Usuário Final escrita por Ishida Kun


Capítulo 18
Capítulo opcional: especial de sexta-feira 13 - Despertar num pesadelo 2-2


Notas iniciais do capítulo

Era para ter saído no dia seguinte... ERA. Mas, como criatividade e inspiração não escolhem data ou horário, deu nisso! Desculpem a demora para postar! O capítulo até estava pronto, mas não havia gostado dos rumos que ele havia tomado, então resolvi apostar em uma ideia diferente que já tinha na cabeça há algum tempo, por isso precisei reescrevê-lo umas duas vezes! Bom, sem mais enrolação, espero que gostem do desfecho da história da Lyna! Boa leitura!



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O cano frio da pistola de Mikail estava encostado na testa da garota e mesmo não mostrando o rosto, Cane sabia que ele estava tão assustado quanto a menina, da qual por alguma entranha razão, ele jurava conhecer.

— Você ficou maluco? — ele intercedeu, se pondo na frente da jovem e empurrando a arma — Isso pode matá-la de verdade!

— Se ela for um dormente, o máximo que vai acontecer é ela acordar com uma puta dor de cabeça. Saia da frente Cane — ordenou o homem com a arma.

— O que está acontecendo? — perguntou a menina, a voz fraca quase sumindo — por que vocês querem me matar?

— Cane, saia da frente!

— Por favor... o que está acontecendo... — A voz dela começava a ficar trêmula novamente.

— Mikail, o Cane tem razão — interveio a mulher e nesse instante, as viseiras de seus capacetes ficaram translúcidas, deixando seus rostos à mostra — podemos matá-la acidentalmente e isso não vai ser nada bom.

— Mas que porra, Agda! — reclamou o homem novamente. A arma em sua mão se desfez num piscar de olhos e ele caminhou rumo a janela, olhando para baixo a fim de garantir que de fato a criatura havia ido embora — Então arranjem um jeito de...

E antes que pudesse terminar a frase, Mikail foi atingido por um tentáculo negro vindo do lado de fora, a coisa atravessou seu corpo como se ele fosse uma folha de papel. O homem cuspiu sangue tingindo a viseira de vermelho e antes que seus amigos pudessem agarrá-lo, foi arrastado janela à fora e jogado na escuridão do vazio, rumo a uma morte certeira.

Cane agarrou a jovem assustada pelo braço e a puxou enquanto Agda disparava na criatura que tinha acabado de entrar pela janela quebrada, o mesmo ser escuro e sorridente, com enormes garras no lugar de dedos, que agora serpenteava velozmente pelo teto, desviando de cada bala disparada por Agda. A criatura saltou para o chão, retraindo e esticando uma dezena de tentáculos das costas, assim como fazia com seu corpo, num efeito que lembrava vidro picado. Indiferente aos disparos que esfacelavam seu corpo cristalizado, o monstro avançou sobre Agda e com um dos tentáculos, a agarrou pelo pé, arrastando seu corpo pelo chão para depois o lançar contra uma das paredes. O impacto foi forte o bastante para deixá-la inconsciente.

Cane apontava sua arma, um rifle de assalto FAMAS, para o ser, mantendo a garota indefesa protegida as suas costas. Um sentimento confuso lhe dizia para proteger aquela garota com sua vida, se assim fosse preciso. Ele disparou assim que a coisa avançou em sua direção, com as garras prontas para cortá-lo. A criatura retrocedeu assim que as equipes A e B das quais Agda mencionou adentraram no local. Os disparos a estilhaçavam como se ela fosse um pedaço de vidro sendo lapidado, fragmentos quebravam com o som característico do estilhaço.

— Fuja daqui garota! Esconda-se! — gritou Cane em meio ao som explosivo dos tiros, mas ela estava imóvel, agarrada firmemente as suas costas, as pernas recusavam-se a se mover.

