Um Outro Lado da Meia-Noite escrita por Gato Cinza


Capítulo 20
A rainha e o pirata - Parte 1


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo deveria ter sido postado antes do anterior, mas eu ainda tinha duvidas entre postar ou não... acabei me decidindo por postar. Como era um pouco longa dividi em dois.

Ambos capítulos narram em terceira pessoa acontecimentos da vida de Morticia aos quinze anos, quando ela conheceu um amigo á quem julga ser o verdadeiro George Linnett III.

Boa leitura crianças ^^



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/544239/chapter/20

Estavam em Ravenna para a Cerimônia das Ondinas que aconteceria no dia seguinte. Verbena deixara Morticia na companhia de algumas amigas enquanto ia visitar os mercados pela vigésima vez naquele dia. Morticia aos quinze anos estava mais interessada em observar a organização do evento que fazer compras como todas as jovens bruxas presentes ali. Ao entardecer sentou-se afastada de todos para poder apreciar o por do sol, sobre o mar, de onde estava podia ver uma grande embarcação cheia de mastros e velas. O sol já tingia o horizonte de tons rubros e róseos flamejantes quando ela sentiu uma picada na mão, bateu com força no inseto antes de ver o que era. Uma aranha pequena. No segundo seguinte sua visão ficou turva e desmaiou.

Abriu os olhos mirando o teto de madeira. Com muito custo ficou em pé. Mal dera alguns passos e suas pernas a traíram, tentou se apoiar em uma mesa que achara ali e acabou por derrubar tudo fazendo mais barulho que o necessário... Quando acordou novamente havia um garoto sentado ao seu pé na cama, ele lia.

– Onde estou? – perguntou se levantando

– Está a bordo do Leemyar, senhorita – respondeu o garoto de aparentes treze anos com forte sotaque.

– Limiar... onde fica isso?.

– Não é Limiar como começo é Leemyar igual á rainha Libuse Leemyar.

Morticia já olhava o quarto baixo onde estava. Parou alguns instantes diante de um espelho triangular com moldura prateada riscada de símbolos mágicos. Curvou a cabeça tentando memorizar os símbolos para procurar depois o significado, no canto do espelho havia um rascunho de três rostos, um homem de meia idade, uma mulher de sorriso perfeito e um menino. Após analisa-los teve uma breve certeza que conhecia o homem, talvez estivesse um pouco mais jovem no papel, mas sem duvida o conhecia.

– O que sua rainha Leemyar quer comigo?

O menino ergueu a cabeça, surpreso.

– Não há rainhas á bordo. Leemyar é um navio pirata, foi o capitão quem te achou e trouxe para cá.

Morticia se imobilizou com olhos focados na própria imagem no espelho. Navios piratas, seu irmão lhe contava histórias sobre piratas. Eles não eram coisa boa. Ignorando o suor nas mãos e o tremor nas pernas, perguntou com a firmeza com que Margarida lhe dirigia uma ordem:

– O que aconteceu comigo?

– Foi picada por um aracnídeo. Teve febre um pouco, mas já está bem, certo?

– Há quanto tempo estou á bordo?

– O sol havia desaparecido quando o capitão te trouxe e ceamos há pouco

Morticia se virou alarmada, a porta estava do outro lado. Em passos rápidos atravessou o quarto e saiu para o convés. O céu escuro estava pontilhado de estrelas brilhantes e uma meia lua prateada que refletia na água. Morticia teria parado para apreciar se não estivesse procurando um meio de voltar para o porto.

– Senhorita, o capitão vai ficar zangado se a vir aqui fora – explicou o garoto apavorado – Ele vai descontar sua fúria em mim depois que joga-la ao mar.

Morticia riu, mais nervosa que queria demonstrar. Aquele navio não estaria ali sem permissão dos sereianos, e tinha visto os símbolos no espelho e o rascunho. Havia bruxos naquele navio. Para sua surpresa sua voz soou mais firme e convincente que nunca quando disse:

– Se seu capitão me causar um terço do medo que lhe causa, então terei respeito por ele. No mais é ele quem deve me temer.

– Sua confiança é formidável para se impor á uma criança.

