O retorno do menino do espaço escrita por Celso Innocente


Capítulo 22
Cão que ladra não morde.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/537573/chapter/22

Apesar destes pequenos desentendimentos no começo do ano letivo, no mais, tudo correu muito bem. Tornara-me amigo de todos e era considerado assim, um gênio de inteligência e por outro lado, uma mascotinho frágil da classe. Todos tinham muito zelo por mim, querendo me proteger de tudo e de todos.

O fato de uma longa viagem espacial ter-me tornado um garoto especial, foi aos poucos sendo esquecido e quase ninguém mais entrava nesse assunto, quando me viam ou vinham falar comigo. Ninguém da NASA, jamais veio me procurar. Nem mesmo um único jornalista abordava mais este assunto. Continuava sendo especial, não por ter viajado no espaço, mas por ter parado no tempo do crescimento físico ou envelhecimento do metabolismo.

©©©

Estávamos já no final do mês de Março; eu já teria completado dezoito anos de idade e os dias letivos seguiam sem muitas novidades. Porém, a professora Rosa, de Mate-mática, resolveu nos mandar fazer um trabalho, valendo dois pontos, para ser somado à nota do primeiro bimestre escolar.

— Quero que vocês se reúnam em grupinhos de quatro ou cinco e façam uma atividade juntos, tipo testes de que-i[1].

— O que é isso? — Questionou duvidoso Victor.

— Vou explicar — se dirigiu ao quadro a mestra, escrevendo um breve exercício:

Complete com os numerais que estão faltando:

1 – 2 - .... – 8 – 16 - ..... 64

— Quem sabe completar?

Vários alunos levantaram o braço e ela pediu:

— Responda você, Victor.

— O quatro e o trinta e dois.

— Muito bem! Todos conseguiram enxergar isto?

Já que não houve dúvidas, ela continuou:

— Cada grupinho fará um trabalho assim, criando dez exercícios diferentes. As respostas deverão estar em folha separada.

— Meu grupo vai ser eu, o Marcio, o Daniel e o Mateus — se prontificou o complicado Evandro.

Pelo menos não me adotou.

— Não quero ser do grupo de vocês! — Negou o menorzinho da turma, depois de mim, Mateus.

— Que isso Mateus! — Resmungou Marcio — Tá excomungando seus colegas?

Percebi que os aproveitadores da turma, me deixariam em paz, mas que explorariam outro mascotinho.

Mateus, branco, de cabelos loiros, cortado em estilo curto, apesar de ter completado treze anos de idade, assim como eu, não parecia ter mais do que seus nove e por isso mesmo, recebeu o apelido de “Grilo”.

Ao perceber a imposição dos tipos exploradores, contra indefeso, acho que nem pensei direito e me ofereci.

— Eu também serei do grupo de Mateus!

— Ninguém convidou você pro nosso grupo! — Negou Daniel.

— Eu não quero estar nesse grupo — reclamou Mateus.

— Você não me quer no grupo, Mateus? — Insisti.

— Você eu quero! Não quero ser do grupo do Evandro.

— Já está combinado — se prontificou Daniel. — Seremos nós quatro, mais o oferecido do Regis. Espero que ele não crie problemas.

— Chega meninos! — Pediu a mestra — O grupo vocês escolhem depois. O trabalho é pra ser entregue amanhã. Portanto, tem que ser feito ainda hoje.

Ao final do período escolar daquele dia, na saída do portão, barrei os quatro companheiros, perguntando:

— A que horas vamos fazer nosso trabalho?

— Às nove horas da noite, em minha casa — se prontificou Daniel.

— Até parece que minha mãe me deixa sair de casa neste horário! — Reclamou (com razão) o pequeno Mateus.

— O bebê tem medo de escuro? — Caçoou Evandro.

— Nem minha mãe me deixa sair de casa neste horário! — Neguei sério — E mesmo que ela deixasse eu não sairia.

— Por quê? — Riu Evandro — Nessa hora os bebezi-nhos precisam vestir fraldas?

— Podemos fazer o trabalho às três horas, em minha casa — ofereci.

