Usuário Final escrita por Ishida Kun


Capítulo 14
A Rede 3:4


Notas iniciais do capítulo

Desculpem a demora, caros leitores! Fico tão ansioso para postar os capítulos... me pergunto se vocês também ficam para lê-los! Gostaria de poder escrever mais, muito mais... mas, ainda não inventaram um vira-tempo, então fica difícil! Este capítulo começa um pouco diferente do habitual, então para quem ficou curioso sobre aquele final... por favor não me odeie! Ha ha ha ha! Aqui será contado um pouco mais sobre a Rede... espero que gostem! Ah e o que acharam da nova capa? Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/540156/chapter/14

Adam tentava acompanhar os passos apressados de Carla, enquanto desciam a tortuosa escadaria de incêndio do edifício 673. A armação, que deveria ter sido vermelha um dia, estava caindo aos pedaços, com diversos degraus faltantes e o maldito rangido do metal velho, ressoava no silêncio, algo que fazia com que a taxa de sincronismo de Adam oscilasse feito uma montanha russa. A altura nunca havia sido um problema para ele, mas aquele lugar parecia ter saído de um filme de terror. A Cidade Silenciosa tinha uma beleza surreal e sombria vista de cima, porém quando se descia, a beleza começava a morrer, deixando apenas a parte sombria e fantasmagórica daquela cidade deserta.

O 673 era realmente alto, talvez passasse dos 40 andares, ficando acima da maioria dos prédios, mas agora que já haviam descido uma boa parte dele, era possível observar as construções ao redor com mais clareza. O prédio ao lado, era tão escuro quanto os demais, porem a lateral dele parecia ter ruído, dando um vislumbre de quartos e corredores com pilhas e mais pilhas de malas de viagem. Em um dos quartos haviam centenas de brinquedos antigos, completamente forrados com algo que lembrava musgo. Camas vazias abarrotavam outro cômodo, recobrindo até mesmo as paredes e o teto e seguindo por um corredor que aparentava ser mais extenso do que o tamanho do próprio edifício. Uma luz piscava em algum quarto ao longe, revelando silhuetas humanas, formas inertes que se assemelhavam a manequins em posições do cotidiano.

— Será que dá pra você se apressar? Isso aqui não é um passeio pela terra da fantasia, novato! — resmungou Carla, nem se dando ao trabalho de olhar para Adam.

Por um instante apenas, não havia percebido que parara de descer. A caminhada continuou em silêncio, mas por dentro, Adam ainda remoía os últimos acontecimentos. Em sua mão enluvada, a fina linha vermelho vivo do uniforme, brilhava com sua luz mórbida que lembrava sangue, seguindo até os detalhes de engrenagem no ombro. Aquele vermelho vivo o ligava a Beatriz de uma maneira a qual ele jamais poderia fugir, mas ao mesmo tempo, sentia que aquilo havia criado um abismo imensurável entre os dois. A expressão de tristeza e espanto no rosto dela não queria ir embora de seus pensamentos, ele havia herdado o link de uma pessoa morta, contrariando tudo o que lhe haviam falado, alguém que havia causado algo terrível o bastante para que Beatriz o olhasse daquele jeito e mal lhe dirigisse a palavra.

Ela falou pouco, com a voz suave e trêmula, enquanto todos o olhavam com estranheza. Pediu que ele fosse com Carla, e se desculpou por não poder acompanha-lo em seu primeiro dia na Rede. Era mais do que óbvio que aquilo havia sido por culpa do maldito Link. O que havia de tão errado com ele? Um desconforto começava a se desenrolar feito um novelo de lã em suas entranhas, aumentando e bagunçando, enrolando e voltando, angustia, algo indecifrável que se escondia em algum lugar, Beatriz. Aqueles sentimentos eram dele ou seriam dela? Devia ser efeito do Link, agora que estavam conectados permanentemente, aquilo poderia ocorrer com frequência.

Faltava pouco para chegarem ao chão, onde uma névoa fina recobria um beco abaixo, entre o 673 e o prédio com a parede destroçada. A ruela parecia serpentear por entre os edifícios de maneira irregular, com ramificações e contornos, desembocando no que parecia ser uma avenida, igualmente vazia. Carla já estava há mais de dois lances de escada à frente de Adam.