Toda a confiança destemida de Morticia desapareceu ao erguer os olhos e ver encostado ao leme, o capitão. Ele era esguio, bonito e tinha um ar assustador, sério, olhar frio e estava acompanhado de quatro outros homens igualmente assustadores. Naquele momento Morticia podia ter se jogado ao mar e se afogado, mas o menino á sua frente gaguejava, em francês, explicações pelo motivo da “convidada” do capitão estar no convés e não no quarto, foi o medo dele que ela se agarrou ao falar:

– Quero voltar para o porto, senhor.

– Sinta-se a vontade para voltar, espero que seja uma boa nadadora para chegar á praia sem se afogar.

Os homens ao lado do capitão riram da ideia. Morticia sentiu o rosto queimando.

– Não pode me levar até lá? – indagou.

– Posso, mas não a levarei

– Ao acaso sou sua prisioneira?

– Não vejo nenhuma utilidade ter uma criança insolente em meu navio, ainda mais uma mulher. Entretanto caso não tenha notado é noite. Prefiro joga-la ao mar como sugeriu o aprendiz á correr o risco de ser tragado por sereias.

Morticia olhou para o mar novamente, estava tudo silencioso que ela podia nadar sem preocupações, isso se ela soubesse nadar. Encolheu os ombros e sentou-se olhando para o porto que parecia estar dormindo na escuridão noturna. Embora estivesse olhando para o mar, sua concentração estava focada no navio, cada conversa e cada barulho. Nem todos ali eram italianos como ela notara, havia outros idiomas que se misturavam uns aos outros durantes as conversas. Havia risos e risadas de piadas grosseiras que ela sequer entendia. Havia um toque de musica nos movimentos coordenados da tripulação e no som suave do mar abaixo deles. Morticia se pegou sorrindo ao imaginar-se navegando como uma pirata pelos mares, conhecendo lugares jamais imaginados.

Deu de ombros para afastar suas ideias infantis. Ela tinha quinze anos, logo estaria casada. Precisava parar de sonhar com histórias contadas por seu irmão para lhe causar medo, talvez um dia contasse aos seus filhos sobre como conhecera um navio pirata, mas isso seria uma história assim como todas as que ela ouvira antes. Piratas eram perigosos e ela teria sorte se saísse dali viva.

– Pelamor! Morticia – repreendeu-se – Temer o desconhecido é sensato, ser controlada pelo medo é idiotice.

Olhou em volta, fazia um tempo que notara o aumento do silencio. Todos haviam se recolhido e apenas ela ficara ali fora. Dando uma última olhada ao porto, voltou para a cabine que haviam lhe destinado enquanto estava inconsciente. A cabine estava escura, embora tivesse certeza que havia uma janela por onde a luz do luar iluminara o lugar mais cedo e havia um castiçal com uma vela acesa junto a cama, á passos lentos caminhou até chegar a cama, não queria dormir, mas também não queria ficar olhando para o mar escuro ou o céu estrelado ou o porto distante.

Tateou a cama verificando se não havia ratos ou baratas, para seu pânico havia uma pessoa. Alguém que segurou seu pulso com força e a virou contra a cama, se colocando sobre ela, Morticia ouviu um raspar metálico e sentiu algo frio contra seu pescoço. Ia morrer na cabine de um navio pirata sem nem mesmo se despedir de sua família. Ignorando todas as regras de nunca usar magia diante de um estranho – bruxo ou não. Ela gritou com a voz abafada pelo medo:

“Lumina!”

A luz pálida do luar invadiu o recinto ao mesmo tempo em que a vela ao lado da cama se acendeu. Os olhos azuis quase prateados a fitaram na semi escuridão.

– Bruxa – sussurrou o capitão do Leemyar em tom ameaçador

– Capitão – ela murmurou com grosseria, detestava ser ameaçada quase tanto quanto detestava receber ordens.

– O que faz em meu quarto? Menina?

– Responderei assim que tirar essa lamina de meu pescoço

Cauteloso ele estudou a expressão desafiadora da garota a sua frente, tinha olhos deslumbrantes quase dourados sobre a luz fraca da vela, teria rido se visse aquela expressão em outra pessoa, mas em uma bruxa, raiva e medo nunca eram boa combinação. Os lábios finos na pele suavemente bronzeada e os cabelos escuros esparramados sobre o lençol vermelho era quase um convite á sedução. Soltou um grunhido de alto repulsa, ela parecia ter uns treze anos ainda. O capitão virou a mão, desviando a espada do pescoço dela, mas se manteve a segurando na cama.