— Ninguém vai querer ir à sua casa! — Negou Marcio — Jardim Brasília! Isso não é morar. É esconder.

— Podemos fazer em casa — ofereceu Mateus. — Eu moro aqui perto, na mesma rua da escola (Minas Gerais).

©©©

Cinco minutos antes das três horas daquela tarde, chamei no portão de uma bonita casa, construída no alto de um terreno e pintada nas cores azul (por fora) e gelo (por dentro). O mesmo coleguinha de escola me atendeu, abrin-do o portão de ferro e me convidando a entrar.

Arrastei minha bicicleta de tamanho médio para seu quintal, subi cinco degraus de escadas e adentrei ao interior de sua sala, onde fui recebido com um beijo carinhoso na face, por uma linda e jovem mulher, branca, de cabelos castanhos longos e belo sorriso.

Dois minutos depois, já estávamos ajoelhados no tapete daquela sala, ao lado de uma mesinha de centro, feita de mogno, dando início aos rascunhos de nosso trabalho, proposto pela professorinha Rosa.

— Será que os meninos virão? — Perguntou-me Mateus.

— Acho que não.

— Colocaremos os nomes deles?

— Claro que não! — Neguei com toda certeza.

E assim, de um jeito até divertido, elaboramos, rascunhamos, rabiscamos, refizemos e depois de decidido, paramos para um gostoso café da tarde, com bolo de laranja, pão caseiro com manteiga e suco de goiaba vermelha, preparado carinhosamente por dona Christina, (a mãe de meu parceiro de trabalho) na belíssima copa daquela casa.

Depois, voltando à sala, eu mesmo, por ter a letra considerada menos feia, passei a limpo, o seguinte trabalho:

Às dezessete horas, com nossa missão cumprida, sem a ajuda dos demais companheiros de equipe e com o dever em posse de Mateus, retornei à minha casa, distante quase três quilômetros dali.

No início da primeira aula do dia seguinte, assim que concluiu a chamada, dona Rosa pediu:

— Vamos recolher os trabalhos. Todas as equipes fizeram?

Um a um, os membros das equipes foram entregan-do seus trabalhos e eu tive uma pequena surpresa, quando, Evandro, com sorriso besta na cara, se levantou e levou um trabalho pronto para a mestra.

Tudo bem. Concordei comigo mesmo. Nada contra ele ter mudado de ideia e feito seu próprio trabalho, sem a nossa ajuda.

O problema foi que Mateus nem se levantou de seu lugar.

Fiz gestos para ele, que mostrou um sinal de que os grandalhões teriam se apoderado de nosso trabalho e acrescentado seus nomes à ele.

Baixinho encardido poderia ser eu.

Não era justo e eu não aceitaria.

Assim que todos entregaram seus trabalhos, dona Rosa ainda perguntou:

— Todos entregaram?

Concordo que um pouco assustado, com o coração descompassado, levantei a mão direita:

— O que houve Regis? — Questionou-me ela.

— Nosso trabalho está com problemas.

— Como assim? Não dá mais pra corrigir não!

— Posso ver ele?

— Venha cá.

Me aproximei e ela mesmo, procurando entre todos, o encontrou dizendo:

— Regis, Mateus, Evandro, Marcio e Daniel. É este?

Trabalho de Matemática: Respostas.

— Este trabalho foi feito apenas por mim e Mateus.

— E por que consta o nome dos demais?

— Não foi feito por eles — neguei muito nervoso — Quero que tire o nome deles.

— O Regis está ficando biruta, professora — interferiu Evandro — É claro que nós ajudamos no trabalho! Não tá vendo nossos nomes?

— Aliás — a alegou. — As únicas letras de vocês aqui, estão nos nomes. No resto, só vejo mesmo é a letra de Regis.

— Eu fiz o rascunho com Mateus — expliquei. — Na hora de passar a limpo, decidimos que eu escreveria.

— E por que o nome dos outros estão aqui?

— O Mateus deve saber.

— Por que Mateus? — Perguntou-lhe a mestra.

O menino amedrontado, apenas balançou os ombros.

