E viveram felizes para sempre! escrita por ALoka


Capítulo 1
Na saúde e na doença


Notas iniciais do capítulo

Se há uma coisa que nunca para, essa é o tempo. O tempo não para e também não volta. O tempo é precioso e implacável. O tempo cura, transforma, constrói, destrói, conserta, estraga... Dizem que há coisas que não mudam com o tempo, que resistem à sua ação. Será verdade? Por exemplo, o amor. Será que o tempo muda um amor? Será que, como nos contos de fadas, as pessoas comuns podem viver felizes para sempre?



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Era uma vez uma casa à beira da praia, que se transformou na residência da família Corona-Khoury. Lá, o tempo já passou... faz tempo. Lá se vão mais de trinta anos desde que o jovem casal se mudou acompanhado de duas crianças e um velho pai. Já faz tempo que o tempo não importa muito naquela casa onde, hoje, o tempo corre mais lento. Ficaram no passado as manhãs apressadas, as tardes corridas e as noites curtas quando o tempo nunca era suficiente para se fazer tudo que se queria. Ah, a pressa dos jovens! Essa pressa típica dos que estão começando a vida e correndo atrás das coisas, essa ficou no passado. Hoje os passos são mais curtos, os afazeres em menor quantidade e o relógio parece, às vezes, não andar. Hoje, quem dita o ritmo naquela residência é muito mais a natureza do que as pessoas e seus compromissos. Hoje, tempo é o que não falta naquela casa, naquele quarto, naquela cama.

E hojé é o ano de 2045. Hoje é uma manhã de inverno, do mês de agosto, o sábado anterior ao Dias dos Pais. O casal que mora ali há pouco mais de três décadas desperta após uma noite agitada. Despertam sonolentos, preguiçosos e sem pressa.

Acordam com beijos, um beijando o outro. Dificil saber quem acordou primeiro, quem deu o primeiro beijo, quem fez o primeiro carinho com o pé na perna do parceiro ou quem afagou primeiro o cabelo do companheiro. Hoje em dia eles acordam assim, se mexendo lentamente, tocando um ao outro de maneira suave, indolentes, lânguidos, não há mais pressa para nada. E não tão frequente quanto antigamente, mas não raramente, ainda acordam com outro tipo de toque, e se amam suave ou voluptuosamente, mas também sem pressa. Já foi o tempo que levantavam correndo, com a urgência de encontrar os filhos, tomar o café, sair para o trabalho ou cuidar das coisas da empresa e da casa. Hoje podem ficar mais tempo na cama aproveitando as carícias um do outro, se entregando à preguiça e aos arrepios causados por beijos e mãos mais atrevidas. Não há mais crianças pequenas nem grandes, exceto quando um neto ou outro vem passar férias. Quando não, a casa é silenciosa. Barulho, além dos pássaros e das ondas do mar, somente se ouve o de um casal apaixonado: as risadas, as conversas, os gemidos e gritos de prazer e as pequenas briguinhas, é claro, que apimentam a relação e terminam sempre em beijos, caricías ou sexo.

Essa é mais uma das típicas manhãs tranquilas em Angra. Pela janela semi-aberta entra a brisa fria de um dia de inverno, mas cama mais quente que aquela não era fácil encontrar. Nos braços um do outro, eles sempre se aquecem.

– Nada mau, hein? Para alguém com a minha idade...

– Com você nada, nunca, é mais ou menos, que dirá mau. Você está sendo modesto.

– Quer saber, Carneirinho, estou sendo mesmo. A verdade é que a noite foi ótima, magnífica! Pelas contas do Rosário, nós ainda batemos um bolão como se dizia antigamente.

– Esse é o meu Félix! – Niko sorri, levanta a cabeça do peito de Félix onde repousava e aproxima-se dele para um beijo. Antes de colarem os lábios ele diz: - Bom dia, Amor. Feliz Final de Semana dos Pais!

Eles se beijam demoradamente. Quando terminam, trocam de posição. Agora é Felix quem está apoiando a cabeça no peito de Niko, onde uns poucos fios loiros se misturam a alguns já brancos.

