Se ela não acordar, você está muito ferrado cara!

Calma, calma...

Ithuriel, ela vai acordar né?

Ela irá acordar.

Ah, minha filha. Volte para nós...

Boneca...acorde

Vamos senhorita. Acorde.

Abro os olhos e os pisco repentinamente. Estou em um quarto e não estou sozinha. Ithuriel está sentado numa cadeira próxima à cama em que eu estou deitada. Ele dorme tranquilamente. Minhas roupas já não são as mesmas do "hospital", e eu não me sinto como se tivesse levado uma surra. Me verifico, procurando por alguma cicatriz ou algum machucado em processo de cicatrização. É como se nada me tivesse acontecido. Realmente, Julieta não devia ter me vestido com um short tão curto. Sorrio ao pensar nela. Eu tinha certeza de que estava na casa da Luz. Porém, como Ithuriel conseguiu entrar? Minha blusa era de botões e xadrez. Procurei alguma familiaridade com aquele quarto mas estava muito escuro. A única luz vinha da janela. A lua iluminava o quarto o suficiente para alguém que, como eu, não tinha visão noturna. Ithuriel estaria confortável ali, sentado naquela cadeira? Levantei lenta e silenciosamente, peguei a coberta e o cobri. Ele suspirou e se ajeitou. Temi que fosse acordar, mas isso não aconteceu. Era engraçado vê-lo ali, com toda sua altura, numa cadeira relativamente pequena para ele. Não deixei de sorrir. Eu tinha criado um sentimento em relação a ele. Um sentimento forte e caloroso, algo bem profundo. Esse anjo havia feito tanto por mim. Não restava dúvida de que ele sacrificou sua vida de "médico" para me ajudar. Mas por que? Teria ele também os mesmos sentimentos que eu?

Me inclinei sobre ele e o beijei na testa, a pele estava fria contra meus lábios. Acariciei sua bochecha e choraminguei baixinho. Nas pontas dos pés, sai do quarto. Mas que saco! Qual é a dos corredores? Os corredores estão me perseguindo, não é possível. Ambos os lados tinham uma saída iluminada. Optei ir para direita e não me arrependi. A saída revelou uma sala do tamanho da minha antiga casa. E parecia ser das antigas. As paredes eram cobertas por desenhos de querubins e anjos enormes, havia um lustre iluminando a grande sala e uma mesa no meio da sala. Na mesa estavam Pedro, papai, Julieta, Luz e mais três pessoas que eu não reconheci. O primeiro a me ver foi Pedro, que correu em minha direção no mesmo segundo em que me viu. Me joguei em seus braços e enterrei meu rosto no seu peito. Ele cheirava como sempre, baseado e sabonete comum. Estremeci e comecei a chorar. Os berros de Julieta logo foram ouvidos e eu chorei mais ainda. Senti seu abraço pelas costas e me virei para abraçá-la. Me surpreendi ao ver que ela também chorava. Papai também veio me abraçar, e Luz também. Com o rosto molhado e o coração transbordando de alegria por vê-los, garanti-lhes que estava bem. Todo mundo então, de imediato, começou a falar junto. Fizeram perguntas, sugeriram coisas, mostraram suas revoltas e preocupações.

–Gente, gente calma. Estou bem é isso que importa!- Falei sorrindo.- Estou com fome pessoal.

Me arrastaram corredor adentro e me enfiaram no mesmo quarto que estava antes. Surpresa e pânico me tomaram ao ver que Ithuriel não se encontrava mais lá. Ele fugiu? Para onde foi? Será que saiu para me procurar? Tentei não demonstrar o que estava sentindo e pelo menos consegui. Olhei para a coberta cobrindo a cadeira. Eu não estava louca, estava? Eu o vi. Toquei ele. Me sentaram na cama e acenderam a luz. Ah sim. O quarto era branco e preto. Havia um frigobar perto do armário. Um criado mudo. Pedro tirou do frigobar uma garrafa com um conteúdo rosado.

–Substitui fome.

–Ata.

