Usuário Final escrita por Ishida Kun


Capítulo 29
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Imagens rodavam na cabeça de Adam de tal forma, que ele nem conseguia focalizar exatamente o que estava a sua frente. Abaixou-se, apoiando as mãos nos joelhos e em algum momento, percebeu que já estava sentado. Sentia-se como uma daquelas crianças, que se divertem tanto com o brinquedo novo, que hora ou outra a brincadeira termina em choro. Olhou para Hector ao seu lado, mas o rosto dele parecia um borrão, tinha quase certeza que a voz distante de Gabriel o chamava e ele sabia que Valéria também estava lá, perdida naquele emaranhado de coisas e formas.

Em meio ao turbilhão que sua cabeça havia se tornado, ele ainda via os rostos dos desconhecidos, agora tão conhecidos que ele sentia-se parte da família deles, como se fosse um daqueles parentes distantes, que sabe o nome de cada um, mas que raramente tem a chance de vê-los. Adam sabia que tentava falar alguma coisa, mas seus ouvidos lhe diziam que talvez não fossem palavras que estavam saindo de sua boca. Preferiu não dizer mais nada e no vai e vem de imagens desconexas que se formavam como fotografias queimadas, ele viu alguém conhecido. Sentiu mãos macias tocarem seu rosto, aquele calor doce e gostoso como as tardes ensolaradas que tanto gostava. Um aroma floral invadiu suas narinas e as mãos ergueram seu rosto.

— A... m! … d... a... — O que a voz dizia? Era mesmo seu nome que ela chamava? Aquele nome realmente era seu? Porque aqueles parentes sem rostos lhe diziam que não. Seu nome era...

***

— Adam! — Beatriz o chamou pela segunda vez, o arrancando de seus pensamentos em Alice, naquele mundo tão familiar sendo destruído e principalmente, no fato de que seria incapaz de salvá-la.

— Desculpe, estou meio disperso. — Adam respondeu, sem jeito. Achava que seria impossível olhar para Beatriz sem se lembrar do fato de que talvez ela tenha matado Alice.

Beatriz balançou a cabeça negativamente e voltou a explicar as informações que Gabriel estava lhe passando, sobre as operações daquela noite. Os Helldivers estavam sentados no parapeito da cobertura, com um vento gélido soprando ruidosamente em seus ouvidos, enquanto alguma coisa parecia ranger na imensidão da Cidade Silenciosa. Apesar de ser sua segunda noite ali, Adam já começava a se familiarizar com o distrito do Martinez, a cada olhar sua mente gravava pontos de referência e detalhes que traziam aquela sensação de segurança, semelhante à de quando se passa horas perdido e finalmente se consegue encontrar uma rua conhecida, uma casa especifica, qualquer coisa que traz aquela certeza que todos precisam de que ali é uma zona segura. Ele já reconhecia perfeitamente bem o prédio sem parede que ficava de frente para a escadaria de incêndio, uma construção enorme que parecia ter saído da idade média, um edifício quebrado — que Adam deduzia ser o prédio com a vitrine cheia de dormentes -, o enorme monólito de concreto cinza onde ficava a toca de coelho - tão alto que se sobressaia dentre os outros prédios - e claro, o próprio MSV Martinez, navegando de cabeça para baixo nas nuvens volumosas. De tudo o que havia ali, o Martinez era de longe o mais impressionante, fazendo com que ele evitasse de olhá-lo para não cair na tentação de ficar admirando sua grandeza.

Não que prestar atenção naquela bela moça com um sério problema em morder os lábios fosse mais tranquilizador, ou mesmo fizesse sua atenção se fixar em suas palavras. Entre uma frase e outra, ele se perdia no abrir e fechar da cor cereja, ficando tão distraído que seria incapaz de diferenciar uma porta de uma janela. Quando conseguia prestar atenção, sua mente o carregava para a conversa que teve com Valéria alguns minutos antes, onde ela “acidentalmente” havia soltado algo sobre o real trabalho dos Helldivers, que ao contrário do que Adam pensava, estava longe da história de sobreviver noite após noite, ajudar pessoas e se manter vivo.