– Bom dia, Carneirinho. – Ele ri dos exageros do companheiro. – Só você para transformar o Dia dos Pais em um Final de Semana dos Pais,

– Ué, temos que comemorar em dobro já que somos dois pais! Já começamos ontem com um jantar romântico saboreando nossos pratos favoritos.

– E depois do jantar, a noite maravilhosa. - Félix diz maliciosamente: – Aliás, eu amei o meu presente.

– Eu sabia que você ia gostar da surpresa. Também gostei do seu. - Niko sorri como um menino que aprontou uma travessura e ainda fica vermelho, mesmo após anos. – E depois do jantar e da noite maravilhosa, hoje temos almoço e outro jantar com os meninos, e amanhã o dia todo na piscina com a família!

– Ai, Niko... qual terá sido o meu pecado bíblico responsável por você ficar com essa mania de dar festa pra tudo?

– Ah, Félix... é um pretexto pra ter todo mundo aqui.

– Eles estão sempre aqui.

– Mas com festa é melhor! – Exatamente como há mais de trinta anos, Niko sempre consegue convencer Félix a acatar suas idéias. Seja usando seu olhar de carneirinho pidão ou algum de seus truques e segredos. Hoje em dia, essas idéias envolvem preparar verdadeiros eventos especiais para receber sempre os filhos, noras e netos.

– Você sempre planejando alguma coisa. Faz pouco tempo fizemos aquela festa enorme do nosso aniversário de casamento.

– Bom Félix, trinta anos de casados tinha que ser um mega evento!

– E foi mega mesmo. Teve banda e tudo! Carneirinho... igual a você não há. Fez uma festa maior que as Bodas de Prata, onde isso vai parar? – Félix ri das ideias de Niko mas, nesse momento, seus olhos se enchem de lágrimas de alegria ao lembrar do quanto foi especial a comemoração de bodas dos dois, e usa uma piada para disfarçar a voz embargada: - Pelos cachos de Sansão, acho que ainda não me recuperei... meus pezinhos ainda doem!

Em meio à brincadeira, a verdade é que os dois se emocionam com a lembrança. Havia sido mesmo uma festa muito especial. E Félix segue comentando os eventos recém organizados por Niko:

– Logo em seguida você me apronta um final de semana inteiro de comemoração pelo meu aniversário. Na minha idade não deveria nem ser lembrado, Niko.

– Ao contrário, Félix! Setenta anos só se faz uma vez na vida.

– É mesmo, Carneirinho? Que constatação inteligente! Olha só... seus cachos loiros estão funcionando bem essa manhã!

– Pára, bobo! – Niko tem o mesmo jeitinho, até hoje de se fingir indignado com as piadas de Félix. - Você mereceu a festa. Ano que vem, festa só no meu aniversário, porque no seu aquela viagem já está certa.

– Ai... Niko, eu creio que eu usei as Tábuas dos Dez Mandamentos como bandeja, pra você agora planejar festas e viagens com um ano ou mais de antecedência!

– Você que me ensinou a planejar tudo. Pesquisar preços, controlar os gastos, usar os prazos à nosso favor, aplicar o dinheiro, gastar na hora certa... aprendi com você. Alias, por falar em planejamento, vamos levantar por causa da hora? Os meninos podem chegar.

– Ah não, Carneirinho, vamos ficar mais um pouquinho. Ainda é cedo, ninguém vai chegar agora. Eu queria te contar uma coisa.

– Tá bom, acho que podemos ficar mais um pouco mesmo. Eu adoro ficar com você assim na cama. –Enquanto fala ele abraça Félix mais forte.

– Eu tive de novo aquele sonho, Niko. Queria poder passar um filme dele pra você assistir. Quase na metade do século vinte e um e esse tipo de máquina ainda não inventaram, sinceramente... Alguém com tantos neurônios como eu devia ter sido cientista!

– Quem sabe em breve inventam, amor. – Niko ri porque Félix até hoje tem sempre que reclamar de alguma coisa, e ele já está mais do que acostumado e leva na brincadeira. – Mas já que ainda não existe um, digamos, projetor de sonhos... me conta como foi.