– O que faz em meu quarto? – reperguntou impaciente

– Está ficando frio lá fora, Capitão, apenas retornei á única cabine que conhecia neste navio. Agora pode, por favor, sair de cima de mim?

Com um movimento ágil ele se sentou afastado dela. Morticia se levantou, irritada com aquilo tudo. Fora á Ravenna para assistir uma cerimônia, um rito de passagem de sereias e tritões para a forma humana permanente, e agora por causa de uma aranha morta ela era prisioneira de um pirata mal-humorado em seu navio de pirata cheio de piratas não tão assustadores. Começou a andar de um lado para o outro tentando controlar o tremor nas mãos que para variar estava suando novamente.

– Tem outro quarto em que eu possa repousar? – perguntou desejando que sua voz soasse tão firme quanto queria.

– Isto não é um hotel, é um navio. Não tenho cabines disponíveis á bruxas

– Então ficarei nesta cabine, Capitão, já que esta cabine abriga um bruxo – replicou tão insolente quanto era quando discutia com Leonel.

O capitão do Leemyar riu. Não uma risada divertida e sim uma risada cheia de sarcasmo. A garota era petulante o bastante para desafia-lo em seu navio á um assovio de distancia de sua tripulação. Se não reconhecesse o medo nas pessoas, teria acreditado que ela era a personificação da coragem.

– O que me denunciou? – questionou jovial, esperando que ela se distraísse e parasse de andar de um lado para o outro.

– Fui picada por uma aranha e não há sinal, nem dormência em minha mão. À runas celtas talhadas na moldura de seu espelho triangular e tenho quase certeza que mesmo um pirata teria mantido a espada em meu pescoço por saber que sou uma bruxa.

Ele sorriu desta vez um sorriso sincero. Metade das pessoas o temia e outra metade daria uma fortuna para quem o matasse. Ela, no entanto mantinha os passos confiantes, o queixo erguido e a voz firme. Pensava rápido e não baixava a cabeça retraída como todas as mulheres ou no caso, crianças, de sua idade. Em alguns anos se tornaria uma bela mulher.

– Como se chama criança?

Morticia parou de andar, o olhou brevemente, podia corrigi-lo e dizer que não era uma criança para ser tratada como uma, mas quem sabe não fosse mais seguro ser uma criança entre piratas? Retornou á circular pelo pequeno espaço da cabine. Dizer seu nome á um estranho nunca foi sua opção favorita.

– Libuse Leemyar – disse com um sorriso divertido

– Não é não

– Me acusa de mentir, Capitão? Que prova tem de que não me chamo Libuse Leemyar?

– Não acredito em coincidências, majestade.

– Nesse caso pense que é destino. Estar no lugar exato na hora exata e me socorrer quando eu precisava. Acho que lhe devo agradecimentos

– Aceito sua gratidão

Morticia riu. Não sabia quanto tempo faltava para o amanhecer, mas sabia distrair a atenção das pessoas quando lhe convinha.

– Disse que lhe devo, não disse que lhe agradeço. Agradecerei quando estiver junto de minha irmã em segurança, no porto ao amanhecer.

– Tem uma irmã? Bruxa também, imagino. Nesse caso devo supor que está em Ravenna para a cerimônia das ondinas.

Para a tranquilidade do capitão do Leemyar, ela parou de andar. Apenas parou, imóvel, olhando o reflexo do luar. Sua mente vagava ligeiramente pelos acontecimentos daquele dia, Verbena devia estar enlouquecendo á sua procura, provavelmente já teria informado Narciso sobre seu desaparecimento.

– Eles vão me matar – murmurou sentando na cama

– Eles?

– Meus irmãos. Eu passei dias prometendo que ia me comportar se viesse ver a cerimônia e quando eles me dão um voto de confiança, desapareço.

– Costuma trair a confiança de seus irmãos?

