Um Outro Lado da Meia-Noite escrita por Gato Cinza


Capítulo 19
Das sombras á escuridão




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Fui despertada por um farfalhar discreto, como se alguém estivesse tendo muito cuidado para não fazer barulho, abri meus olhos levando um susto pela quantidade de neblina que me cercava. Olhei para todos os lados e não fui capaz de enxergar mais que alguns metros á frente em qualquer direção, e para cima vi apenas os altíssimos troncos das árvores que subiam sem fim – ao menos para quem estava no chão. Os sons de passos se aproximavam. Procurei um lugar para me esconder e minha única opção foi subir em uma árvore cujos galhos eram grossos e de altura suficiente para ser escalado. Fiquei em silêncio, a floresta sombria que eu conheço é apenas a que uso de passagem entre os mundos. Nunca sai da Trilha dos Iluminados.

Logo vi quem estava caminhando pela floresta àquela hora nebulosa da manhã. Um casal de crianças. A menina magrinha vestia uma camada de panos encardidos e carregava uma espécie de cesto com alça feito de amarras de tecido e madeira. O menino espichado e magrelo vestia uma espécie de manto que cobria a parte da frente e de trás do corpo deixando a lateral descoberta, mostrando um par de calças remendado, ele carregava um grosso pedaço de madeira nos ombros e apontava algo próximo á árvore onde eu á pouco estava. A garotinha correu até o lugar e cavou rapidamente erguendo uma bolota preta. Disse algo em outro idioma, acho que estava alegre pelo sorriso largo que deu. O menino fez um som áspero, resmungou algo naquele idioma estranho e cuspiu. Seguiu em frente fazendo a menina se levantar e pegar novamente o cesto de madeira e o seguir apressada. Mas sem fazer grande barulho.

Estava com fome e com as opções ficar subida na árvore até ter uma ideia do que fazer ou seguir os garotos e lhes pedir informações, eu desci da árvore e os chamei. A menina congelou onde estava ao ouvir minha voz, o garoto se virou se colocando entre mim e a menina, me apontando a tora de madeira. Entendi que aquilo era sua “arma”.

– Como saio da floresta? – perguntei ignorando a tentativa dele parecer perigoso.

Ele grunhiu algo naquele idioma que eu realmente não fazia ideia de que linguagem era.

– Desculpe, mas não falamos as mesmas palavras – disse decepcionada

– Eu falar – disse a garota gaguejando - Sair

Ela me apontou e fez sinal para que os seguisse. Depois falaram algo no idioma deles e ficaram atrás de mim, o garoto apontou para frente fazendo gestos para que eu caminhasse. Ótimo agora eu teria que receber ordem de duas crianças que nem me entendiam direito, mas isso era melhor que esperar sozinha na floresta, não queria usar as sombras novamente. Ao menos até que não tivesse mais outras opções. Caminhamos pela floresta por varias horas, meus pés ficaram dormentes e me coloquei a reclamar sobre ter que andar descalça em uma floresta. Eles estavam colhendo cogumelos, flores, frutinhas, cascas de árvores e raízes que provavelmente eram comestíveis – ao menos reconheci algumas raízes amargas e um tipo de cogumelo que se come.

Os ajudei com sua coleta por um tempo, até me deixar levar pela fome e comer uma frutinha azeda de cor vermelho. Estava comendo, caminhando com o cesto da garota nos braços enquanto ela subia, cavava ou se pendurava para pegar o que o irmão apontava. Me lembrei de quando ia acampar com Narciso para pescar, era eu quem sempre tinha que colher gravetos para fogueira, era eu quem sempre acendia o fogo. Narciso sempre ficava com as partes legais, me dar ordens. Eu gostava de quando era criança, a única coisa com que eu me preocupava era ficar limpa para que quando chegasse em casa Margarida não me esfregasse com minhas roupas até que eu e as roupas estivéssemos limpos. Perdida em minhas lembranças não percebi que as crianças estavam falando comigo, só fui notar quando o garoto bateu na minha mão derrubando minhas frutinhas azedas. Eles falavam e gesticulavam, mas não entendi nada. Senti minha boca dormente quando tentei falar, meu rosto estava dormente e meu corpo não respondia aos meus comandos. As frutinhas eram venenosas. Em pânico comecei a cuspir e tentar vomitar, mas acabei perdendo a consciência.

Alguém pressionou algo quente em minha testa, me ergui assustada empurrando a mão da senhora que limpava meu rosto.

– Deite – mandou alguém, mas preferi não obedecer.