– Ah, você sabe, é o meu favorito. É quando eu sonho que estou fazendo uma das coisas que eu sempre mais gostei de fazer!

– Hum... já até sei, foi um sonho erótico! Qual foi a fantasia dessa vez, hein?

– Nada disso... não dessa vez. - Felix ri da piada com segundas intenções. - Se bem que foi um sonho molhado.

– Humm, eu sabia! – Niko ri também.

– Não, Carneirinho, é sério. Sonhei de novo aquele sonho da piscina. Você sabe qual é. É um sonho tão vívido, tão colorido... é uma imagem que eu me lembro tão bem... é tão linda, eu guardei ela na lembrança e me vem sempre em sonho.

– Claro que sei qual é amor, mas adoro ouvir você contar. – Niko fala enquanto faz carinho nos cabelos de Félix que ainda repousa com o queixo em seu peito, e pede: – Conta de novo pra mim?

– Então, no sonho está nossa família, nós aqui em casa com as crianças quando Fabrício era pequeno. Estamos na piscina brincando com ele. Jayme esta lá ao lado todo entretido com aqueles infláveis, lembra que a gente enchia a piscina com aquelas coisas?

– Lembro Félix, parece que foi ontem. – Niko sorri com a lembrança e transborda de felicidade ao ver que seu companheiro lembra ainda tão bem dessas coisas.

– Papi estava começando a ficar mais participativo nessa época, nós colocávamos a cadeira dele perto da mesa, na sombra, lembra? E ele ficava de lá observando o pouco que conseguia ver, às vezes ele até sorria! Adriana trazia suco, almoçávamos la fora... era tão bom!

– Aqueles foram os dias quando começamos a ser mais felizes aqui em casa, Félix. Eu lembro muito bem.

– Então, eu sonho sempre com essa cena: Papi sentado na sombra e nós na piscina, a gente abraçava o Fabrício entre nós dois e ficava dentro da água com ele, nós chamávamos de Sanduíche de Fabrício, lembra Carneirinho? Balançando com ele dentro da água, rodando, rodando... ele ria, ele adorava! Eu gostava tanto de fazer isso. Nós e o nosso bebê.

– Ah, Félix... nossa, como tenho saudades disso!

– Niko, você me confiou o seu bebê pra ser meu filho, você tem noção do que isso significa? – Ambos se emocionam e as palavras faltam por alguns segundos. Até que Félix continua: – Um lindo dia de sol, cheiro de mar, céu azul, o cabelinho dele tão loirinho e ele tão feliz olhando pra nós. E o Jayminho jogava água pra cima... dizia que era chuva. A água respingando na gente tornava tudo ainda mais bonito. E você... você estava radiante de felicidade, meu carneirinho... Pelas contas do Rosário, que visão era aquela! Um sorriso tão franco e bonito, uns olhos tão verdes... eu me perguntava como alguém podia ser tão lindo...

– Félix... – Niko ouve e não consegue dizer mais nada. Com os olhos cheios de água ele faz carinhos nos cabelos de Félix que continua descrevendo a cena:

– Eu lembro sempre disso, do Papi ali nos entendendo e começando a nos aceitar, do jeito dele né, mas enfim... lembro do sorriso das crianças... e lembro, lembro bem do seu rosto naquele exato momento. Eu lembro tanto que acabo sonhando. – Félix para de falar e apenas olha pra Niko, que retribui o olhar emocionado, até que continua: - Você não mudou nada Carneirinho, nada... ainda tem o mesmo olhar de carneirinho pidão, o mesmo sorriso jovial como de um menino, ainda tem esse ar de inocência e o coração mais puro de todos. – Os dois param se olhando – Niko... eu te amo tanto!

Eles se aproximam e trocam um beijo cheio de ternura. Voltam a deitar, só que agora de lado, um olhando pro outro.

Niko, entre lágrimas, consegue dizer: - Félix, eu também te amo. Te amo demais! Amo que você lembra disso tudo. Amo que essas lembranças acabam indo até os seus sonhos. – e os dois param no tempo, apenas se olhando e sorrindo.