Quando as equipes estavam próximas o bastante, e a criatura não passava de um amontoado de vidro picado, a coisa toda começou a se regenerar, pedaço por pedaço, fios e tecidos, e por mais que as balas o quebrassem ele continuava se remontando e cada vez mais rápido. Um giro com as garras recém formadas e uma perna foi fatiada como manteiga, um braço foi arrancado por um dos tentáculos e mais alguém havia sido dilacerado numa nuvem avermelhada. Ele era tão rápido, que mesmo cercado por aquelas pessoas que descarregavam toda a munição que tinham, a criatura continuava atacando e desviando das balas que riscavam o ar. Um homem fora atirado pela janela, um segundo, empalado por outro tentáculo, outro teve a cabeça esmagada no chão e o último, que tentara correr, teve o corpo arrastado pelas pernas e rasgado ao meio, derramando seus órgãos internos no chão como se ele fosse uma embalagem que foi aberta da forma errada.

A criatura banhada em sangue, em meio à vísceras e corpos mutilados, parecia olhar diretamente para a garota, mesmo que não tivesse olhos. Ela sentiu o estômago revirar o que quer que tivesse comido, a fazendo cair de joelhos e vomitar. À sua frente, Cane estava imóvel, ainda apontando a arma para a criatura sorridente que se aproximava, sua mão estava trêmula e ele sabia que sozinho não teria a menor chance.

Do outro lado da sala, Agda recuperava a consciência lentamente, seu corpo estava quebrado e ela sabia que não sairia dali com vida. A granada em sua mão foi rápida, mais rápida do que os olhos treinados de Cane ou mesmo os instintos aguçados da criatura. Uma onda de choque lançou Cane e a jovem ao chão, quando a granada explodiu engolindo parte do corredor em chamas, desfazendo metade da parede em escombros de concreto e vigas de aço. Em meio as chamas, a garota pode ouvir a criatura grunhir e em pouco tempo, Cane a havia tirado dali.

— Central, minha equipe já era... estão todos mortos! — exclamou Cane, falando diretamente com a central de operações, aqueles que o auxiliavam nas missões, estava sem o capacete e uma linha de sangue descia pelo canto esquerdo de sua testa, colando parte dos cabelos escuros em seu rosto — Tragam uma maldita equipe de caçadores então! Onde estão os Helldivers? — continuou após uma longa pausa, baixando o tom de voz em seguida — Então mande a droga da equipe do Wayne! Mande alguém! Merda! Estou com um dormente que está acordado!

Correram apressadamente por um longo corredor sem portas, Cane ficava o tempo todo olhando para trás, a fim de garantir que a criatura não os estava seguindo. Ao fim do corredor, subiram uma escadaria em espiral, em seguida, percorreram outro corredor idêntico e por fim, adentraram em uma sala repleta de cadeiras empilhadas. Cane fechou a porta cuidadosamente e se largou ao lado de uma das pilhas de cadeiras enquanto a menina ficou parada o olhando. Os traços familiares de seu rosto pareciam tomar formas ainda mais conhecidas, a lembrança estava lá, porém ele não conseguia acessá-la.

— Acho que agora você já pode me dizer o que está acontecendo? — perguntou. O choque inicial havia passado, talvez a explosão da granada a tivesse despertado.

— Eu sou Cane — E estendeu a mão na direção dela e por um momento apenas imaginou que la já soubesse quem ele era — Não é um bom momento para apresentações, eu sei.

— Me chamo Lyna — disse, apertando a mão de Cane e o nome apesar de familiar, não condizia ao rosto que ele via — O que era aquela coisa lá atrás?

— Era um Devorador, eles habitam esse lugar e como o próprio nome diz, devoram pessoas — respondeu, enquanto retirava dolorosamente um caco de vidro do braço direito.

— Meu Deus! — exclamou Lyna, tapando a boca com a mão — E que lugar é esse? Como vim parar aqui?

— Você está na Rede, mas não a da internet — começou Cane — pense como uma rede de sonhos, que interliga a mente das pessoas adormecidas. Você vem para cá todas as noites, só não se lembra porque estava dormindo assim como os outros.

— Então nada disso é real? Como eu faço para voltar? — perguntou Lyna, se encostando ao lado de Cane.

— Pelo contrário, isso é bem real. O fato é que você não deveria estar aqui, precisamos encontrar um jeito de acordar você no mundo real, só assim você poderá sair.

