Usuário Final escrita por Ishida Kun


Capítulo 28
A calma antes da tempestade 6:3




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Quando abriu os olhos, a luz fraca do entardecer o cumprimentou, a brisa fresca beijando suavemente seu rosto. Estava sentado numa relva amarelada pelo outono, com as costas apoiadas numa enorme árvore de folhas verdes e de aparência saudável. O clima agradável lembrava-o das tardes mornas em que passava com a irmã, sentado na calçada enquanto observava as nuvens correrem velozes naquele céu tão doce, tão puro. A pureza da inocência de uma criança. Uma parte dele sentia saudades daquela época, de quando não haviam preocupações nem deveres ou tarefas, de quando os dois Ainda tinham sonhos para o futuro. Agora, os sonhos dele eram repletos de pavor e morte, um mundo de sombras habitado por criaturas demoníacas e manequins que respiravam. Só havia perdido uma noite de sono, mas a possibilidade daquele futuro já o assustava, já o fazia sentir saudades de sonhar.

O USV estava novo em folha, o preto do uniforme causava um contraste tremendo naquela paisagem e o indicador de Link estava apagado, assim como toda a interface Visual. Ele tocou a relva dourada com a ponta dos dedos, não sabendo se o que sentia era o que deveria sentir, se aquilo Era de fato real. Levantou-se e caminhou, a relva aumentava a medida que ele se afastava da grande árvore, transformando-se em pequenos pendões felpudos que esvoaçavam na brisa, soltando esporos que vagavam sem Rumo pelo ar, elevando-se a um céu infinito e inalcançável. Acompanhou com o olhar aquelas pequenas bolotas de algodão, subindo e subindo, até que seus olhos encontraram os prédios, gigantes e imponentes, esticados como se tentassem alcançar aquele azul salpicado de laranja. A Distância fazia com que seus contornos se apagassem, como se uma névoa se depositasse sobre eles. Haviam plantas por toda a parte, flores amarelas como o sol, trepadeiras enroscando-se nas enormes estruturas afundadas na terra, árvores que disputavam com vigas de Aço e concreto o seu lugar ao sol, numa eterna luta estática entre orgânico e o artificial. Era uma beleza deslumbrante, como o mais perfeito Dos sonhos e Adam se sentiu Em casa, de uma maneira que nunca havia sentido antes.

Adiante de onde estava, ela o olhava com um sorriso, o vestido que usava Era de um branco tão intenso que chegava a ofuscar sua visão, seu rosto era o mesmo enigma de sempre, como um quebra-cabeças defeituoso onde cada peça encaixada, fazia com que outra saísse do lugar. Ele queria lembrar-se dela, queria guardar a beleza daquele rosto em um local seguro de sua mente cansada, onde as tristezas e decepções daquele mundo cruel jamais pudessem atingi-la, e desejava isso mais do que tudo.

Alice estendeu a mão para ele, como um convite. De repente, antes que Adam pudesse ter qualquer reação, a brisa se tornou um vento frio e ele Sentiu uma urgência em alcançá-la, mas a distância entre os dois era algo que desafiava o real e o físico. Apressou-se a medida que o vento ficava mais forte, empurrando-o para Trás, mas nada o impediria de chegar até ela. Um estrondo ressoou no Ar, fazendo com que a terra sob seus pés tremesse, tingindo Os céus de nuvens Negras que vazavam de um vórtice arroxeado, onde raios serpenteavam por entre suas formas onduladas. Ele forçou os pés, um atrás Do outro à medida que o vento intensificava, rugindo por entre as estruturas que se despedaçavam na distância. Ela estava cada Vez mais perto, mas a cada passo que Adam dava em sua direção, era como se uma força invisível o empurrasse para trás.