Eles conseguem se comunicar só com o olhar já há muito tempo. Um vê no outro o que já sabem, é comum ficarem apenas se obervando e, dessa maneira, muitas vezes eles conversam sem palavras. Muitas perguntas são respondidas apenas com olhares. Basta olhar nos olhos e um já sabe se o outro quer dizer sim ou não. Mas palavras são agradáveis de se ouvir, e tem a sua importância. E Niko sempre soube como Félix gosta de ser elogiado:

– Você também não mudou nada, Félix!

– Não mudei, é? Sei... – E o sempre tão vaidoso Félix abaixa a cabeça um pouco triste. Os anos não lhe fizeram tão mal, ao contrário. E ele está bem para sua idade. A genética lhe favorece, como ele mesmo disse anos atrás. Os cabelos não estão todos brancos, eles está apenas parcialmente grisalho, sua pele é realmente boa como ele sempre apregoou e com os cremes e tratamentos modernos, nessa época, com essa idade, qualquer pessoa que se cuide tem uma pele razoavelmente ainda jovem. A verdade é que, quando ele se olha no espelho, embora perceba as inevitáveis mudanças, ele se acha bem. Ele se acha até muito bem. Mas ele adora arrancar elogios do Carneirinho. E fazer manha e bico, ele aprendeu com o parceiro, então ele fala: – Não sou mais o mesmo, Niko. Claro que não. Não sou mais o Félix que desfilava elegante em ternos carérrimos, que tinha a pele igual uma pétala e cabelos negros como o ébano... não sou.

– Pára Félix, pode parar! Fisicamente nós dois mudamos, lógico. Mas nós temos sorte, estamos muito bem, melhor que muita gente por aí, tá? Até porque vivemos em outra época. Nossos pais, com a nossa idade, tinham aparência mais envelhecida que nós temos hoje. E você pode continuar se vangloriando, como sempre, da sua boa forma física. Não engorda nem emagrece... quem me dera ser assim!

Niko levanta o queixo do companheiro fazendo-o encará-lo. Consegue arrancar-lhe um sorriso e continua: - Félix, olha pra mim e me escuta. Seu delicioso senso de humor é o mesmo, o seu sorriso é exatamente igual, esse jeito de olhar que me arrepia não mudou, suas mãos, seu gosto, seu cheiro, tudo isso que me enlouquece é o mesmo de anos atrás... arrisco a dizer que, com os anos, você ficou ainda mais charmoso e sensual, além do que você tem um jeito Félix, você tem... olha... uma pegada... e isso os anos não tiraram de você. – Niko é tão sincero que chega a corar enquanto elogia Félix. Fica vermelho com a simples lembrança de detalhes daquele homem que, para ele, é tudo. Félix ouve os elogios com agrado, lhe dá prazer ver a adoração que Niko tem por ele.

– Niko... esses elogios todos fazem parte do presente de Dia dos Pais, é?

– Isso é apenas a verdade, meu bem! E tem mais, já que é pra falar eu vou falar. Agora eu vou falar! – Niko ri e faz uma cara maliciosa - Vamos combinar que tem uma coisa que não mudou no senhor, e é o mais importante.

– Ah é? – Félix imagina o que Niko vai dizer e se anima, se aproxima do rosto dele, sorrindo maliciosamente e cheio de segundas intenções, para sussurrar ao pé do ouvido: - Me fala, Carneirinho safado.

Niko se controla, se finge de inocente e o encara com uma expressão bastante angelical. Contendo o riso, pois sabe que Félix espera outra resposta, ele dispara:

– O coração, Félix.

– Carneirinho! Pelas contas do Rosário... - Félix protesta, é lógico. Não é isso que ele espera ouvir. Ele começa a se afastar de Niko, virando para o outro lado da cama demonstrando sua enorme indignação.

– Tudo bem, Niko, o coração... mas olha, eu devo ter vendido pãozinho de queijo no....

E Niko o interrompe não deixando que ele termine de falar, nem que se afaste muito, colocando a mão em uma parte do corpo dele, uma das partes que Félix esperava fossem mencionadas ao invés do coração.