— O que são vocês, afinal de contas?

De repente, Agda entrou cambaleante pela porta e Cane instintivamente apontou a arma para ela.

— Merda Cane! Que porra! — ela resmungou e se apoiou na parede ao lado da porta, deixando seu corpo escorregar de leve. O capacete havia se perdido em algum ponto, deixando à mostra seus longos cabelos loiros, ela possuía diversos cortes pelo rosto e corpo, sendo o pior deles na perna direita, que parecia um pedaço de farrapo avermelhado — Eu nunca tinha visto um daqueles!

— Achei que você estava morta! — confessou Cane, aliviado — Eu sabia que tinha algo de errado quando vi ele usando a pele do dormente que ele devorou, como se fosse uma roupa...

— Ele não é um nível dois, matou todos aqueles Usuários tão facilmente... — afirmou Agda — Cane, eu estou desconectada do Horus. Será que você pode solicitar uma saída para mim? Essa porra tá doendo a beça...

— O que houve? O USV danificou? — perguntou Cane, se levantando e se dirigindo na direção de Agda.

— Acredito que queimou minha interface sensorial. Apagou tudo, estou às cegas aqui — E ela? — perguntou Agda apontando para Lya com os olhos — O que vamos fazer com ela? Nunca vi um Devorador ficar tão obstinado a pegar alguém.

— Eu simplesmente acordei e estava aqui e então aquela coisa começou a me perseguir! — explicou Lyna — Por que ele está atrás de mim? O que há de errado comigo?

Cane fez um gesto com a mão e a tela translucida se materializou em sua frente, ele encarou a tela por alguns segundos, respirou fundo e depois falou:

— Devoradores vão atrás de qualquer um Lyna. Acredito que ele veja em você uma saída.

— Como assim? — perguntou Lyna, se levantando — Aquela coisa quer sair daqui?

— Mundo real. O que obviamente não vai acontecer — respondeu Cane, desfazendo a tela — Pelo menos não enquanto eu estiver aqui.

Cane ajudou Agda a se levantar lentamente, a perna ferida jorrava sangue, naquelas condições ela não duraria muito.

— Vamos até a cobertura, estaremos à salvo por lá, pelo menos até a equipe de caçadores que solicitei chegar, o prazo é de aproximadamente trinta minutos — informou Cane ­—A propósito Agda, sua interface está completamente apagada, vamos ter que esperar um técnico para resolver isso.

Lyna caminhou em direção à porta e cautelosamente a abriu, enquanto Cane apoiava Agda pelos ombros. O corredor parecia vazio e aparentemente, seguro.

— Trinta minutos. Acho que é tempo o suficiente — disse Agda e Cane nem mesmo teve tempo de perguntar o porquê. Sentiu uma dor excruciante na lateral da barriga, no lugar onde uma das mãos de Agda, estava. Agora, no lugar da mão havia uma lâmina afiada e poderosa, cortando-o de um lado a outro. O rosto de Agda exibia um sorriso disforme e os olhos eram completamente brancos, sem pupilas.

Cane tentou pegar a arma que repousava nas fivelas de seu uniforme mas foi em vão, um tentáculo saído das costas de Agda esmagou seus dedos, quebrando-os como gravetos e um outro prontamente segurou sua outra mão. Lyna ficou imóvel por um momento, contemplando mais uma vez a horripilante cena que se desenrolava diante de seus olhos. Agda agarrou Cane pelo pescoço e o apertou contra a parede, as palavras que conseguiram escapar da boca dele diziam para que Lyna fugisse dali, algo que ela hesitou por um momento, mas que prontamente o fez em seguida quando ele conseguira gritar a plenos pulmões. Mas o que havia de errado com aquele Devorador? Se ele queria tanto Lyna, porque não a matou agora que estava indefesa? Talvez não fosse assim, aquela criatura havia devorado Agda e agora era considerada uma ameaça nível 3, algo que ele nunca enfrentara antes.

Enquanto o Devorador o olhava, prendendo suas mãos, ele pode ter um vislumbre do sorriso doentio da criatura e pela primeira vez, percebeu que ela não sorria por instinto, mas por prazer e o que ele fez depois, apenas comprovou sua teoria.