Ideia ruim. Fiquei zonza e fui forçada a me deitar. Inclinei a cabeça para o lado, olhando através da senhora enrugada e pequena que tentava cuidar de mim. Avistei barracos feitos de madeira e barro, alguns eram apenas tábuas pregadas umas as outras formando tetos sem paredes. Haviam fogueiras com animais espetados sobre as chamas e pequenos fogareiros com caldeirões borbulhantes, senti o agradável cheiro de comida sendo preparada e meu estomago respondeu ao cheiro delicioso com um barulho imenso. As poucas pessoas que vi eram idosos, mulheres e crianças. Á poucos metros de distancia uma mulher jovem gritou algo no dialeto que as crianças usavam, um garoto respondeu e um grupo de meninos correu para a orla da floresta, os segui por reflexo. Um grupo pequeno formado por homens vinham arrastando um pássaro enorme de penas coloridas, as crianças estavam animadas com o enorme pássaro falando todas ao mesmo tempo.

– Onde estou? – perguntei com voz arrastada.

A senhora estreitou os olhos me espiando desconfiada. Perguntou:

– Como se chama?

– Libuse, me chamo Libuse Leemyar.

Não ia dizer meu nome á uma estranha, muito menos quando eu podia estar sendo procurada pelo conselho de magia por ter fugido do sanatório, para eles eu ainda devia ser uma louca perigosa. O garoto da floresta se aproximou de nos duas trazendo um balde que fumegava, e sendo acompanhado de um homem de barba castanho espesso e barriga saliente. A senhora umedeceu o pano na água quente e escura do balde e colocou sobre minha testa, pressionando. Estava muito quente. Gemi tentando me afastar, ela me olhou feio e disse alguma coisa em seu dialeto, o homem respondeu e logo estavam conversando naquela linguagem estranha. Acabei caindo no sono mais uma vez.

Acordei sentindo frio. Abri os olhos, era noite e se fazia silêncio, as pessoas deviam estar dormindo. Me sentei com cuidado para não ficar zonza novamente. A julgar pela disposição dos barracos e pela quantidade deles, eu estava em um pequeno vilarejo na floresta. Me deitaram sobre um monte de folhas estranhamente confortáveis, haviam arrancado minha vestimenta que usava no sanatório e me vestiram com uma camisa fina e uma calça de tecido grosso. Meus pés estavam cobertos por folhas, olhei curiosa para eles e quando me levantei para compreendi, estavam feridos.

– Deite-se – disse alguém perto de mim.

Me virei e me deparei com uma mulher jovem de cabelos ensolarados preso em uma trança longa. Ela estava embolada em uma camada de coberta, tinha olhos negros e pele muitíssimo pálida, quase cor de leite.

– Que horas são? – perguntei ignorando a ordem de me deitar

– É hora de dormir – respondeu ela

– Onde estou?

– Aroc. O menor dos cinco povoados da floresta sombria.

E existem povoados na floresta?

– O que aconteceu comigo?

– Segundo as crianças que te arrastaram para cá, você estava perdida na floresta e comeu um punhado de bons-sonhos.

– Onde estão minhas roupas?

– Foram queimadas, elas estavam rasgadas e sujas, você teve febre sua roupa ficou encharcada de suor e estava fedendo. Essas roupas ai são de meu marido.

– Como faço para chegar á Zona Verde?

– Pergunte amanha quando for interrogada para saber o que estava fazendo em nossas terras. Agora vá dormir.

Ela se virou dormindo, fui forçada á me deitar. Incapaz de dormir fiquei olhando o céu estrelado sem luar. O que estaria acontecendo? Tinha muitas perguntas e cada vez mais estava difícil de me ver livre de tantos problemas.

...

– Coma – mandou a mulher de cabelos ensolarados me dando pão sem fermento e uma vasilha com água fresca.

Com a fome que estava não me importei em mastigar com cuidado. Enquanto comia o homem de barba castanha, o garoto da floresta, um homem esquelético e a senhora enrugada se juntaram á mulher de cabelos ensolarados. A senhora enrugada perguntou como estava me sentindo.

– Bem – menti e a agradeci por ter cuidado de mim, o agradecimento foi sincero.

O homem esquelético perguntou:

– Por que estar na floresta?

– Sai da trilha e me perdi – menti novamente.