– Isso também não mudou, Félix. Não mudou nesses anos todos.

Félix se vira, olha pra Niko, que a essa altura não consegue mais conter o riso, e também ri porque entendeu a brincadeira. Mas Niko continua segurando uma das nádegas de Félix. Os dois param de rir e apenas se olham, os olhares já dizem tudo.

Félix se vira novamente na direção de Niko se aproximando mais dele, e o carneirinho então coloca a mão em outra parte do corpo do companheiro. Dessa vez, a parte da frente.

– Essa aqui também não mudou. – E eles ficam assim por alguns segundos enquanto trocam olhares, até Niko provocar falando com a voz bem rouca e sensual: - Mas olha, Félix... que coisa! Não é que está mudando... mudando de tamanho... aumentando bem agora na minha mão!

– Carneirinho...

– Félix...

...

Cerca de trinta minutos depois, Niko toma a iniciativa de levantar da cama.

– Vamos pro chuveiro, anda! Eu ainda quero fazer o café pra nós com calma. Depois chegam os meninos e as empregadas. Vem!

No banheiro os dois dividem o amplo chuveiro, como quase sempre fizeram. Niko é mais rápido e quando abre a porta do box para sair, Félix tenta segurá-lo pelo braço: – Ei... calma, Carneirinho... parece que vai apagar o incêndio de Roma! Fica mais um pouquinho.

– Félix, agora não... eu vou fazer um café da manhã pra nós... você não tem noção! Termina seu banho, amor. Depois vem direto pra cozinha, tá?

– O meu banho vai ser rápido.

– Vai ser rápido? – Niko diz do lado de fora do box enquanto se enxuga – Ainda vai ser? Quantos minutos mais você precisa, porque já está aí um bom tempo, já não deu pra lavar tudo?

– Ihh... lá vem o controlador das águas de Angra! Eu devo ter lavado mesmo minhas cuecas na manjedoura pra ter alguem controlando a duração do meu banho.

– Não estou controlando nada, estou como sempre lembrando porque se deixar o senhor fica aí até o apocalipse, como você mesmo gosta de falar.

– béé... bééé... béééé... – Felix provoca de dentro do box, com a água aberta ele continua o longo banho quente.

Niko vai até o closet, escolhe uma roupa, se veste e volta ao banheiro onde o banho de Félix continua.

– Já estou até vestido e você continua aí?

– Vai Niko, vai fazer o café, eu já vou! – Félix perde a paciência e fala elevando a voz: - Pelas contas do Rosário, vai logo!

– Eu vou mesmo!

– Só fala que vai, mas fica aí. Vai, criatura!

– Estou indo... seu... seu mandão! – Niko sai batendo a porta. Exatos cinco segundos depois ele abre a mesma porta e coloca a cabeça para dentro do banheiro com um enorme sorriso no rosto.

– Psiu! Eu amo você!

Félix não contém o riso mas se finge indignado, abre a porta do box e joga água na direção dele: - Vai logo, vai! Béé... bééé... béééé!

E Niko fecha novamente a porta do banheiro, dessa vez sorrindo e sem bater, a tempo de ouvir ainda lá de dentro Félix gritar:

– Eu te amo! – E finalmente ele termina o banho fechando a água.

Eles viviam assim, entre briguinhas e provocações, mas nada era sério. Era a maneira de brincar um com o outro. Com o tempo um adquiriu alguns hábitos e jeitos do outro, como acontece com a maioria dos casais que vivem juntos por muitos anos. Félix havia se tornado mais doce, romântico e menos egoísta. Niko ficou um pouco mais crítico, controlador e menos ingênuo.

Félix se veste e chega na cozinha para encontrar a mesa de café da manhã que Niko havia preparado.

– O que é isso, Carneirinho?

– Nosso café da manhã especial. O primeiro do resto de nossas vidas!

– Sim, mas... por falar em resto... cadê o resto das coisas? Estou aqui quicando de curiosidade, você disse que ia ser um café especial, cadê?