Depois de vazar a informação — algo que visivelmente havia frustrado os demais membros da equipe — Valéria contou que eles eram chamados de Caçadores e como o próprio nome dizia, caçavam os Devoradores antes que pudessem fazer o mesmo com eles. E como se já não fosse ruim o bastante, os Helldivers eram uma das poucas equipes especializadas no extermínio de Devoradores de nível 3, o tipo mais mortal e perigoso. Não era difícil entender porque eles não aceitavam novatos.

Ao menos isso o colocava de volta na explicação de Beatriz, mesmo que tardiamente. Ninguém havia dito claramente, mas havia ficado óbvio que os Helldivers pretendiam esconder de Adam, o fato de que eram Caçadores, provavelmente até o início da missão, que supostamente seria mais uma de treinamento. É claro que ninguém esperava uma chamada de emergência de Gabriel, para uma missão que certamente o colocaria na linha de frente, numa estranha operação de resgate e — obviamente — extermínio.

— Há uma distorção de espaço que está transformando o lugar num labirinto, ainda não temos certeza se está sendo causada pelo Devorador — Beatriz disse, com os braços cruzados e Adam se perguntou por quanto tempo ela falara até que ele de fato conseguisse manter a atenção — mas temos certeza que é por causa do maldito que os Usuários no local não conseguem se desconectar da Rede. Ele aparentemente está cortando parte do acesso ao sistema Horus na região.

— Então imagino que, com certeza, ele não está sozinho — deduziu Hector, olhando para Adam como se devesse algum tipo de explicação a ele — Esse tipo de habilidade consome muito do Devorador, sabe? Geralmente eles ficam em um estágio letárgico quando fazem isso, portanto tendem a atrair Devoradores para protegê-los.

— Exatamente — Dessa vez fora Valéria quem concordou — A criatura sabe que uma região onde o Horus não funciona direito, vai atrair atenção. Daí, a Syscom manda um monte de gente para verificar e os desgraçados atacam com tudo, impedindo eles de fugirem até que sejam devorados. E então, um nível 3 pode se tornar 20.

— Filhos da … — E Adam deixou as palavras morrerem antes de saltarem de sua boca. Tentou se manter calmo, mas aquilo o assustava profundamente, tinha pego a conversa no pior momento. Sem o controle do USV provavelmente estaria tremendo feito uma máquina de lavar com defeito. O encontro com o Devorador de nível 2 já havia sido uma experiência extremamente desagradável, era quase desesperador pensar que haveriam dezenas de outros ainda mais mortais andando livremente por ai. Nessas horas, uma parte corajosa falava mais alto, dizendo que era para evitar isso que ele estava ali, mas havia outra parte, a parte racional, que o tentava manter com os pés no chão acima de tudo. Os Devoradores precisavam ser eliminados, mas quem seria ele para fazer isso? Adam não era um super-herói, era apenas um adolescente com uma vida complicada demais, um Usuário Final novato que mal sabia controlar o próprio sincronismo.

— A pior parte é que se não conseguirmos tirá-los de lá antes do reciclo, eles estão mortos.

— Que porra! — xingou Carla — Ei Bia, quando foi o último contato deles?

— Há quatro horas atrás.

— Então ninguém nem sabe se eles estão vivos? — Em seguida, Carla gargalhou em seu habitual tom de deboche — Vai ser uma descida até o inferno, como sempre! Os filhos da puta da Syscom nos amam!

— Carla... — chamou, Beatriz, num tom de voz mais sério — Ninguém nas proximidades aceitou essa missão e somos os únicos caçadores que chegariam lá a tempo.

— O que seja! — Deu de ombros — Vai ser bom pro novato ver um pouco de ação de verdade, talvez ele aprenda alguma coisa.

Adam apenas ignorou a provocação, pensando que apenderia mais lendo alguma fanfic estúpida que a Valéria gostava, do que com Carla, a pessoa que “deveria” ter ensinado alguma coisa a ele. Com um suspiro profundo, Adam voltou sua atenção para Beatriz.

— Vocês acham que eu realmente posso dar conta disso?

