Serpentarius escrita por Stormy Raven


Capítulo 8
0.7 - Isao-Apoio


Notas iniciais do capítulo

"Isao, você está preparado para receber o legado da família Koyanagi?"



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"0.7"
Isao-Apoio

Aqueles dois dias não foram nada fáceis para Isao. Sua rotina transformou-se drasticamente de uma simples vida colegial a um treinamento de guerra. Quem diria que logo depois de sair do hospital o garoto teria de passar por algo assim...

Primeiro, logo ao amanhecer do dia posterior às 'revelações', Isao teve de limpar todo o dojô Koyanagi - que há tempos não recebia uma faxina digna. Depois do almoço, uma série de exercícios aguardavam o pseudo-Apoio - depois que ele lavasse a louça. Durante toda a tarde Iwao deu instruções e ensinou exercícios básicos ao neto - coisas como pular corda, flexões e similares. Infelizmente eles não tinham tempo para um treinamento completo de ninjutsu Koyanagi - afinal, grande parte das técnicas ancestrais do clã haviam há muito sido esquecidas, e a gravidade da situação exigia resultados mais imediatos. Optando por melhorar o condicionamento físico geral, o objetivo de Isao era melhorar suas chances de sobrevivência em seus futuros combates; não tornar-se um mestre marcial da noite para o dia.

O grande problema, porém, era localizar a Guardiã de Apoio Yomi pois, sem a ajuda dela, Isao não seria capaz de localizar youkais - e nem lutar de modo eficiente, já que condicionamento físico não aparece da noite para o dia. Encontrar Yomi era vital para que o plano desse certo - mas como encontrar alguém que consegue escapar tão bem da polícia?

- Você tem certeza de que ela é confiável?

- Sim. Ela salvou minha vida, afinal.

No terceiro dia Isao fora poupado dos exercícios um pouco mais cedo que o usual, pois retornaria às aulas no dia seguinte - e o pior de tudo: teria início o período de provas, colocando mais um peso nos ombros do azarado herdeiro Koyanagi...

- Você disse que o tal detetive a tem como suspeita de assassinatos. É compreensível; a polícia tem de achar uma explicação para as mortes, culpando a única pessoa viva nas cenas dos crimes. Youkais não deixam rastro após a morte, nós sabemos disso mas a polícia não; essa coitada acaba levando a culpa por todos aqueles que não consegue salvar. Como planeja encontrá-la? E mais: como encontrá-la e não arranjar problemas com a polícia?

O jantar saíra mais tarde naquela noite pois Iwao ocupara toda o dia com telefonemas e exames em velhas anotações, atrasando seus afazeres domésticos. O idoso parecia ser o mais animado da dupla em relação à situação em que estavam...

- Eu realmente não sei. Vou prestar atenção nos arredores do colégio e pedir uma ajuda ao Shinji. Ele tem contatos que... Sabem o que a polícia não sabe.

- Você vai contar tudo a ele?

Aquela era uma dúvida recorrente na cabeça de Isao: abrir ou não o jogo para Shinji? Qual seria a reação do amigo ao tomar conhecimento de uma guerra milenar entre humanos e seres tidos como mitológicos? E o pior: como explicar seu envolvimento nessa guerra?

"Não vai ser nada fácil..."

- Eu preciso fazer isso. Não me sinto nada bem escondendo um assunto tão sério dele.

- O apoio da Babel seria bem vindo.

Isao estremeceu, e seu avô tratou de esclarecer:

- Não faça essa cara, eu tenho conhecimento sobre suas amizades - por mais que não as aprove. Essas gangues sabem o que acontece pela cidade, como você mesmo disse; poderia se aproveitar disso. Tenho certeza de que seu amigo acreditará em você se souber como explicar.

- Vou tentar contatá-lo amanhã...

- Há mais alguém que precisa saber?

- Não. É melhor que mais ninguém saiba, ou posso acabar arrastando mais gente para o perigo.

Iwao sorriu, contente com a afirmação que acabara de ouvir. Isao estava começando a pensar de modo estratégico, focando-se nos problemas mais urgentes e de resolução imediata. Não iria confundir o neto com questões como 'você já matou algum animal' ou 'o que fará se os Guardiões não o receberem como espera?'. Matar seria difícil mesmo com anos de preparação psicológica - será uma lição que o garoto irá aprender à duras penas, e não havia nada que pudessem fazer sobre isso. Contatar os outros Guardiões estava fora de questão na atual situação: acima de tudo, o clã havia sido banido por algum motivo forte o suficiente para que nem mesmo o próprio clã preservasse memória das razões que levaram a tal fato, a imprudência poderia custar caro a Isao. No pior cenário possível, ele poderia arranjar ainda mais inimigos ao invés de aliados... Havia, porém, uma questão que infelizmente Iwao teria de levantar:

- E o que fará sobre seus estudos? - a frase saiu acompanhada de um pesaroso suspiro.

- Bem... Eu vou tentar. Sei que não vou conseguir um bom resultado, mas... É melhor ao menos tentar. Além disso, não posso abandonar a escola assim, de repente, ainda mais depois de tudo o que ojii-san fez para que eu continuasse a estudar.