Me fizeram várias perguntas e menti todas as respostas. Passei o dia entre eles, não tinha menor ideia do que faria e nem para onde iria. Meus pés estavam feridos, minhas pernas escoriadas, meu ombro esquerdo estava deslocado por ter sido arrastada sem menor cuidado por Tiamet – o garoto da floresta. O povoado de Aroc ficava á dez dias de caminhada da Zona Verde, pelo caminho mais curto. Eram pacíficos, caçavam e plantavam seus alimentos. Eram todos nascidos nas trevas, mas o mais perto de magia que chegavam era poções e venenos. Diziam não querer chamar atenção do Alto Regente, seja lá quem for esse. Mesmo sendo todos pacíficos e gentis, me tratavam com muita desconfiança. Pouco antes do amanhecer, quando alguns madrugadores começaram a acordar chamei pelas sombras. Já havia decido pelo que faria e não queria trazer problemas aquelas pessoas.

...

Encarei o céu que começava a clarear além das árvores, o som da água corrente preencheu minha quietude e contemplei em silêncio os sons da floresta que acordava. O dia estava claro, fechei os olhos. Podia ficar deitada próximo ao riacho por semanas, em outra ocasião provavelmente. Naquela manhã eu tinha outro objetivo. Me levantei alongando-me. Caminhei apreciando o caminho era bom ver um lugar familiar novamente, as árvores, os arbustos, as trepadeiras, as ervas daninhas e tudo mais que crescia á beira do riacho me tranquilizava. Tomei o caminho para casa, meu coração estava aos pulos, não sabia se corria gritando chamando por meus irmãos ou se andava sem chamar atenção para lhes fazer surpresa. Sorri, estava em casa. Não sei quanto tempo fiquei parada ali olhando a lateral da casa, minhas pernas simplesmente não se moviam. Estava com uma sensação estranha, mas não vi nada de anormal, resolvi ignorar aquela sensação de perigo, quando me movi para ir em direção de casa fui puxada com força para trás, cai me apoiando no cotovelo.

“Esperava que fosse mais inteligente” – senti o estomago embrulhar ao ouvir aquela voz rascante

Inclinei a cabeça para trás e vi uma criatura que era metade lobo, metade homem, tinha olhos humanos e laranja-brilhante.

“Eles estão sendo vigiados” – disse ele estendendo o braço na direção de minha casa

– Se fazer alguma coisa com eles, eu mato você – falei me levantando

“Eu? Você está sendo caçada pelo conselho, onde pensa que eles esperam que você apareça? Não sou eu quem está os colocando em perigo aparecendo aqui”

Ele ficou entre mim e minha casa. Parecia ameaçador, uma pena que não estava com muita paciência para o medo.

– Saia do meu caminho

“Para ser pega e te matarem? Não”

– Não vão me matar – falei irritada pela intromissão dele

“Acreditam que você é uma fugitiva perigosa. Fugir do conselho não foi sensato, julgaram suas ações e você foi condenada a morte”

Olhei para casa, entendi o que estava estranho. Estava tudo fechado. Àquela hora da manhã Narciso estaria no campo de flores e Magnolia estaria limpando ou lavando. As coisas começaram a girar entrando e saindo de foco. Morte. Senti um aperto no peito, uma sensação de asfixia, parecia que algo estava preso na garganta impedindo a passagem de ar. Estava em pânico.

“Respire” – ouvi a voz distante dele – “Eles estão bem, respire”...

Permaneci sentada com a cabeça baixa chorando feito uma criança, entre um soluço e outro mal registrei que ele havia deixado o lobo e que o lobo havia se deitado aos meus pés. Levei um tempo para me recompor. A ideia de ter colocado meus irmãos em perigo me deixou assustada demais para que pudesse pensar com clareza, quando finalmente parei com meu ataque de nervos, percebi que havia um lobo vermelho-raposa deitado em minhas pernas e que eu o afagava como se fosse um filhote inofensivo. Retirei a cabeça dele de minha perna e me levantei.

– Onde eles estão? – perguntei ao lobo que me fitou com seus olhos caninos castanho-dourados

É claro que ele não estava ali, havia aparecido para me apavorar e quando conseguiu foi embora. Dei a costa para o lobo e gritei para que qualquer um presente á metros de distância pudesse me ouvir:

– Aparece e desaparece quando quer e quando eu preciso de você só me deixa sua casca, muito obrigado por ser um idiota insensível. Seu ridículo, irritante e...

“Está sendo infantil” – me virei, o lobo estava maior e os olhos alaranjados

– Minha infantilidade te fez reaparecer – disse me sentindo satisfeita – Onde estão meus irmãos?