Um segundo estrondo explodiu o vórtice no Céu e ele sentiu como se uma cúpula de vidro tivesse sido quebrada sobre o mundo, algo que fez o dia cinzento virar noite. No limiar de tudo, Adam viu um enorme navio irromper por Entre as nuvens, se partindo enquanto caía em direção aos prédios e árvores. Os destroços atingiam as construções, que por sua vez, arrebentavam outras numa reação em cadeia, fazendo com que chovessem enormes fragmentos que riscavam o ar feito Meteoros, explodindo o solo e devastando com fogo, tudo o que encontrava pela frente. Atrás de Adam, a árvore antes tão bela, agora ardia em chamas, um alaranjado bruxuleante que resistia duramente ao vento cortante.

Aquele mundo já parecia estar condenado a um destino cruel, mas ela ainda poderia ser salva. Precisava salvar Alice, mas era tão, tão fraco. Tinha que ser mais forte, faria qualquer coisa para isso, estaria disposto a tudo por ela. O Navio acertou um prédio, atravessando-o, esmagando O que estava pela frente. O mundo se desfazia em ruínas, mas isso não importava para Adam, ele Se preocupava apenas com ela, Alice era tudo o que importava, tudo pelo qual ele lutaria para salvar. Mas naquele instante, se lembrou que ela estava morta e que nada do que fizesse ali poderia salvá-la, nada impediria que os pedaços daquele navio a atingissem.

Ela estava morta e não havia nada que Ele pudesse fazer para mudar isso.

Mas não deveria ser assim.

Sempre deveria existir outra escolha.

Sempre.

— Adam! — ela o chamou por entre o rugido do vento, e Sua voz era tão clara quanto a luz — Você não pode mudar o passado...

— Não! Eu ainda posso salvar você! — Ele gritou em resposta.

— Mas você ainda pode mudar o futuro.

Os Prédios que ainda não haviam caído, ficaram tão negros quanto a noite e tudo ao redor silenciou, como se o mundo tivesse congelado no tempo. E naquele instante que não Era instante, ele a olhava nos olhos, se perdendo dentro de todas as nuances de cores que podia captar, lá dentro ela lhe contava uma história, uma da qual ele não Sabia ler. Adam não soube exatamente quando foi que as mãos delas tocaram o seu rosto, Por um momento a distância Entre os dois era inexistente.

— Eu preciso que você faça algo por mim. Acorde, Adam.

Adam acordou de súbito, olhando diretamente para os assustados olhos de Beatriz, tão próxima a ele que era possível sentir sua Respiração, as mãos dela seguravam seu rosto firmemente. Ela parecia aflita, mordendo os lábios com tanta força que ele via o momento em que sangrariam.

Beatriz largou o corpo para trás e Adam percebeu que estava encostado na parede da entrada do 673 e que Beatriz estava sobre ele, tornando o momento realmente desconfortável.

— Mas o que diabos foi isso? — ela perguntou, passando a mão pelos cabelos — Você Apagou! Por Deus, achei que você tinha morrido!

— Eu estou bem — respondeu sem ter certeza se dizia a verdade — Só um pouco confuso.

— Me diga que isso nunca aconteceu antes.

— Isso nunca aconteceu antes.

— Adam — Beatriz avançou sobre ele novamente, recolocando as Mãos em seu rosto. Seus olhos eram de uma beleza exuberante, mas sustentavam um olhar desafiador e misterioso ao mesmo tempo, de forma que ele não conseguia sustentar o olhar — Você não está me escondendo nada, está? Há algo terrivelmente errado por aqui, algo do qual eu não faço ideia. Adam — ela chamou-o, se aproximando ainda mais, continuou a falar quase sussurrando — Se você ver algo estranho, quero que você me conte entendeu? Só pra mim e mais ninguém.

— O que está acontecendo? — Adam perguntou, sussurrando também.

Apesar dos olhos serem enigmáticos, seu rosto a denunciava, mesmo que discretamente. Uma preocupação incomum parecia vazar dela, como um pequeno momento de verdade passando pela máscara que ela usava O tempo todo, era como ver a luz escapando por entre as frestas de uma persiana. A verdade era assim, Adam pensava, não importava o quanto você tentasse barrá-la, ela sempre encontraria um meio de se revelar.