— Você... — a criatura balbuciou, e não era a voz de Agda, mas uma voz rouca e arrastada, como uma lousa sendo arranhada — ela... se importar... você viver... e ver...

A lâmina foi velozmente retirada da barriga de Cane, levando um jorro de sangue com ela, para em seguida ser atravessada em seu joelho. A dor foi tão forte que instantaneamente o levou ao chão, assim que a criatura o soltou. A sua frente, as formas de Agda davam lugar ao ser escuro com aquele sorriso distorcido e debochado, sua marca característica, estampando seu rosto vazio.

O Devorador gargalhou, afastando-se de Cane lentamente, o deixando para rastejar pelo chão, na inútil tentativa de se levantar. Não era por instinto, aquilo havia se tornado um jogo sádico e cruel e Cane definitivamente era um dos jogadores. A dor era tremenda e mesmo que o Devorador não voltasse para o matar, ele sabia que o ferimento na barriga o mataria. O Monstro sabia que ele tinha algum tipo de ligação com Lyna, ele queria que Cane vivesse o bastante para vê-la morrer. Enquanto pensava em uma maneira de sair dali, sua memória lhe trouxe um presente, uma oferta irrecusável. Havia uma forma de salvar Lyna.

— Central... preciso... fazer uma ligação... — começou Cane, rezando para que Lyna sobrevivesse por tempo o suficiente para que ele pudesse tirá-la dali.

***

Lyna corria o máximo que suas pernas aguentavam, como se sua vida dependesse delas e de fato, dependia mesmo. O estranho homem que ela conhecera provavelmente estaria morto, despedaçado pela criatura que ele chamou de Devorador. De alguma forma, Lyna sentia que o conhecia de algum lugar, mesmo os traços de seu rosto não tendo nada de familiar, mas agora não importava mais, ele provavelmente seria devorado como aconteceu com Agda. Ela correu até chegar a uma escadaria velha de metal enferrujado. Subiu cautelosamente e a estrutura rangeu com seu peso, estremecendo as estruturas que a fixavam nas paredes. Abaixo, as sombras pareciam engolir os andares escuros e desertos, ao menos não havia sinal do Devorador.
Quando chegou ao fim da escada, seguiu outro corredor, idêntico aos demais. Era como num sonho ruim do qual não importasse para onde ela corresse, sempre estaria no mesmo lugar. Andou apressadamente procurando um lugar para se esconder da criatura como fizera antes, se Cane estivesse certo, ela só precisaria esperar algumas horas até que seu despertador tocasse, arrancando-a daquele mundo horrível e desesperador.

O corredor parecia extremamente longo e ao final havia uma curva para a direita, onde para a surpresa de Lyna, mais pessoas estavam adormecidas, desta vez, sentadas em poltronas acolchoadas de aparência macia e cara. O único problema com elas, é que estavam sentadas numa das paredes, como se alguém tivesse feito algo de travesso com a gravidade. Lyna passou cautelosamente por elas, tomando o cuidado para não esbarrar em nenhuma, com medo de que pudessem cair e se machucar, afinal de contas, eram inocentes que estavam apenas adormecidos e nada sabiam a respeito daquele mundo ou da presença dela ali.

Ao término de um pequeno lance de escadas, ela saiu num enorme salão, repleto de tanques circulares, como tubos de ensaio gigantescos que seguiam até o teto. Dentro dos tubos cobertos por musgo, e envoltos por um líquido esverdeado de aparência envelhecida, bichos de pelúcia flutuavam por entre as bolhas que subiam. Lyna caminhou lentamente por entre os tubos, observando um coelho branco de aparência feliz, que subia e descia no fluxo do líquido, quando um barulho estrondoso a fez se atirar atrás de um dos tubos. Um dos tanques havia se rompido, espalhando água por todo o lugar, criando uma cascata que descia dos cacos do teto. Aquilo cheirava a perfume, perfume de bebê. Ouviu um sussurro e arriscou um olhar pela borda.

O Devorador a havia encontrado.