— Lição número um novato! — anunciou ela, parando de repente e olhando par cima — Assim que descermos, você fica colado em mim, entendeu? O quadrante do Martinez é seguro, mas nunca dá pra ter certeza. Lá nos telhados estamos a salvo dos Devoradores e das malditas Unidades Pacificadoras, mas aqui em baixo, somos alvos fáceis. — Ela fez um aceno com a cabeça e saltou de costas, dando um giro completo e caindo perfeitamente em pé, de uma altura de mais de 10 metros.

Adam permaneceu imóvel, um tanto perplexo pela cena que acabara de presenciar e também, o nome das criaturas que habitavam aquele mundo, os Devoradores, ainda tinha um certo impacto nele. Quase pôde ver a criatura sorridente, com as garras cobertas de seu sangue o encarando com um rosto vazio, sem olhos.

— Você tá esperando o quê pra saltar? Quer que eu vá aí em cima buscar você pela mão? — gritou Carla, do chão.

— Vai à merda! — berrou Adam, seu grito ecoou por todas as estruturas, vibrando até mesmo no metal deteriorado da escadaria. Silêncio.

— Isso mesmo! Anuncia pra todo mundo que a gente tá aqui!

— Pivete estúpida… — sussurrou Adam em resposta, baixo o bastante para que Carla não pudesse escutá-lo. Olhou para baixo. A queda talvez não o matasse e se tivesse sorte, apenas quebraria as pernas. Balançou a cabeça negativamente, espantando a ideia de uma fratura exposta naquele lugar maldito e continuou pelas escadas. Havia um motivo pelo qual Carla havia saltado, a escada estava destruída no lance seguinte. Adam respirou fundo e tentando controlar a agitação em sua barriga, olhou para baixo onde uma debochada Carla o olhava sorridente. Como ele detestava aquele sorriso. Apoiou-se na grade de proteção e quase fechou os olhos, mas não o fez. Seu corpo se jogou primeiro do que sua mente pode coordenar os movimentos, foi estranho, como se alguém pensasse por ele um milésimo de segundos antes dele mesmo pensar. Era como saltar uma poça de água, algo que ele conhecia substituindo a sensação de algo que ele temia, sentiu-se confortável e calmo, não havia do que ter medo. Caiu suavemente, abaixando-se de leve no impacto ao solo e um misto de excitação e surpresa cresceu dentro dele, um sorriso suave brotou nos lábios, um do qual ele não pode esconder.

— Muito bem novato, quer um tapinha nas costas? Apresse-se! — resmungou Carla, seguindo pela ruela, rumo a avenida. O ar estava frio, porém era perceptível a umidade na névoa. Olhando para cima, os edifícios se esticavam grandiosos, imponentes, suas cores escuras misturando-se com a noite eterna da Rede e apesar de não existir nenhuma fonte de luz nas proximidades, somente agora Adam percebia o quanto estava claro. Era como uma noite de lua cheia, onde tudo ganhava um tom azulado, numa beleza mórbida e de certa forma inquebrável.

Ao chegarem no final do beco, Carla estendeu a mão para o lado e num instante, uma centena de fios alaranjados formaram uma arma em sua mão. O rifle de assalto, que possuía o corpo acinzentado quase sem detalhes, era chamado de G-11, uma arma do tipo bullpup, onde o carregador é montado na parte de cima da arma e o pente de munição é inserido atrás do cabo. A munição da arma, composta por cartuchos desencapados de 4,7mm, era compacta o bastante para permitir cerca de 50 tiros por carregador. A mira telescópica montada na parte superior do rifle, possuía a lente avermelhada, como um grande olho. Ela empunhou o rifle, apoiando a coronha no ombro e prosseguiu, fazendo um sinal para que Adam a acompanhasse.

— Eu não deveria ter uma arma também? — perguntou Adam, deixando transparecer um leve toque de sarcasmo.

— Claro que sim. — respondeu ela, de forma que demonstrasse sua falta de simpatia.

— E por que será que eu não tenho uma arma? — questionou ele, ironicamente — Achei que por você ser a especialista, você poderia me…

— Seu equipamento, seu problema, sacou?

— Só pode ser brincadeira…

— Cara, deixa de ser babaca! — zombou Carla, rindo debochadamente — Você ainda não tem acesso ao equipamento, o Gabriel ainda está sincronizando você ao Horus e isso leva tempo! Por que você acha que criei a lição número um?

— E depois eu sou o babaca aqui? — E Adam resolveu se calar, pelo bem daquela maldita missão de treinamento ou o que quer que fosse, não fazia diferença. De acordo com Valéria, Carla já fora de uma equipe de treinamento e como Beatriz precisaria se ausentar por razões não especificadas porém obvias, Carla seria a melhor pessoa para acompanhá-lo e lhe ensinar o básico das operações na Rede. A parte curiosa é que Carla insistira para que fossem sozinhos. Aquilo não devia ser boa coisa, ela, com certeza, estava tramando algo e ele precisava ficar atento.