“Eles estão sendo vigiados pelo conselho, na casa de sua irmã baronesa”

Virei às costas, ia para a casa de Verbena, mas alguém discordava de mim e mais uma vez o meio-lobo ficou na minha frente me impedindo de continuar.

“Se te pegarem irão te matar”

– Que tentem – o contornei e continuei andando, ele me seguiu.

“Se seus irmãos forem vistos com você serão acusados de cumplicidade. Serão punidos pelo conselho se tentarem te ajudar”

– Não vou pedir ajuda a eles, só quero vê-los.

“Acha que seus irmãos irão se contentar em apenas saber que está viva? Ou que vai mesmo ser capaz de observa-los de longe?”

É claro que não, eu não iria controlar o impulso de me aproximar deles. E eles – ao menos Narciso e Verbena – iriam querer me ajudar. Hesitei por um momento, então me lembrei de Leonel, ele eu sei que seria capaz de ver de longe e talvez até lhe mandava um sinal de que estava bem. Caminhei com mais confiança, ainda ouvindo os passos do meio-lobo atrás de mim.

– Não estou indo ver meus irmãos. Pare de me seguir.

“Seus amigos também estão sendo vigiados” – parei – “E todas as outras pessoas com quem você tem alguma conexão, qualquer um que você possa querer visitar”

Fiquei irritada.

– Por que está me dizendo isso? O que quer comigo para ficar ai controlando minhas decisões?

Ele ficou em silêncio por um tempo, o que serviu para me irritar mais ainda:

– E então? – questionei cruzando os braços

“Está em perigo e não quero que se machuque”

– Novidades á você, eu não me importo. Fui obrigada á passar semanas, longe, quero ver minha família dizer a eles que estou bem e vou fazer isso.

“Vai arriscar a segurança deles apenas por que quer vê-los?”

Não.

– Por que se importa com eles? O que você quer da gente?

“Não me importo com eles, mas eles são sua família, sei que vai se arrepender se fizer algo que os coloque em perigo”

Ele se importa com eles por que são minha família? Eu estava entrando em algum paradoxo inconsciente ou estava ficando surda. Recomecei a andar e ignorando minha confusão passageira informei:

– Existem Oods atrás deles e nem sei por que. O conselho de magia está nas mãos de um impostor e eu já os coloquei em perigo quando fugi, acho que não tenho mais do que me arrepender.

“Os Oods querem a magia que seu sobrinho possui, você e sua irmã baronesa são a única proteção dele”

– Verbena e eu somos a proteção de Andreas? Como assim? – parei de andar novamente, desta vez olhei para ele.

“Ele é único bruxo de sua família após gerações de maldição. Você e sua irmã por acaso deixariam que seu sobrinho mago sem proteção devida?”

Neguei com a cabeça, é claro que Verbena e eu protegeríamos Andreas até ele aprender usar magia e se defender sozinho dos perigos, tanto do mundo humano quando do não-mundo – embora eu estava o ajudando mais por prazer em magoar Margarida, confesso. Então uma mistura de lembranças tomou conta de minha mente. Verbena fora atacada várias vezes e na última eles quase drenaram a magia dela. O conselho ia arrancar meus poderes. Verbena havia me dito no hospital que alguém estava tentando me culpar por coisas que não fiz. Me lembrei de uma carta onde se dizia que alguém estava tentando me proteger e que minha família estava em perigo.

– Você quem mandou uma carta á Verbena dizendo que era seguro para mim se eu ficasse sobre os cuidados do conselho?

“Sim, fui eu”

Com essa afirmação conclui em voz alta:

– Você me acusou de ter usado a insígnia dos Izvah naqueles homens, foi você quem os fez reabrir as investigações e me julgarem culpada. Comigo morta, Verbena estaria mais fragilizada e derrota-la seria fácil, então teriam Andreas para vocês. É por isso que não me quer deixar falar com meus irmãos. Vai me matar.

“Quê? Não!”

Ouvi o que ele disse, mas estava ocupada correndo para longe dele para prestar atenção. Não fui longe o bastante, ele me alcançou, metade lobo metade homem. Comecei a gritar e me debater feito maluca, ele me segurou com força.

“Pare com isso” – mandou zangado – “Eu não quero te matar, se quisesse já teria feito isso”.

Isso era certo, parei de me tentar me soltar e me concentrei em obter respostas.

– O que está acontecendo?

“Não sei o que...”

– Não minta. Se não é você que me quer morta quem é e por quê?