— Está decidido — afirmou a mestra, rabiscando três nomes daquele trabalho. — Marcio, Evandro e Daniel, se quiserem, ainda terão outra chance de fazer um trabalho e me entregarem na aula de amanhã.

Ao final daquele dia letivo, com medo de confusão, na saída das aulas, fingi precisar ir ao banheiro e só sai para a rua, quando todos praticamente já teriam ido embora, restando apenas Paulinho, me esperando, sentado em sua bicicleta.

— Ei mano! — gritou ele ao me ver aproximar — Vai morar na escola?

©©©

Já em sala de aulas, na manhã seguinte, percebi que algo estava errado, observando Mateus cabisbaixo, sentado quietinho em seu lugar, na quarta fila, primeira cadeira. Eu, sentando-me na segunda fila, segunda cadeira, tentei perguntar-lhe o que se passara, obtendo a resposta de Lúcia:

— O Evandro cercou e maltratou ele na entrada da escola, baixando sua calça, na frente de todo mundo.

Se eu detestava me expor despido, tinha certeza de que todas as crianças detestam.

Novamente meu sangue de baixinho encardido, chegou a mil graus dentro das finas veias. Olhei furioso para o grandalhão, que de posse de um trabalho de matemática, que possivelmente teria feito na tarde anterior, mostrava um sorriso idiota e percebendo minha ira, caçoou:

— Acho que tá na hora das pessoas se colocarem em seus lugares.

Abri minha bolsa, apanhei minha garrafinha de boca larga, cheia de achocolatado quase quente (sei que é irrelevante), abri-a e me dirigi ao grandalhão, que se distraíra e sem pensar, dominado por desejo de justiça e ódio, despejei todo aquele líquido marrom em sua cabeça, espalhando por toda sua roupa, carteira e trabalho a ser entregue.

O idiota deu um grito, saltou para trás e toda a sala de aula, inclusive seus dois comparsas, riram de tal atitude corajosa, proporcionada por um pivetinho como eu.

Voltei para minha cadeira, enquanto o professor Valter adentrava à sala e ao ver tal cena, perguntou:

— O que houve aqui?

— Regis — insinuou o grandão, com a cara faiscando de ódio. — considere-se um moleque morto!

©©©

Como diz um ditado popular, cão que ladra não mor-de, portanto, apesar de Evandro tentar me cercar sozinho por vários dias seguidos, sem, contudo conseguir, pois eu sempre me protegia debaixo das saias (ou calças) de meu irmão, os dias passaram normalmente, sem que eles voltassem a interferir na vidinha dos menores, que de certa forma, eram mesmo protegidos pelos demais colegas de boa índole.

Ao final daquele ano letivo, concluí a sétima série com ótimas notas, estando entre os primeiros alunos da sala de aula.

No ano seguinte, não houve maiores problemas. Cursei a oitava série na mesma escola, com praticamente os mesmos professores e mesmos colegas de sala. Todos os que estavam na sétima série foram aprovados e com isto, tivemos apenas o acréscimo de dois novos colegas, repetentes da oitava série anterior: Jean, que reprovou por ter ficado doente e abandonado a escola no mês de Junho passado e Renato, que teve problemas devido à separação de seus pais e acabou desanimado, deixando de ser um dos primeiros alunos de classe, acabando o ano em último lugar.

Neste ano, também não houve maiores problemas. Minha vida seguia na mesma rotina: escola, dormir após o almoço, ajudar um pouco mamãe, andar de bicicletas, brincar na rua próximo de casa com Mateus (não o Grilo) e Leonardo, que eram dois amiguinhos de meu tamanho e visitar Beth, sempre. Continuava apaixonado por ela e era retribuído com o mesmo carinho especial. Mas o fato é que ela já completara dezenove anos e eu continuava com a mesma cara de menininho, de sempre.

Nossa formatura de oitava série houve até colação de graus, festa e baile. Fui na colação de graus, mas não na festa. O que um menininho de nove anos de idade, iria fazer em um baile de formaturas?

[1] Q.I – Quociente de inteligência ou nível mental.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O retorno do menino do espaço" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.