Um bipe soou em seu ouvido e em seguida, a foto de um personagem de algum animê que ele e Eriza já deveriam ter assistido, piscou na interface visual. O nome Gabriel estava logo abaixo da foto e Adam simplesmente pensou em como seria bom falar com alguém que não fosse Carla e a “ligação” foi atendida.

— E hoje estamos com um incrível silêncio na Cidade Silenciosa! O que acontece com o grupo mais falante da Rede? — perguntou animado, a voz era tão clara que fez Adam olhar para o lado impulsivamente, quase imaginado ver a figura de Gabriel ao seu lado, usando o mesmo uniforme que ele.

— Não faço ideia… ainda nem sei como fazer ligações. — respondeu Adam, agradecendo mentalmente o fato de poder conversar “de verdade” com alguém.

— Logo você se acostuma. Você parece mal-humorado… não está gostando da Rede?

— O problema não é a Rede, é a companhia. — respondeu, e Carla se virou para ele sorrindo, algo que ele retribuiu com a mesma falsa cordialidade.

— Coisa da idade. — confirmou Gabriel, suspirando — O que você está achando daí?

— Assustador… me sinto num filme de terror ou algo do tipo. Todas essas pessoas adormecidas e bom, eu já sonhei com esse lugar antes e não foi nada agradável. Tenho a impressão de que alguma coisa vai pular em cima de mim a qualquer instante!

— E provavelmente vai, afinal, não era um sonho. — E percebendo que talvez não devesse ter dito aquilo, Gabriel rapidamente começou outro assunto — Que tipo de música você gostaria de ouvir? Faça um pedido e a rádio Helldivers toca pra você!

— Isso vai ser divertido… — disse Adam, pensando em qual seria a primeira música da lista — vamos começar com uma música chamada Butterfly Caught, acho que vai combinar com o momento. Eu não lembro o nome da banda, mas acho que isso não será problema para você. A propósito, ela vai ouvir? — perguntou, quase apontando para Carla.

— Se você quiser.

— Adoraria! Comece me falando sobre tudo o que ela não gosta.

Gabriel gargalhou, colocando a música para tocar logo em seguida. ♫ - 8 A melodia começou leve, o ritmo suave ia crescendo à medida que as batidas eletrônicas se intensificavam num misto sombrio e misterioso, os vocais sussurrantes soavam tão escuros quanto a paisagem ao redor, era como se os sons saíssem de dentro da cabeça de Adam e tudo ao redor fosse feito de música, onde cada estrutura parecia ressoar com a melodia. A Cidade Silenciosa cantava naquela noite, mas essa era uma música que ninguém além deles poderia ouvir.

Caminharam em silêncio, tendo apenas a música como companhia, seguindo pela grande avenida ladeada de edifícios, muitos dos quais não havia nenhuma porta ou entrada visível. Postes de iluminação apagados acompanhavam a via e carros envelhecidos jaziam na escuridão, como se tivessem sido estacionados e esquecidos eternamente. Adam se aproximou cautelosamente de um deles e passou a mão no vidro, tirando uma espessa camada de pó. Havia uma pessoa dentro do carro, uma mulher. Seus olhos estavam fechados, mas de alguma forma pareciam vidrados em algum ponto inexistente, uma das mãos estava firme no volante, enquanto a outra pendia na direção de um celular largado no banco do carona, o aparelho era tão grande que mais se parecia com um telefone sem fio. Ver aquela mulher era como olhar para um manequim posto em uma posição do cotidiano e se não fosse o suave subir e descer do peito, seria impossível distinguir. Ela estava adormecida como o resto da cidade.

“As crianças… escola… Antony… fez? … Não fui…”

E Adam se afastou do carro num pulo. Os sussurros de palavras desconexas pareciam ter saído de dentro de sua cabeça e ainda aparentavam estar lá, mas certamente não pertenciam a ele.

— Eu ouvi algo… é um Usuário Dormente? — perguntou, apontando para o carro.

Carla estava alguns passos à frente, parou e virou-se para ele, lançando um rápido olhar para o carro, em seguida se dirigiu a Adam.