— Você vai ter que dar conta, gracinha. Se não der, eu tô ferrada. — respondeu Beatriz, soprando um beijo invisível e sorrindo amigavelmente.

— Eu disse que eu shippava... — sussurrou Valéria, alto o bastante para que todos ouvissem.

— Ok, meninos e meninas, hora de salvar essas crianças em perigo — E Beatriz se levantou num saltinho — Vamos mostrar para aquele Devorador de merda quem manda nessa cidade!

Todos se levantaram e comemoraram com um grito que mais se parecia um uivo e Adam se perguntou se o autor daquele blog cheio de teorias da conspiração não estava certo, ao pensar que tipo de pessoas eram enviadas para a Rede. Os Helldivers pareciam apenas um bando de jovens rebeldes e desordeiros que gostavam de um bom tiroteio, olhando para eles, jamais imaginária que eram quase como... soldados. Naquela cobertura, enquanto todos gritavam e comemoravam como guerreiros prestes a embarcar numa batalha, Adam ainda se sentia deslocado, com aquele mesmo vazio de antes o corroendo por dentro. Por mais que tivesse afeição por eles, era difícil se envolver daquela forma, principalmente não sabendo em quem confiar.

Parado, com o olhar ainda perdido nos próprios devaneios, Adam só percebeu que Beatriz havia se afastado quando ela o chamou para um dos cantos da cobertura.

— Ei, já te contei que sou especial? — ela disse, enquanto ele se aproximava. As suas costas, ele ainda ouvia as vozes dos Helldivers, indistinguíveis diante da beleza dos olhos dela.

— Não. Por que você é especial? — ele respondeu e perguntou, chegando tão perto quanto sua coragem lhe permitia.

— Tirando o fato de que eu sou a grande chefe e todos os Helldivers, isso inclui você, devem me idolatrar, eu tenho habilidades únicas aqui na Rede, coisas que fazem com que os Helldivers tenham a fama que têm.

— Você é uma ADM? — Não deveria ter perguntado e a cara de espanto de Beatriz apenas confirmou isso.

— Fez a lição de casa, é? Menino esperto... Na verdade não, os ADMs são tipo uma lenda por aqui. — ela olhou para a imensidão dos prédios como se procurasse neles uma resposta — Eu apenas tenho uma parte dos códigos de acesso do mainframe. Traduzindo — virou-se para ele, sorrindo como uma criança —, acessos privilegiados de indexação.

— Como é?

— Indexação... cara você não é muito bom com computadores, né? Eu sou tipo um site de buscas! Você me dá uma palavra-chave, eu procuro, encontro e levo a gente até ela. No caso, eu acho Usuários. O Gabriel me passa os dados de login e eu encontro, o que acha?

— Uau! Isso é realmente...

— Incrível? É eu sei, mas vamos lá, corta essa e faz logo a pergunta.

Adam a olhou como se tivesse sido pego desprevenido, e talvez realmente tivesse. Estava tão na cara que ele tinha tantas coisas para perguntar a ela? E mesmo que ela respondesse, no quanto ele poderia acreditar?

— Que... pergunta?

— A de “como você faz para fazer isso?” O que você pensou que fosse? — ela o olhou esperando alguma coisa, mas como viu que não haveria resposta da parte dele, emendou — Faça a pergunta, Adam!

— Claro! — respondeu sem graça — Como... você faz isso?

— Bom — Beatriz começou, se aproximando lentamente, as mãos deslizaram suavemente pelos ombros de Adam, fazendo com que seu rosto esquentasse. Com certeza deveria estar tão corado quanto molho de tomate —, eu faço... desse... jeito!

E no segundo seguinte foi como se voltasse para o telhado no distrito industrial, mas dessa vez era Beatriz que o estava empurrando prédio abaixo. O momento se deslocou lentamente, e quer fosse os reflexos aumentados do USV ou a adrenalina, fez com que ele pudesse ver perfeitamente que Beatriz sorria. Ele deveria sentir medo, ou se desesperar, mas não. Ele apenas a olhou, enquanto a visão era substituída pelo céu nebuloso e em seguida, o chão distante.

Em queda livre, Adam sentiu os braços de Beatriz em volta de seu pescoço e o rosto dela colado ao seu.