Lyna prendeu a respiração e se abaixou atrás do tubo, rezando para que o líquido turvo e o musgo que crescia nos tanques a escondesse. A criatura estava parada, observando o lugar através com seu rosto vazio. Os tentáculos em suas costas se agitavam como uma cortina sendo balançada pelo vento, em uma das mãos as garras protuberantes exibiam um brilho mortal e na outra, uma única lâmina se erguia imponente e ameaçadora. O Devorador arriscou alguns passos e então parou, levantou a cabeça como se farejasse algo, arqueando as costas e soltando um chiado rouco que poderia ser entendido como um riso. Foi então que do meio da sombra que a fraca iluminação fazia na criatura, uma réplica perfeita emergiu, acompanhada de outra e outra. Lyna quase mordeu a língua, ao ver que uma delas saltou para o teto e começou a rastejar feito um réptil por entre os tubos esverdeados, enquanto outra voltava pelo mesmo corredor que ela viera. O original e a última réplica se abaixaram e começaram a procurá-la, tubo por tubo. Lyna deduziu que eles a localizavam pelo cheiro e devido ao perfume excessivo, estavam encontrando dificuldades para tal.

Lyna prontamente pegou uma grande quantidade do líquido e jogou rapidamente sobre o corpo, saindo do esconderijo logo em seguida. O Devorador do teto andava rapidamente, tocando nos tubos como se pudesse sentir algo dentro deles e Lyna preferiu manter as mãos longe dos vidros. A cada encruzilhada de tanques, o medo crescia quando os Devoradores pareciam chegar cada vez mais perto. Fez um desvio e retrocedeu quando um deles passara velozmente em sua frente, escondida, ela nem percebeu o outro que rodeava o mesmo tanque. Ao se virar, a criatura a olhava, a visão distorcida pelas bolhas o tornava ainda mais desprezível do que já era. Ela se levantou rapidamente e correu, a criatura grunhiu alertando os demais e saltou com a lâmina, acertando um dos tanques e dando um banho de perfume em Lyna. A onda que se formou do líquido a derrubou arrastando-a pelo salão. Os Devoradores pareciam confusos com o cheiro, que agora era extremamente doce, chegando a dar náuseas. Lyna correu e as criaturas começaram a atacar a esmo, perdidos e sem direção, os golpes arrebentavam os tanques os deixando ainda mais agressivos, grunhindo ferozmente.

“As escadas Lyna, você precisa chegar até as escadas”

De acordo com Cane, ela estaria segura na cobertura. Continuou a corrida, enquanto ouvia os sons dos grunhidos sumirem à medida que se distanciava do salão. Se perguntava se Cane ainda estaria vivo e rezava para tal. Lyna não contou quantos corredores ou salas teve de percorrer até encontrar uma nova escada, ainda mais envelhecida do que a outra. Antes que pudesse subir o primeiro degrau, ouviu uma risada às suas costas e o Devorador saltou do teto numa veloz arrancada em sua direção. Ela ainda subia os primeiros lances da escada quando um golpe certeiro partiu um grande pedaço da armação de ferro, fazendo-a se desequilibrar e quase cair. A criatura se apressou para atacá-la novamente, agarrando-a pela perna com um dos tentáculos. Lyna se prendeu com toda a força no corrimão e a estrutura cedeu de uma vez, cortando o tentáculo escuro e derrubando o Devorador nas sombras dos andares abaixo, enquanto os destroços arrastavam o que restava da escada. Por pouco o corrimão ao qual se prendera não havia caído junto.

Lyna, mais uma vez fora salva pela sua sorte. Talvez a sexta-feira treze não fosse sinônimo de azar, no final das contas. Riu de ideia e se atirou nos restos da escadaria, recomeçando a subida em passo acelerado. Quando já estava quase no final da subida, escutou um ruído familiar. Um som conhecido soava na distância, mas ao mesmo tempo, parecia ressoar de dentro dela. Sentiu o corpo amolecer e por pouco não caiu. O que era aquilo?