Ela apenas fez um gesto de descaso com a mão. O capitão estendeu a mão tocando os cabelos negros ondulados dela. Morticia não se moveu, mentalizou um feitiço de aceleração, mais um movimento e ele teria o coração acelerado á ponto de sangrar pelos olhos. Não conhecia muito da anatomia humana, mas estudava alquimia e sabia um pouco sobre o funcionamento do corpo humano. Sabia que o coração de um adulto saudável bombardeava cerca de trinta litros de sangue por minuto e que humanos tinham menos de dez litros, um coração acelerado bombardearia tanto sangue e as veias estourariam e o sangue sairia por todos os orifícios. Ele se afastou dela tão rápido quanto se aproximara. Deixando a tentação de causar um assassinato involuntário, Morticia perguntou:

– O homem naquela pintura no espelho, é membro do tribunal da magia, certo?

Como ele não respondeu, ela se virou. Os olhos do capitão eram gélidos, em um ato reflexivo ele estendeu a espada para o pescoço dela, por um segundo ela temeu por sua vida, culpa de sua mania de falar demais.

– Tem os mesmos olhos frios e azuis – justificou – Mas os do senhor são prateados. Podiam ser pai e filho.

O capitão apertou mais o punho da espada deixando os nós dos dedos brancos, com relutância baixou a mão. Morticia sorriu, aliviada. Nunca fizera tanta força para controlar uma palavra como nos segundos em que o capitão hesitou entre mata-la ou não, pensou como teria sido se ele cortasse o pescoço dela, os dois estariam caídos sangrando sobre a cama. Contra sua vontade calou outra pergunta que se formava em sua mente, lhe perguntaria se ele era filho de George Linnett. Mas a resposta era obvia.

– Desculpe se falo demais – disse sincera – Costumo tagarelar quando fico nervosa e tendo a distrair a atenção das pessoas.

Ela se levantou voltando á caminhar de um lado para o outro.

– Suponho que não costuma dormir quando fica nervosa também – resmungou ele de olhos fechados

– Faz muitas suposições, senhor capitão. Eu dormirei quando não estiver em um navio pirata e quando tiver certeza que não serei assassinada.

– Não somos assassinos, não de crianças.

Morticia riu mais nervosa que antes.

– Nunca fiquei tão feliz por ser uma criança, mas não são vocês piratas de quem tenho medo.

O pirata abriu os olhos, ela não mudava o ritmo dos passos circulares e firmes, seus contornos esguios e seus olhos perigosos lembravam-no vagamente á uma pantera enjaulada que ele vira há muitos anos. Aquela imagem comparativa não o ajudou muito, sempre tivera uma paixão por caçar grandes felinos exóticos. Trincou os dentes fechando os olhos novamente, tentando ignorar o farfalhar do vestido cinzento, desejando acima de qualquer coisa que ela parasse de andar se concentrou em conversar:

– Se não teme aos piratas, de quem tem medo?

– Meu irmão.

– Achei que diria seu pai.

– Ele se foi há muitos anos. Agora só nos resta meu irmão.

– Sinto muito – disse sincero, ficando de repente curioso – Tem quantos anos, rainha Libuse?

Morticia lançou um rápido olhar irritado para ele. As pessoas tinham habito de tentarem fazê-la falar o que não queria dizer, seu passatempo era distrair a atenção das pessoas e não se deixar ser distraída. De algum modo sabia que estava segura, ao menos era o que esperava.

– Completei quinze outonos há trinta e dois sabás.

Os olhos prateados voltaram a fita-la, analíticos. Era pequena demais para ter quinze anos, tinha o rosto infantil e inocente, embora tivesse certeza que não hesitaria quando se tratasse de defender a si mesma, de um modo que apenas uma pessoa que conhecia perigos verdadeiros sabiam fazer.

– Tem quinze anos, mesmo?

– E me chama de mentirosa mais uma vez. Desse modo serei capaz de confiar minha vida ao senhor, Capitão Linnett.

– Será? Confiaria sua vida á alguém que não confia em vossa majestade? – questionou ignorando o uso do sobrenome, sabia o que ela estava fazendo e não ia cair em seu próprio jogo de verdade.

– Se confiar em todos que confiam em mim, terei muito trabalho para protegê-los. Enquanto uma pessoa que não confia em mim sempre estará preparada para qualquer coisa, inclusive uma traição de minha parte. E desse modo nunca me decepcionarei caso seja enganada.

– Lógica incomum.

– Nem tanto. Confiança é uma via de mão dupla, segundo um amigo. Não precisarei ser confiável se ninguém confiar em mim.

– Está certa, ainda que de um modo errado.