— Eu não Sei em quem posso confiar, mas de alguma forma eu confio em você e não é só por causa do Link. Usuários Finais não desmaiam na Rede, eles também não ficam apagados como você ficou. Se isso acontecer, há uma grande chance que eles se desconectem, entende? Algo aconteceu com você nesse meio tempo e eu preciso saber o quê.

— Você desconfia dos seus amigos? — Adam perguntou. A maciez das mãos dela parecia penetrar profundamente em sua pele, tornando aquele toque surreal. A situação andava em desencontro com a conversa, tornando o momento um tanto quanto embaraçoso.

— Adam, eu confio a minha vida à eles. Mas eu não confio a sua. Você tem certeza que nunca desmaiou antes? — Por que ela desconfiaria dos próprios companheiros de equipe? Eles pareciam uma família... se bem, que dada as circunstâncias do evento com Carla, imaginou que provavelmente Hector e Valéria também desconfiassem daquele vermelho sangue que carregava.

— Beatriz — ele começou, sabendo a mentira que contaria a seguir, mas não imaginando o dano que isso poderia causar —, isso nunca aconteceu antes. Assim que eu adormeci eu acordei com você segurando meu rosto. Estou bem, ok?

Ela sorriu aliviada, mordendo o lábio inferior, e tirou as mãos do rosto dele, deslizando-as por seus ombros, delicadamente.

— Ok. Quero que você fique seguro de agora em diante. Eu não pude proteger minha parceira, mas eu pretendo ao menos...

— Bem que eu queria ter uma câmera fotográfica agora! — interrompeu Hector, acompanhado de Valéria e Carla, que haviam acabado de chegar na Rede — Eu não estou atrapalhando nada, estou?

— Eu shippo*! — disse Valéria, levantando a mão — Shippo muito! Biadam? Adatriz?

Beatriz se levantou rapidamente, limpando uma poeira imaginária com suaves safanões e em seguida, estendeu a mão para que Adam se levantasse também.

— Você se dedura muito fácil, fofinha... de longe você nem parece uma otaku — Beatriz falou, sorrindo.

Antes que pudesse ter qualquer tipo de reação, Adam foi envolvido por um abraço apertado de Valéria, lhe dizendo o quanto ela ficara preocupada e sobre como ele havia sido imprudente em se arriscar daquele jeito. Às costas dela, Hector sussurrava algo para que ele ignorasse aquela conversa de imprudência e que ele havia ido muito bem. Tão logo Valéria o soltou, Hector lhe deu um aperto de mão bem forte, seguido de um breve abraço, lhe dizendo que era bom tê-lo na equipe novamente. Hector também lhe dera um tapa no ombro e percebendo que ele não caiu, fez um aceno positivo com a cabeça. Carla manteve uma certa distância dele, quando a olhou, ela apenas acenou com a cabeça e esboçou algo que poderia ser entendido como um sorriso, mas ele não tinha certeza. Retribuiu o aceno de cabeça, demonstrando que indiretamente não havia ressentimentos. Ele com certeza não precisaria falar que se tivesse a oportunidade, atiraria nela sem pensar duas vezes.

Beatriz apenas os olhava, com aquela mesma expressão impossível de identificar. Como ela poderia desconfiar de seus próprios amigos? Todos, com exceção de Carla, não pareciam ter nada contra ele, o faziam se sentir em casa. Havia algo de errado ali e ele se lembrou do que escrevera sobre Beatriz em seu quadro de investigação “Não confie nela”. Porém, enquanto ela estava próxima dele, havia pego um pouco de verdade em suas palavras, algo que o jogava de encontro com aquela anotação que fizera. Ela escondia algo dele, mas suas intenções não pareciam tão ruins. Quanto mais ele pensava, mais complexa a situação parecia se tornar, então pelo menos por enquanto, daria a ela o benefício da dúvida.


*De “realtionship”, forma carinhosa que leitores e fãs costumam usar quando criam casais com seus personagens favoritos.


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