– Ué Félix, está tudo aí: granola, yogurte desnatado, mamão e algumas torradas integrais. E fiz chá também, pra variar. Não está linda a mesa? Eu compensei a falta das coisas com essas flores lindas.

– As flores são para comer, também? Diz que sim, porque já estou com mais fome só de olhar esse pingo de comida. Cadê o queijo, os frios, aqueles pães, a sua geleia, nosso suco, os biscoitinhos que eu amo...?

– Félix, nós combinamos que agora vamos comer de maneira mais saudável lembra? Desde seu aniversário de setenta anos a gente vem adiando isso... e o médico falou que você...

Félix não deixa Niko terminar de falar. Até hoje ele continua querendo fazer as coisas ao seu jeito e tem o hábito de ficar no controle da situação. Ele abre a geladeira enquanto protesta:

– Que médico, Niko... esses médicos não sabem nada! – Ele coloca em cima da mesa um recipiente com queijo, outro com frios, manteiga, geleia e o que restou da sobremesa da noite anterior. Niko observa aflito.

– Um desses médicos é seu próprio filho, Félix! Jayme falou que você precisa reduzir o açúcar, o álcool... como assim você vai comer doce no café da manhã? Eu não acredito, Félix!

– Niko, eu que não acredito. Durante anos eu protestei quanto às coisas que você comia e você nunca me ouviu. Agora é você que quer controlar o que eu como!? O apocalipse chegou de fato, agora é mesmo o apocalipse!

Já fazem alguns meses Niko tenta convencer Félix, sem sucesso, a mudar a dieta por causa de ordens médicas. Não conseguir convence-lo está deixando-o nervoso, e preocupado.

– Você que sempre controlou o que come pra manter a linha, agora não vai controlar pra manter a saúde?

– A culpa é sua... que me acostumou mal fazendo todas essas coisas gostosas... comidas e sobremesas maravilhosas esses anos todos.

– Félix! Como você... como você diz uma coisa dessas? E como que uma pessoa, que se auto proclama o mais inteligente de todos, não entende que é para o seu próprio bem fazer o que o médico mandou?

– Ai Niko, às vezes você me irrita! – Félix levanta a voz e fala demonstrando verdadeira falta de paciência: - Me deixa! Eu sou bem grandinho e sei me cuidar.

Ao que Niko responde em voz alta visivelmente aborrecido: - Félix, você quer que eu veja você comendo tudo isso que vai te fazer mal e faça a Cleópatra?

– Fazer o que? Quem?

Niko abaixa a cabeça tímido e triste e também abaixa a voz para falar: - A Cleópatra... a mais egípcia das egípcias. – Ele fala e suspira, como quem entrega os pontos após uma batalha perdida.

– Ai Niko, você fazendo piadas... é pra compensar? Porque agora sou eu quem morre de vontade de comer doces, é isso? – Félix comenta em tom irônico, enquanto começa a se servir de um enorme pedaço do que restou da sobremesa do jantar especial da noite passada. Mas se detém ao observar Niko, que continua cabisbaixo e em silêncio.

Então Félix, que durante todos esses anos nunca ficou indiferente ao menor sinal de tristeza do seu carneirinho, se dá conta que Niko está mesmo preocupado com ele e observa melhor a mesa que foi preparada com carinho para ajudá-lo na dieta. Niko não tem nenhum problema de saúde. É Félix quem precisa controlar o açúcar e diminuir o sal, gorduras e o álcool. Niko, se quisesse, comeria de tudo porque ele pode. Mas decidiu mudar a dieta junto com Félix para estimulá-lo e não deixar que ele caia em tentação. Félix então pensa melhor, se arrepende, afinal ele tem muitos neurônios sobrando e em pleno funcionamento até hoje, coloca de volta na geladeira o queijo, os frios, a manteiga e senta-se ao lado de Niko. Chega mais perto dele e ergue-lhe o queixo, levantando sua cabeça.

– Ei... Carneirinho... Me desculpe.

Niko não diz nada, apenas olha o companheiro em silêncio.

– Eu sei que você preparou essa mesa linda para mim... cheia de flores... com seu toque especial... e eu... eu sou eu, né... sou assim. Me exaltei sem razão, me desculpe!