Os olhos alaranjados dele mudaram, por poucos segundos, mas mudaram. De laranja-brilhante ficaram pretos. Me distrai com aquela novidade, ele tinha olhos pretos. Nem percebi que ele havia me soltado e se afastado. Ele falava algo, mas só ouvi o fim:

“... não sei que é que está fazendo isso com sua família. Suponho unicamente que seja pelo seu sobrinho”

– Andreas só tem nove anos. Que tipo de louco faz mal á uma criança?

“Conheço pessoas que venderiam a alma para ter o poder que se supõe que sobrinho tenha”

– Oods, o impostor, você... quem mais poderia fazer mal á minha família por poder?

“Nunca faria mal a eles”

– Tentou me matar duas vezes, então sim. Você.

“Nunca tentei te matar, se tivesse realmente tencionado isso não estaria viva. Queria apenas que sofresse”

– E como ainda não atingi minha cota de sofrimento, vai continuar me ferindo.

“Não...”

– Não quero saber – gritei o interrompendo, suspirei e prossegui – O que sabe sobre o que esta acontecendo?

“Já disse, não sei”.

– Então me diga o que sabe – falei me sentando á sombra de uma árvore, se ele tentasse algo contra mim, desapareceria nas sombras.

Ele mudou de forma novamente, pareceu ser apenas um lobo-gigante sentado na minha frente, mas os olhos ainda eram humanos com a cor do por do sol.

“Eu soube da marca que surgiu no corpo dos três homens que você matou, aquilo não devia estar lá, havia restaurado o corpo deles parcialmente para apagar sinais da magia que você usou para mata-los”

Ele ficou em silêncio me olhando, impaciente o mandei continuar.

“Como conseguiu fazer aquilo? Queimar uma pessoa viva tudo bem, mas dilacerou dois adultos como se fossem insetos, nem mesmo ursos selvagens famintos fariam um estrago como o que causou”.

– Estava com raiva do que fizeram á Valentine, queria apenas que eles morressem de dor. O que mais sabe?

Ele me observou longamente antes de continuar falando:

“Na verdade não muito, algumas pessoas estavam falando sobre a marca estranha no corpo dos homens achados no bosque e fui averiguar, aquela marca tinha sido feito por magia negra. E você não tem menor pendor á magia negra. Fiz algumas perguntas e soube que você fora inocentada, mas os comentários sobre as marcas fizeram os conselheiros investigar outras coisas. Você segundo o Conselho da sua Ordem apresenta desde a infância traços de descontrole mágico”

Ele fez silencio, eu podia ter dito o que ele queria ouvir, que meu descontrole mágico era culpa dele, mas não fiz isso. Ele já estava errado em supor que eu não tinha talento para magia negra. Permaneci quieta esperando o resto das explicações. Havia ficado boa em fingir desinteresse quando queria saber muito alguma coisa. Ele continuou:

“Você seria presa por algo que não havia feito. Fiquei curioso para saber quem havia feito àquelas marcas nos corpos e pedi um favor á uma amiga. Wendy ficou chateada por ter que te induzir, ela te achava divertida”

– Quem é Wendy? – posso fingir desinteresse, mas ainda sou curiosa

“A enfermeira do centro de cura”

– Acho que a machuquei – disse me recordando a enfermeira de irritante sorriso simpático, W. Clear, eu gostava da voz dela.

“Eu sei, ela me envenenou para compensar a perna quebrada. Mas ela está bem, adorou a ideia de tirar férias forçada na Grécia”.

– Ela me induziu á que? – perguntei controlando a vontade de questionar sobre o envenenamento que ele mencionou

“Ter pesadelos. Ela trocou seu medicamento por pequenas doses de alucinógenos e conversava com você sobre coisas que ela temia ou assustava ou não gostava, te fazia ter pesadelos até que um dia você entrou em pânico e... quase a matou”

Clear sempre me perguntava por que eu tinha pesadelos e na maioria das vezes me contava sobre seus próprios pesadelos, aquela bruxa duas caras... devia ter quebrado o pescoço o lugar da perna. Brincadeira gostava dela, a perna é castigo suficiente.

“Informei a sua irmã o que fazer para ganhar tempo e você foi mandada para o sanatório, isso devia ser o bastante enquanto eu tentava descobrir quem estava manipulado as coisas contra você. Infelizmente quem esta fazendo isso é esperto o bastante para se esconder atrás de outras pessoas, acabei descobrindo outras coisas e me distrai, quando percebi meu erro já era tarde. Eu escolhi errado e agora você foi condenada a morte”.