— Existe um motivo para eu chamar esse grupo de Helldivers, confie em mim. — sussurrou.

O chão parecia cada vez mais próximo, daquela altura com certeza morreria, mas Adam estranhamente parecia confiar nela, como se soubesse exatamente o que aconteceria a seguir. Os prédios pareciam correr, se esticando rumo ao céu enquanto eles caiam cada vez mais rápido. Arriscou um olhar para trás e viu Valéria, Hector e Carla, todos com o mesmo sorriso de excitação que Beatriz, o mesmo sorriso que ele mesmo imprimiu nos próprios lábios.

“Que se dane!” — pensou e não percebeu que havia gritado. As linhas e contornos das construções se afinaram, a distância entre o chão parecia quase infinita, um chiado persistente preencheu seus ouvidos e ele girou no ar, olhando diretamente para Beatriz. Seus olhos eram duas esferas negras, brilhantes como vidro e exibiam uma beleza assustadora. Ao longe ele percebeu as rachaduras, como se aquele mundo que se esticava feito espaguete começasse a quebrar, pedaço por pedaço, um espelho partido exibindo ao fundo a escuridão do vazio. Quando pensou que fosse atingir o chão, o mundo de vidro se quebrou em milhares de fragmentos brilhantes e o escuro dominou tudo ao redor. Havia uma corrente de ar fortíssima vindo de baixo, como se estivessem sob uma turbina. Aos poucos, linhas brilhantes surgiram no vazio, como fios de tear, roxas, amarelas, azuis, de todas as cores que seus olhos podiam captar. As linhas se moviam de maneira desordenada, cruzando umas às outras, apagando e surgindo, mais brilhantes, menores ou maiores, era quase impossível saber se ainda estava caindo ou não.

Cada vez que um dos fios passava perto, Adam tinha a impressão de ouvir vozes, ver imagens que passavam rápidas demais para que ele as identificasse, os fios eram links, milhares, milhões deles.
Uma janela de comunicação se abriu na interface visual e a foto de um personagem de anime indicou que Gabriel estava lá.

— Como está a viagem novato? — ele perguntou animado.

— Melhor que a montanha-russa! — Adam gritou em resposta, enquanto outras janelas se abriam com os outros membros do grupo.

— Eu nunca me canso disso! — gritou Hector — E olha que fazemos quase todos os dias!

— Sinto em interromper a diversão de vocês, mas temos um Usuário para encontrar. Travei um Devorador hospedado num tal de Herman Vause. Que raios de nome é esse? Bia, foi o mais perto que eu consegui, estou enviando os dados do login para você.

— Fácil — respondeu Beatriz, segurando Adam pela mão e fazendo com que ficasse ao seu lado — Aconteça o que acontecer, não solte a minha mão, entendeu?

Adam confirmou com a cabeça, enquanto Beatriz parecia olhar ao redor como se procurasse algo, os olhos dela, agora piscavam em várias cores, como uma TV sintonizando um canal, até que pararam num tom de azul claro. O escuro ao redor piscou como se um relâmpago tivesse se acendido em algum lugar e os links desapareceram, com a exceção de um, do mesmo tom de azul dos olhos de Beatriz. Ela o tocou de leve, e mais uma vez o vazio se iluminou rapidamente. Foi então, que do fundo - se é que havia algum -, vários retângulos subiram na direção deles, como telas de cinema translúcidas, mostrando várias imagens indistinguíveis.

— Adam — chamou Valéria —, esse é o link central, através dele poderemos chegar bem perto de onde o Devorador está! O que você vê são as memórias dele. Faça o que fizer, não toque nelas. — alertou-o.
As imagens começaram a passar cada vez mais rápidas, riscando o ar como se fossem carros numa autoestrada. Valéria se desviou de uma delas, seguida de Carla, enquanto Hector se aproximava das duas lentamente. Beatriz puxou Adam para junto dela, dando uma piscadela com seus olhos azuis claros em seguida empurrou-o para longe, a tempo dos dois desviarem de uma paisagem borrada. Por pouco. Os dois trocaram sorrisos e antes que pudessem juntar as mãos novamente, Adam foi atingido em cheio por uma tela de memória.

