mim...

_Você corrompeu crianças, minha jovem. Uma moça tão bonita como você...

_Ah, tá, ok, Sr. Healy, corta esse papinho de merda e me fala quem são aqueles dois ali fora.

_Eles são da imprensa local. Querem saber, e já estão autorizados a ter essa informação, quem você vai dedurar.

Como assim¿ A imprensa não tinha o mínimo direito de me pressionar a dar informações confidenciais e que iriam, talvez, atrapalhar a captura dessas tais pessoas. Aquilo era absolutamente ridículo. Além do mais, nada de rede nacional, pelo menos. Todos estavam muito errados, para minha sorte, por enquanto.

_O Sr. Percebe que isso não faz o menor sentido?

_É o sistema, querida. Informações são vendidas, por aqui.

_E o senhor embolsa esse dinheiro sujo, não é, seu filho da mãe?

_Abaixe o tom, mocinha, estou tentando te ajudar. E você parece ser uma menina boa, apesar dos pesares. Se você prometer duas coisas pra mim, não permito que eles te encham mais nenhuma vez. Nem que isso desagrade a diretora.

Assenti, meio sem saber o que dizer. E ele continuou.

_Quero que você vá à capela orar com nossa freira todas as quartas, enquanto estiver aqui.

Aquilo parecia conselho para crianças, mas o combinado não saía caro, não é...

_E quero que você não tenha contato com uma detenta que é chamada aqui de Boo. Pode me prometer isso?

_Claro que posso – respondi sem ao menos entender uma vírgula daquela situação e sem nem saber o que ele ganhava com aquilo.

Saí da sala do Conselheiro e os “imprensa” foram embora, pedindo a informação a respeito das minhas delações até o dia seguinte. Mais uma vez eu estava encurralada em meus pensamentos e já praticamente decidida, com um ódio que me enchia o peito e que me impulsionava a dizer o nome dela logo. Sentei-me no chão do corredor, recostei a cabeça em meus joelhos e comecei a chorar feito uma criança. Há dias eu não soltava aquela frustração toda, eu precisava daquilo. Urgentemente.

Senti duas mãos quentes segurando as minhas, mas não levantei o rosto molhado dos joelhos.

_Hey, hey, princesa, o que é isso? Vem cá...

Era Nicky.

Ela se sentou ao meu lado, recostou meu rosto em seu ombro e começou a chiar, como uma mãe faria a um de seus bebês ao prepará-lo para o sono. Eu apenas senti mais vontade de continuar chorando e ela me abraçou, como quem me segurava para que eu não desmoronasse.

_É sua primeira semana, Vause. Só a primeira... Fica calma, vai, você não tá sozinha.

Continuei aninhada em seu colo, envolvida, e me senti pequena demais ali, nos braços daquela estranha. Meu peito se esvaziou um pouco, porém. Solucei um pouco, limpei a água do rosto, mas me mantive ali. Ela começou a cantarolar Highway to hell, como quem,, numa ironia profunda tentava me acalmar com uma canção que fazia apologia à ida de alguém a um inferno. Eu já estava nele. Mas o som era doce, era sincero. E eu enfim, me acalmei.

Passado aquele dia, acordei mais cedo um pouco e fui à sala do Conselheiro. Entrei sem bater, peguei um papel e uma caneta e escrevi, entregando para ele em seguida.

_Piper Chapman – disse ele – Muito bem.

Saí da sala segurando o nó na garganta para não soltá-lo novamente e decidi que de ali de em diante eu não me preocuparia mais com nada. A penitenciária era meu novo lar temporário e eu me adaptaria, como uma boa sobrevivente o faria, e sairia para contar aquela história para meus amigos em uma praia brasileira, ao pôr do Sol e à beira mar, quando livre.

Adiós, ressentimentos malditos.


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