Abri a garrafa e bebi o líquido rosa. Tinha um gosto bom e meu estômago ronronou em agradecimento. Engoli até a última gota.

–Obrigada.

–De nada.

Meus olhos pousaram novamente na cadeira. Eu precisava saber onde estava Ithuriel. Se Miguel o pegasse...

–Pedro.-Ele me olhou.-Onde está Ithuriel?

Eu sabia que ele sabia quem era Ithuriel e ai dele se fingisse que não sabia.

–Aquele anjo foi embora.-Ele respondeu em voz baixa.

–O que?

Aquilo era mentira. Não, ele não poderia ter ido embora. Olhei em volta em busca de ajuda e captei o olhar distante de todos.

–Ele se foi. Levaram ele.-Luz disse, como se estivesse incomodada.

–Mentira! Ele estava aqui! Estava aqui! Quando eu acordei, ele estava sentado ali. E o cobri e o...-beijei-toquei.

–Alice...-Pedro começou.

–Não me venha com "Alice"!

Estava fora de mim. Passei por eles e sai do quarto. Ao invés de ir para a direita, fui para a esquerda. Ignorei os gritos atrás de mim e corri. Corri. Corri até o final do corredor e dei de cara com um tipo de palco. Não tinha cadeiras e nem cortinas. Tinha apenas uma pessoa no palco. Era alto e vestia um sobretudo preto. Corri em direção a ele quase certa de quem poderia ser. Meus passos ecoaram no chão fazendo um barulho constante. A pessoa virou-se e sua aparência me fez parar. Ithuriel estava sangrando. Violentamente. Ele me olhou com um tipo de afeto e caiu de joelhos. Corri em direção a ele e pulei em cima do palco me ajoelhando na sua frente. Ele sorriu sem mostrar os dentes. Toquei seu rosto no momento em que seu corpo caiu em cima de mim. O ajeitei no meu colo já em prantos com aquela cena.

–Quem fez isso com você?

–Mi...Miguel.-Sua voz falhou.

Deus me perdoe por isso, mas eu irei matá-lo! Um som familiar irrompeu no palco. Olhei para cima e vi três pares de asas preparando-se para pousar. Uma delas reconheci como a de Miguel e minha primeira reação foi xingá-lo. Algo profundo irrompeu dentro de mim, como uma energia que nunca fora utilizada. Senti uma adrenalina tomar conta do meu corpo. Meus olhos faiscaram. Minhas asas me levantaram do chão e eu levantei minha mão fechada em direção ao rosto de Miguel. Uma fúria repentina tomava conta do meu ser e quando minha mão atingiu o rosto de Miguel ele voou para cima e eu o segui. Chegando mais perto acertei-o novamente. E no meu terceiro soco, não o jogou para cima, mas para baixo. O soco foi mais forte que os outros e Miguel desceu desmaiado em uma velocidade anormal. Seu corpo atingiu o solo fazendo um "Bum!'' e desaparecendo. Eu voltei para onde Ithuriel estava e constatei que os outros anjos tinham sumido. Ithuriel era um corpo sem vida com uma poça de sangue ao seu redor. A energia ainda pulsava dentro de mim. Pousei ao lado de Ithuriel e derramei minhas lágrimas de dor. A energia passou e deu lugar à um vazio enorme no meu coração. Desolada, deitei minha cabeça no seu ombro e desejei que ele voltasse a vida. Desejei suas mãos geladas, desejei seu olhar de determinação, desejei sua preocupação, desejei seus modos, desejei sua voz me chamando de senhorita. Desejei tudo isso. E quando suas mãos tocaram minhas costas, e eu achei que fosse apenas uma ilusão, algo brilhou em volta de nós, mas eu nem prestei atenção. Estava olhando para Ithuriel que me encarava com paz nos olhos e, se não me engano, um pouco de calor sentimental. Ele está...vivo? Como assim? Eu deitei minha cabeça no seu peito e ele não respirava. Eu o ressuscitei? Não. Eu não fiz isso...

–Ithuriel? Você está...vivo?

Ele sorriu e acariciou minhas costas, o rosto todo iluminado.

–Vivo como nunca estive antes.