A tela se estilhaçou ao atingi-lo, foi como ser atirado através de uma janela e num instante ele não estava mais caindo. O lugar cheirava a madeira velha, um facho de luz entrava pela janela empoeirada tornando tudo alaranjado como o brilho do sol da tarde, as paredes eram brancas e apesar da aparência antiga, a casa parecia impecável, com prateleiras bem arrumadas onde pequenos vasinhos repousavam ao lado de fotos, havia um sofá preto e uma poltrona cor de rosa, completamente em contraste com o resto da mobília, que visivelmente parecia de segunda mão. Adam caminhou lentamente, como se conhecesse cada centímetro daquela casa, cada local que suas mãos tocavam fazia com que uma lembrança saltasse para sua cabeça, uma criança, uma mulher, amigos e familiares. A criança era tão bonita com aquele lindo sorriso, se sentia confortável com ela, carregando-a para toda a parte. Mas de fato era ele que a estava carregando? Ou alguém que ele gostava muito que o estava fazendo?

Abriu de leve a porta do quarto, tinha que lubrificar as dobradiças, sua esposa já o havia lembrado diversas vezes de fazer aquilo, mas ele sempre esquecia. Sua cabeça estava cheia, a preocupação com o tratamento da mulher tomava todo o seu tempo. Mas ao menos ela ficaria bem, com certeza ficaria. Parou admirando a cama bem arrumada, o cheiro adocicado do amaciante nas cobertas recém lavadas, a pureza das flores num vaso. Eram artificiais, mas sua esposa nunca se importou, ela não sabia lidar com a morte muito bem. Qual era o nome dela? Porque ele não se lembrava? Beatriz. Alice. Ilene. Quem eram essas? Ele gostava delas, mas amava sua esposa. Mas ela realmente era sua esposa? Seu nome. Não lembrava seu nome. Ouviu a criança chamá-lo, virou-se para olhá-la. Sorriu. Não importava quem ele era, estava onde deveria estar, estava feliz.

— Adam! Adam! — Beatriz o olhava com seus olhos bonitos e grandes, todas aquelas variações de cores que ele gostava de olhar estavam lá, esperando que ele as identificasse uma por uma. Eram as mãos dela que mais uma vez seguravam seu rosto e ele começou a gostar da sensação, era agradável, doce

— Você está bem? Valéria! Você já terminou isso? — ela gritou, olhando para Valéria, que estava digitando rapidamente em sua tela flutuante.

— Já terminei. — ela respondeu — Consegui limpar a maioria das memórias, ele vai esquecer as que ficaram com o tempo.

— O que... aconteceu? — perguntou Adam, ainda sentindo a cabeça estranha, vendo imagens e cores. Uma garotinha surgiu em seu campo de visão, mas ele não sabia se ela realmente estava ali.

— Você acertou um arquivo de memória — respondeu Beatriz — O que quer que você tenha visto, sentido ou ouvido, não é real. Não são suas lembranças, elas pertencem ao tal de Herman Vause.

— Nome estranho — Adam disse, e sorriu de leve. A experiência com as memórias alheias havia sido realmente desagradável, o tipo de coisa que ele certamente jamais repetiria. Mesmo assim, o nome do homem ainda lhe era familiar, assim como sua casa, sua filha e esposa. Algo dentro dele se remexeu de maneira desagradável.

— Esse Herman ­— perguntou, enquanto Hector o ajudava a se levantar — Onde ele está? Ele está vivo?

— Provavelmente não — Hector respondeu, se afastando e olhando ao redor — O Gabriel nos passou os dados de alguém devorado. Mesmo que encontremos o cara, as chances de salvá-lo são nulas.

— Droga. Achei que já estaríamos no lugar — resmungou Adam, apertando os olhos para focalizar onde estava. A rua era larga, ladeada de carros envelhecidos, cobertos por tanta poeira que seria necessário mais do que um simples lava-rápido para recuperá-los, haviam dezenas de postes de iluminação suspensos por fios de alta tensão, como pêndulos bizarros que insistiam em desafiar a gravidade. As lâmpadas piscavam num ritmo frenético e desordenado, os prédios e construções estavam por toda parte, escuros como a noite ao redor, tão altos que pareciam alcançar os céus.