Morticia colocou as mãos para trás, cruzando os braços. Ainda estava nervosa, mas se continuasse se movendo não ficaria tremula e logo estaria cansada o bastante para ficar imóvel no canto observando. O Capitão colocou os braços atrás da cabeça analisando a “rainha Libuse”, ela realmente parecia uma rainha pelo modo majestoso com que se movia. Incapaz de conseguir se distrair dela, comentou:

– Sabia que parece uma pantera andando desse modo?

Morticia parou. Procurou por todas as criaturas de que já tinha ouvido falar, de dragões e unicórnios á elefantes e tubarões, de sereias e elfos á anjos e demônios, franziu o cenho desconhecendo tal criatura:

– O que é uma pantera?

O pirata sorriu. A tentação de assombra-la foi maior que sua tentativa de ser amistoso com aquela garota.

– Pantera é um monstro marinho. Cheio de tentáculos, presas enormes e veneno...

– Ah! Por favor – ela o interrompeu – Monstro marinho? Eu seria capaz de inventar criaturas mais assustadoras que tentáculos e presas. E se pareço uma pantera quando ando é mais sensato que seja um monstro da terra e não do mar.

– Observadora. Já ganhei a atenção de grandes plateias com minhas historias de monstros marinhos.

– Não sou uma plateia, seja lá o que for isso. E quero saber o que é uma pantera.

O Capitão riu divertido. Morticia se sentou apreciando aquele som agradável. Parecia conhecer aquele pirata há anos suficiente para se sentir confortável em sua presença. Suspirou voltando à concentração ao redor, ainda estava em um navio pirata e precisava ficar acordada até o amanhecer para não ser jogada ao mar ou virar um tripulante fantasma ou qualquer coisa que pudesse acontecer em um navio de piratas.

– Então? O que é uma pantera?

– Vi uma vez um espécime na costa sul-africana, estava enjaulado. Ele andava de um lado para o outro em seu cercado, inquieto e furioso, olhava de modo cruel para tudo que via, mostrava os dentes raivosos quando alguém se aproximava demais, uma criatura fenomenal. Linda de se observar e perigosa demais para se conviver com.

– Muito explicativo. Devo imaginar sua pantera em forma humana com cinco ou dez cabeças?

Mais uma vez ele sorriu, era divertido irritar uma pessoa sem ser intimidador.

– Uma pantera é um felino selvagem, de contornos esguios e pelagem escura, tão escura quanto seus cabelos – disse passando os dedos pelos cabelos pretos de Morticia

– Por que o que o senhor viu, estava enjaulado? Panteras são assim tão perigosos?

– Não, majestade. É da natureza de criaturas selvagens se tornarem perigosas quando sentem medo. Há pessoas que pagariam caro para ter a cabeça de uma pantera empalhada sobre sua lareira ou ter sua pele estendida sobre seus pés.

Morticia franziu o cenho.

– Mas como é exatamente uma pantera? Com que se parece?

O Capitão do Leemyar se levantou, pegou uma caixa papel e um pedaço de carvão grosso. Começou a traçar contornos suaves. Morticia olhou-o impaciente, gostava de pinturas, mas não tinha menor paciência para esperar. Se levantou inspecionando o quarto. Parou diante do espelho triangular, esticou a mão tocando na moldura prateada. Mordeu o interior da bochecha, olhando por cima dos olhos, queria fazer perguntas. Mas sabia que ele ficaria irritado novamente, ficara antes, quando ela comentara sobre o desenho do seu pai.

– Destino – murmurou reconhecendo uma runa.

– Conhece siglística? – perguntou o Capitão que estava atento á ela, mesmo olhando para seu trabalho manual

– O que é siglística?

– Símbolos rúnicos.

– Reconheço a runa de busca e destino. Para que serve este espelho?

– Para ver.

Morticia revirou os olhos. Continuou procurando por outra runa que conhecesse. O silêncio na cabine era quebrado apenas pelo riscar do carvão no papel. Morticia tocava o espelho, batia com leveza em sua superfície, sabia que aquele espelho não servia apenas para ver. Era quase possível sentir magia ali, apenas não entendia como “ligar”. Deixando a curiosidade vencer mais uma vez, questionou:

– É um espelho mágico, não é? – sua resposta foi um suspiro impaciente – Como funciona?