A escada terminava numa única porta metálica e antes de abri-la, já imaginando o que havia do outro lado, Lyna mais uma vez agradeceu a sua sorte. A cobertura era ampla e vazia, o piso feito de enormes quadrados de concreto acinzentado, o céu acima de sua cabeça era uma explosão de nuvens tempestuosas, entrecortadas por raios silenciosos. Um vento frio agitava seu cabelo e Lyna se distanciou da porta, rumo a beirada do prédio, por onde pode vislumbrar com mais clareza aquele mundo tão distorcido. Os prédios escurecidos e de aparência assustadora se estendiam desordenadamente, sem nenhuma lógica ou padrão. Arranha-céus dividindo espaços com cortiços e estruturas inacabadas. Ao longe, vários deles estavam destroçados e os pedaços flutuavam ao redor como asteroides orbitando um planeta morto, estagnados num lugar onde tempo e espaço pareciam tão irreais quanto as leis da gravidade. Outra vez Lyna ouviu o ruído, agora bem mais alto, quase a obrigando a tapar os ouvidos com as mãos. Virou-se.

Novamente o Devorador a encarava na frente da porta pela qual passara. Estava terminado, não havia como escapar dali. Sentiu um peso no peito e um medo aterrador dominar seu corpo, será que Cane teria imaginado algo do tipo? Havia lutado tanto... morreria ali? No alto daquele prédio, devorada por um ser grotesco e sorridente? Não, definitivamente não.

A criatura disparou em sua direção e ela fez a única coisa que lhe restou. Ainda de costas, olhando para a fera que avançava, deixou-se cair no vazio, seu corpo sendo carregado pelo vento enquanto o ruído aumentava cada vez mais. O Devorador saltara também, as garras prontas para agarrá-la e dilacerar sua carne. Se aquilo de fato fosse um sonho, ela acordaria antes de chegar ao solo, antes mesmo da criatura matá-la. Mas Lyna sabia muito bem a diferença entre um sonho e a realidade, ela sabia como aquilo terminava.

O celular tocava insistentemente quando Lyna levantou de sua cama num salto. Em desespero tateou todo o corpo como que para garantir que estava tudo onde deveria estar. Tudo não havia passado de um sonho ruim, um dos piores que já teve na vida. Passou a mão na testa e escorregou pelos cabelos bagunçados, sorriu.

“Apenas um sonho, somente isso”

Pegou o celular na mesa de cabeceira e antes que pudesse atende-lo, a campainha estridente se calou. O visor mostrava 5 ligações perdidas de Carl Newman, um garoto da escola pelo qual ela estava apaixonada há uns bons anos. Por que ele ligara para ela às 5 horas da manhã? Uma estranha preocupação começou a tomar conta dela, como se ela soubesse de algo que não deveria, ou não gostaria de se lembrar, mas definitivamente não sabia o que era. Tentou retornar a ligação vez após outra e nada, apenas o apito da caixa postal sendo ativada. Sentou-se na cama e se enrolou nas cobertas, apertando o celular com força nas mãos. Naquela noite, Lyna não conseguiu dormir e as imagens daquele sonho estranho, se perdiam em meio a pensamentos e visões das quais ela não tinha certeza do que significavam. Abraçou-se e se enrolou ainda mais no cobertor, enquanto um temor crescia dentro de si.

Tentou ligar novamente, mas não houve resposta.

Na manhã seguinte, antes de sair para o encontro com as amigas, haveria uma encomenda para ela na soleira da porta, uma caixa embrulhada em papel pardo, com os dizeres “Abra antes de dormir”.

E partir daquele dia, suas noites nunca mais seriam as mesmas.


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Notas finais do capítulo

Pronto!!! Então, o que acharam dessa pequena história assustadora? Tenho que confessar que o final, só de imaginar o que aconteceria quando ela encontrasse a caixa, me deu calafrios! É o fato de saber que o pesadelo não terminou, que ele vai durar todas as noites até o fim da vida dela. Não é algo fácil de se aceitar, definitivamente. Essa história curta, assim como outras que virão em breve, terão uma certa ligação com a história principal, mesmo que bem sutil. Espero que vocês consigam pegar as referências! Obrigado por lerem e até a próxima!