— A precisão nem sempre funciona. — respondeu Beatriz, de forma séria — Como você está se sentindo?

— Minha cabeça — resmungou Adam — tem coisas demais aqui dentro, mais do que as habituais — Sua interface visual não parecia normal, estranhos sinais piscavam em vermelho pelos cantos dos olhos, uma sensação estranha começava a percorrer seu corpo.

— Bia ­— chamou Gabriel, ele falava rápido, como se estivesse com pressa —, a Syscom lançou um alerta para a região em que vocês estão. Onde está a Carla?

— Tem alguma coisa errada... — Adam sussurrou quase inaudível. Os sinais e códigos se tornaram maiores, fazendo com que parte de sua interface se apagasse.

— Traçando um perímetro até o local. Gabriel, alerta do que?

— Beatriz... — Adam tentou chama-la, mas sua voz parecia sumir. Uma dor aguda começou a latejar pelos olhos, espalhando-se pela testa. Valéria estava absorta em sua tela-computador, enquanto Hector estava checando o interior de um dos carros, longe demais para ouvi-lo.

— Distorção gravitacional. Das grandes.

— Mas que porra! — xingou, Beatriz — Helldivers, modo de combate! Agora! — ordenou.

Os capacetes deslizaram peça por peça, recobrindo a cabeça de Beatriz, assim como a de Valéria e Hector, tapando completamente seus rostos. As formas acinzentadas davam ao acessório um ar futurista, digno de um filme de ficção científica, exibindo a mesma cor dos Links em alguns detalhes nas laterais. A parte frontal brilhou, exibindo seus rostos como se houvesse uma viseira de algum material translúcido, mas perceptível, como se a imagem fosse uma projeção holográfica.

Estranhamente o capacete de Adam não se formou e uma mensagem de erro surgiu. A interface visual ficou totalmente vermelha e uma série de avisos e notificações começaram a aparecer de todos os lados.

— Beatriz... tem alguma coisa de errado com a minha... — E antes que pudesse terminar a frase, sentiu uma dor lancinante na cabeça, levando-o a apertá-la com as mãos enquanto deixava um grito vazar pela boca. Cambaleou dois passos e prontamente foi amparado por Valéria. Em meio a dor e todos aqueles códigos e dados que surgiam na interface visual, Adam avistou Carla surgir apressada por uma ruela, empunhando seu rifle G-11 em posição de ataque.

— Precisamos cair fora daqui! Agora! — Ela gritou, enquanto avançava na direção deles.

Então foi como se o tempo mais uma vez estivesse devagar e Adam via tudo passar como num filme em câmera lenta, desde Carla, quase estagnada no ar enquanto corria, até as linhas avermelhadas, tecendo as armas de Beatriz, parafusos e metal.

Algo estava errado ali. Terrivelmente errado.

Atrás de Carla, uma figura alta e esguia, se movia graciosamente, como se o tempo nada lhe significasse. Indiferente ao espaço, ela andava como se oscilasse entre duas realidades distintas, apagando e reaparecendo mais rápido que um piscar de olhos. Usava uma capa completamente branca que recobria todo o seu corpo, deixando um rastro de fragmentos, como se estivesse se partindo. A criatura virou a cabeça lentamente, revelando seu inexpressivo rosto, uma máscara de porcelana assustadora. A coisa fixou seus olhos negros e vazios nos de Adam e ele sentiu como se ela o invadisse, como se pudesse ler cada centímetro dele como um livro aberto. A sensação daquele olhar era terrível, como se alguém o rasgasse de dentro para fora, exprimindo todos os seus segredos. A visão embaçou e ele teve a clara impressão de que a criatura se aproximava, mais rápido do que qualquer coisa que poderia imaginar. Estava quase desmaiando, quando o grito de Hector o trouxe de volta abruptamente.

— PACIFICADORA!

Mas já era tarde demais. A unidade Pacificadora já estava a meio centímetro de Adam.


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