— Sim. Eles estão aos montes por aqui. Se você chegar perto o bastante — E Carla estendeu uma das mãos na direção do carro, revelando uma centena de linhas luminescentes que saltavam do corpo da mulher — pode acabar por interceptar algum link e ouvir os pensamentos deles. Depois de um tempo você até esquece que estão aí. Vamos logo novato!

Adam voltou os olhos uma última vez para a mulher adormecida no carro e seguiu com Carla. Aos poucos ele começava a se acostumar àquela paisagem nova, a sensação de familiaridade era constante e ajudava no reconhecimento dos ambientes, na assimilação de uma lembrança ou outra.

Enquanto caminhavam, passaram em frente a um restaurante que Adam tinha certeza de já ter visitado com Eriza, mas a placa com o nome estava borrada e disforme, digna de um Picasso. Por dentro das grandes janelas de vidro da entrada, clientes vestidos de garçons e garçonetes sentavam-se inertes nas mesas, segurando copos e talheres que se dirigiam às bocas fechadas enquanto pratos vazios, aguardavam nas mesas a comida que talvez jamais chegasse. Haviam também pessoas muito bem-vestidas, com seus ternos sob medida e longos e delicados vestidos de festa. Imponentes, eles equilibravam bandejas vazias nas pontas dos dedos como se desfilassem numa passarela. A cena chegaria a ser cômica se não fosse tudo tão escuro, tão ameaçador e se aquelas pessoas não se assemelhassem a bonecos postos em posições bizarras. Mas a parte mais intrigante do lugar, era que eles estavam todos de cabeça para baixo, como se houvesse algo de muito errado com a gravidade ali dentro. Adam preferiu não se questionar a respeito desse fato, pois nos andares acima, o edifico estava esmigalhado, com centenas de fragmentos flutuando no ar, como se estivessem congelados no tempo. Era possível distinguir uma poltrona cor-de-rosa e talvez um corpo, mas ele não tinha certeza.

Mais à frente, passou por outra vitrine gigantesca, onde uma lâmpada queimada piscava convulsivamente ao fundo, o preto e o brilho alaranjado da iluminação velha se alternando quase ritmicamente, revelando e escondendo dezenas de pessoas, lado a lado, imóveis. Seus rostos vazios estavam levemente levantados, como se os olhos fechados pudessem olhar através do teto ou do céu tempestuoso. Não possuíam nenhuma expressão, nenhuma emoção. Seus trajes de luxo, exibiam uma etiqueta, mas não era apenas um preço que as estampava. Enquanto caminhava, Adam conseguiu ler apenas algumas delas: “Dor $0,00” estava em um homem de barba rala e cabelo escasso, “Amor $9,9k” em uma mulher muito bonita, que usava um vestido vermelho bem decotado, “Bondade $0,5” em um homem de cabelos longos que apesar de usar terno, vestia apenas um calção, e “Crueldade $0,15” em outro homem, que tinha os cabelos loiros meticulosamente penteados para trás e que carregava uma valise na mão.

Sem questionamentos no final das contas. Ele continuou caminhando e entre um flash e outro, mesmo sabendo que era impossível, teve a clara impressão de que viravam o rosto para acompanhá-lo e seus rostos eram caveiras, com as órbitas escuras e vazias fazendo companhia para o sorriso distorcido dos ossos cinzentos.

— Vamos chegar em breve. Esteja preparado. — disse Carla, roubando momentaneamente sua atenção. Os rostos estavam onde ele os havia deixado. O olhar sem olhar, perdido em algum lugar ainda mais distante.

As borboletas na barriga de Adam se agitaram, dando a ele um vislumbre do que viria adiante. Ele sentia nas palavras de Carla, que o que quer que fosse acontecer naquela noite, era só o começo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Então? Gostaram? Muito parado? O que acharam dos usuários dormentes? Assustador? Eu acho... a ideia desse monte de pessoas imóveis não me anima em nada. Sabem porque? Vou soltar um SPOILER AGORA: Devoradores podem se disfarçar de Usuários dormentes, mas somente daqueles que eles devoraram. Isso não é motivo o bastante para ter medo? Bom, para mim é! FIM DO SPOILER. E perguntas sobre o por quê dos dormentes estarem daquele jeito? Não há respostas... eu tenho minhas ideias do porque, mas são minhas. Quero que cada leitor tenha as suas próprias teorias sobre a Rede e esses mistérios. É a interatividade da história... aqui eu desafio você, leitor, a usar a criatividade e tirar sus próprias conclusões! Mas isso é só um ponto de partida... os mistérios da Rede estão só começando! Você conseguirá desvendar que mistérios se escondem nas ruas sombrias da Rede?