– Me mostra coisas que estão no meu destino. Lugares, pessoas, objetos... passado, presente e com um pouco de sorte o futuro. Diga a palavra-enfeitiçada e o que quer ver.

A bruxa já tinha ouvido falar em espelhos mágicos, mas nunca vira um de verdade. Estendeu a mão para o espelho mais uma vez e se concentrou em Verbena. Queria falar com sua irmã e dizer-lhe que estava bem. Sentiu um pouco de frio, mas ignorou, sempre sentia frio quando usava feitiços sem nenhuma fonte de energia para canalizar. Ouviu uma exclamação de espanto seguido de um palavrão. Abriu os olhos com cautela, o espelho mostrava sua irmã e mais duas bruxas que conheceram em Ravenna sentadas ao lado uma da outra com as mãos unidas.

– Verby. Estou aqui, Verby.

– Elas não podem te escutar e nem ver – disse o Capitão atrás dela, estava próximo o bastante para fazê-la pular de susto, não o ouviu se aproximando.

– O que estão fazendo?

O pirata estava mais interessado em saber como ela havia conseguido fazer uma imagem aparecer de modo tão nítido em seu espelho, ele levara meses para aprender fazer aquilo e as imagens que via normalmente era nebulosas, opacas ou tremulas. E ela nem havia pronunciado uma ordem. No espelho a imagem se aproximou revelando uma escova de cabelos no centro de um círculo de símbolos.

– Essa escova é sua? – Morticia assentiu – Feitiço de localização. Estão te procurando.

– Genial. E eu preocupada com o estado de nervos dela.

– Esta é sua irmã? – perguntou apontando uma jovem de cabelos castanhos á altura do ombro, rosto redondo e sereno.

– É como sabe?

– Nariz, palidez como de quem se priva do sol, postura. Poderia até acreditar que pertence mesmo á realeza, Libuse.

Morticia deu um sorriso, Verbena havia se casado á pouco mais de um ano com um barão com o triplo de sua idade. Podia dizer que era irmã de uma baronesa, mas isso á tornaria nobre apenas na arte de mentir, e fora ensinada a não mentir.

– Nunca disse que sou rainha, Capitão, o senhor associou o nome ao titulo.

O capitão ia responder com uma provocação, mas ela estava certa. Ele quem associara o nome que ela usou ao nome da rainha viking que o inspirou na nomeação de seu navio. A imagem no espelho desapareceu e outra se formou. Um casamento, a irmã de “Libuse” estava no altar com um senhor que podia ser seu avô. Ela parecia radiante e ele parecia ansioso.

– Desculpe, estava pensando no casamento de Verby.

A imagem desapareceu e o espelho voltou a refletir a cabine. O Capitão não expressou nenhuma reação á imagem, estava acostumado com senhores ricos e viúvos praticamente comprarem jovens esposas, entretanto olhou observador para o dedo da morena ao seu lado, não havia sinal de aliança. Morticia olhou para a mão do Capitão entusiasmada.

– Terminou?

Seu entusiasmo se perdeu ao ver o desenho. O olhou desconfiada, como se ele estivesse fazendo uma piada.

– Pantera é um tipo de gato?

– Sim. São primos como os lobos e os cães.

Mortiça assentiu, o desenho era bonito. O rosto de uma pantera parecia feroz, perigoso como ele disse.

– Posso ficar? – pediu juntando o papel ao corpo

– É seu.

Ela tentou disfarçar um bocejo com uma exclamação, mas o Capitão percebeu.

– Pode dormir aqui. Estará segura – antes que ela recusasse ele completou – Ficarei lá fora, e assim que amanhecer te acordarei para leva-la a sua irmã.

Morticia adormeceu sem nenhuma dificuldade, estava mais cansada do que havia imaginado. Acordou com vozes discutindo. Se levantou um pouco desorientada, ao olhar para os lados se lembrou dos acontecimentos na tarde/noite anterior. Já era dia, como percebeu pela claridade solar que entrava na cabine. Saiu do quarto com passos ligeiros direto para o convés onde haviam poucas pessoas, as discussões vinham do interior do navio, ela seguiu naquela direção após olhar de um lado para o outro em busca do Capitão do Leemyar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Mais um e Morticia voltara á narrar sua vida.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Um Outro Lado da Meia-Noite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.