– O que escolheu errado?

Ele baixou a cabeça, entre suas patas dianteiras surgiu um pedaço de papel fino escrito em tinta azul, peguei e li:

Pare de fazer perguntas ou a próxima visita dos Oods será à Morticia Belaya.

– Não entendi – falei

“Recebi isso no dia seguinte ao ataque á sua irmã baronesa, ela estava tentando proteger seu sobrinho emanando muita energia, imaginam que foi isso que atraiu a atenção dos Oods, agora o conselho esta ajudando na proteção deles e achei mais seguro para você que não me envolvesse mais”.

– Que perguntas andou fazendo por ai?

“Não importa. Quando soube da decisão do conselho em retirar sua magia achei que seria melhor”.

– Melhor para quem me quer morta, claro.

“Não era nisso que eu havia pensado. Seu sobrinho teria proteção adequada, e sem poderes você ficaria em um sanatório para humanos perto de sua família. Mas você fugiu e tudo ficou complicado”.

Mantive minha atenção na tinta azul do pedaço de papel amarelo e fino, a letra era reta e grande, tinta azul custa quase uma fortuna, quem teria poderia ter escrito aquilo.

– Sabe quem escreveu isso?

“Não”

– Que pergunta fez para ser ameaçado? Não, a pergunta certa é por que me ameaçaram? Você estava fazendo perguntas deviam ameaçar sua vida e não a minha.

“Está com fome?” – perguntou mudando de assunto – “Já passou da hora do almoço”

Olhei para o céu, não que fizesse diferença, nem havia percebido o tempo passar.

“Espere aqui, Marte, vai te trazer algo para comer”.

– Quem?

“O lobo” – disse voltando a forma de um lobo, percebi que ele tinha ido embora novamente.

– Marte? – perguntei ao lobo que farejou minha mão e se afastou indo para sei lá onde.

Permaneci pensando por um tempo nas coisas que ele havia me dito, considerando a possibilidade dele estar mentindo, me levantei e fui até o limite do bosque onde podia ver minha casa. Ainda estava tudo fechado. Será que o conselho era capaz de me achar se eu entrasse em casa? Se estavam vigiando e não havia ninguém ali, era por que tinham feito algum feitiço e eu podia ficar presa. Preferi voltar para perto do riacho. Me sentei na pedreira olhando para a água, meses antes um pouco mais acima no bosque a mesma criatura que pareceu querer me ajudar hoje havia tentando me matar – segundo ele, me fazer sofrer – por que idiotice eu estava disposta a confiar em alguém cuja aparência humana eu nem conhecia? Um ser maligno que usava animais para me fazer mal. Deitei sobre as pedras, não sentia fome. Queria ver meus irmãos ter certeza que estavam bem.

Haviam atacado a Verbena para que ele parasse de fazer perguntas. Ele havia se distraído com alguma coisa que desviou a atenção dele e seja lá o que descobriu irritou a pessoa por trás do ataque dos Oods á ponto de me ameaçar. Não que eu estivesse segura, mas ter magia tirada á força deve ser mais agradável que ser drenada por Oods. O que ele podia ter descoberto de tão interessante? O conselho estava protegendo minha família agora e isso parecia ser um incomodo para ele... de repente entendi. O conselheiro-mor era um impostor que por acaso havia se aproximado muito de Verbena, meu sobrinho mago estava praticamente dependendo dela e do conselho. Era isso que ele havia descoberto, o impostor. Se contasse a alguém o que sabia eu estaria morta. Mas...

– Escolheu errado – falei em voz alta

Essa foi a escolha errada que ele fez. Me proteger foi uma burrice sem igual, sou uma louca perigosa que matou três humanos e fugiu do conselho, procurar por ajuda de qualquer pessoa que eu conheça os colocara em perigo. Qualquer pessoa que tente me ajudar será acusada de cumplicidade e qualquer pessoa que tiver provas sobre a verdade será acusado de conspiração apenas por estar me ajudando. Fugir invalidou qualquer chance que eu tinha de ser livre.

– Eu me odeio.

Com essa pequena afirmação senti uma estranha diferença corporal, me senti pequena demais. Levantei incomodada com aquilo. Quase dois meses no mundo mágico com tantas informações na cabeça e me esqueci de uma coisa. No mundo humano eu estava amaldiçoada a viver como gato por doze horas do dia e pelo tempo em que eu estava ali pensando e falando sozinha, já eram duas da tarde. Miei. Eu era um gato, quantas pessoas sabiam disso?


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