Niko continua em silêncio. E Félix, como de hábito, faz uma piada para melhorar a situação.

– Tem coisas que o tempo não muda mesmo, não é? E até hoje eu não fiz aquele cartaz...

Finalmente Niko esboça um pequeno sorriso. Félix se sente um pouco aliviado, ao mesmo tempo continua envergonhado e arrependido. E insiste:

– Me desculpe, Carneirinho.

Após respirar fundo, Niko começa a falar: - Félix, eu só faço isso por que amo você e quero você por muito mais tempo ainda perto de mim.

– Eu sei, eu sei. Você sempre me colocando nos eixos... since dois mil e treze!

– Eu já disse, é porque eu te amo, mais do que tudo.

Quem não diz nada agora é Félix, que apenas ouve e se emociona. Niko nunca desistiu dele, desde quando ele nem sabia o que queria ou quem era. Foi Niko quem mudou sua vida o ajudando a retirar as capas que escondiam o Félix sensível e bom. Até hoje é Niko quem o traz de volta quando ele mergulha em lembranças não tão boas e remói o passado ou quando ele, em raros momentos, como há poucos minutos, revive o velho Félix mimado e impetuoso.

– Eu não vivo sem você, Félix. Cuidar de você é o mesmo que cuidar de mim. Para mim, nós somos uma coisa só. Eu me preocupo com você, eu não quero te ver doente. Na nossa idade nós precisamos nos cuidar mais. – Niko dá um longo suspiro antes de falar:- Posso te pedir uma coisa?

– Quantas você quiser, Carneirinho.

– Faz isso por mim? Se você me ama, faz isso por mim. Não me deixa sozinho, se cuida pra continuar comigo, por favor?

Félix não diz nada, apenas faz um sinal afirmativo com a cabeça enquanto Niko pede que ele coloque o resto das coisas de volta na geladeira, como a sobremesa da noite anterior e a geleia.

– Depois do almoço, você come um pedaço de doce como sobremesa, Félix. Vamos tomar um café da manhã bem saudável para compensar, tá? Já fiz o jantar ontem com tudo que você gosta. Tem que haver equilíbrio, amor.

– Tá bom Niko... tá bom, senhor Nicolas Khoury... eu vou guardar esse doce maravilhoso... pelas madeixas de Sansão, vou ficar morrendo de vontade... Só vou deixar a geleia na mesa pra você. - Félix levanta, pega a travessa da sobremesa e vai em direção à geladeira.

– Senhor Félix Corona, guarda também a geleia, por favor?

– Eu não vou comer, Carneirinho, fique tranquilo, estou deixando aí pra você.

– Não Félix, eu não vou comer. Pode guardar.

– Mas Niko, você não vai sentir falta da sua geleia?! Você não precisa de dieta, você pode comer.

– Mas eu não quero, Félix. Vou comer o que você vai comer. Assim você não cai em tentação. Eu vou te ajudar com a sua dieta. – Niko fala isso sorrindo para Félix, com o mesmo sorriso de anos atrás quando ele disse que era seu melhor amigo e o ajudaria a reorganizar sua vida. Esta aí a prova de que há coisas que não mudam com o tempo.

– Ai, Niko... porque você é sempre tão bom pra mim?

– Eu me desdobro. Você merece... náo é, Félix?

Mas outras mudam. De fato, um absorveu jeitos, gestos e manias do outro. Era como se eles fossem, de verdade, um só, mas separados em duas partes. Como metades de uma coisa só, ficavam cada vez mais parecidos um com o outro. Ao mesmo tempo que se completavam nas suas diferenças.

Após o café, Félix ajuda Niko a arrumar a cozinha e depois vai em direção à sala, onde se detém observando uma das prateleiras que apoia diversos porta-retratos com fotos antigas da família.

Niko olha o relógio e se preocupa, já está passando da hora que Fabrício disse que estaria lá.

Continua...


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo os filhos chegam e os netos também. A festa para comemorar o Final de Semana do Dias dos Pais vai começar.



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