O jovem estava bem inseguro nesse quesito, e mesmo se tentasse, não conseguiria disfarçar.

- Eu fiz você prometer reabrir o dojô justamente por causa disso. Perder um ano escolar é algo muito grave, atrasa a vida de modo irremediável. Você tem certeza absoluta de que é isso mesmo o que quer? Já pensou nas consequências? Meu coração dói ao perceber que você está seguindo o caminho que tanto penei para te afastar; tudo o que eu menos queria era que seguisse meus passos. Porém percebi ontem que não havia outro modo...

- Nunca estive tão certo sobre algo em minha vida.

Dessa vez não havia o menor traço de insegurança na voz e na expressão do garoto. Seus olhos brilharam com a chama da certeza pulsando em seu interior. O idoso suspirou novamente, fechando os olhos, e disse - mais para si mesmo do que para seu neto:

- É a sina de um Koyanagi... Não importa o que façamos, coisas ruins acontecem e nos arrastam sem misericórdia. Foi assim com meu avô, e com meu pai; com meu filho e agora com meu neto. É como uma maldição.

- Seu pai também...

Isao não sabia muito sobre a própria família pois simplesmente não gostava de perguntar sobre isso, sua dor já era grande o suficiente para com seus pais e ele não necessitava de mais histórias tristes sobre seus antepassados.

- Foi meu pai, seu bisavô, que reencontrou aquele baú escondido na parede do dojô. Meu avô o repreendeu severamente por isso, pois sabia que o passado não deveria ser trazido à tona. O irmão dele havia morrido quando os dois ainda eram jovens, e aparentemente havia uma ligação com o baú - que nunca mais fora mencionado na família. Por 'repreensão' entenda 'uma surra memorável'. Depois disso os dois nunca mais se falaram... Meu avô morreu de tuberculose pouco tempo depois. Meu pai sentia muita culpa por não ter feito as pazes com ele.

Mesmo não gostando de reviver o passado trágico da família, Isao decidiu não interromper: Iwao estava imerso em pura nostalgia, tão vívida que era quase possível tocá-la e senti-la.

- Anos mais tarde, meu pai acabou indo para a guerra, e nunca mais voltou. Não me lembro mais o nome da batalha em que ele morreu. Mamãe não quis expor as medalhas, o uniforme, nem mesmo uma foto; é como se as lembranças a machucassem fisicamente. Tivemos de vender quase tudo o que tínhamos para conseguir manter a casa. Foram anos difíceis... Mas conseguimos de algum modo. Mesmo estudando, eu não tinha muita ambição na vida; isso até conhecer Yuriko.

Yuriko, a avó de Isao, morrera 9 anos antes do nascimento deste em um acidente de automóvel. As poucas fotos presentes na morada dos Koyanagi eram em sua maioria dela, uma japonesa extremamente carismática e bela.

- Yuriko era... Incrível. Hisoka era seu maior tesouro, ela tinha tantos ciúmes que não me deixava carregá-lo nos primeiros meses dizendo que minhas mãos serviam apenas para machucar as pessoas, não para carregar bebês. Eu não a culpo, o dojô finalmente estava dando certo e eu passava a maior parte do tempo com meus aprendizes ou em torneios. Quando ela se foi, percebi o quanto fui distante, e me entreguei completamente à solidão.

O dojô Koyanagi ficou famoso não pelos prêmios que ganhara ou pelos alunos que ensinara, mas sim por subitamente fechar suas portas nos anos 80. A morte de Yuriko fora tão impactante na vida de Iwao que este acabou por se isolar socialmente por muito tempo, encerrando as atividades do dojô - que, no mesmo século, já havia sido fechado por causa da guerra.

- E depois disso tudo, aconteceu aquilo com seu pai. Ele era tão vivo, tão cheio de energia...

Essa era uma parte que Isao não queria ouvir.

- Eu sei que...

- Tome cuidado, meu neto, tome muito cuidado. Treine e dê o seu melhor. - O idoso inclinara-se para a frente, elevando a voz de modo repentino - Faça planos, e faça-os acontecer, aproveite o máximo que puder. Você não sabe quando a maldição irá te puxar até as profundezas!

O jovem, em um misto de surpresa e susto, apenas assentiu com a cabeça. O velho Koyanagi acalmou-se, levantando-se de modo cansado da cadeira - como se todos aqueles anos relembrados ali estivessem agora repousando sobre seus ombros, contrastando agressivamente com a vitalidade com que aquele corpo possuíra nos dois dias anteriores.

Isao lavou os pratos e guardou as sobras, apressando-se nessas tarefas. Quando terminou, encontrou o avô já deitado na cama, porém ainda acordado:

- Desculpe se o assustei. A memória de um velho pode ser tão forte e real como a madeira ou o concreto.

- Tudo bem, ojii-san. Você se esforçou demais, só isso. Uma boa noite de sono é o bastante para que se recupere.

Iwao sorriu, já relaxado, e fechou os olhos. Mas antes que Isao saísse do quarto, disse:

- Passei a tarde toda ligando para velhos conhecidos meus. Alguns deles já haviam morrido há algum tempo e eu nem mesmo sabia... Um deles vai mandar o neto até aqui com suprimentos para você. Ele era um armeiro brilhante; sua família, ao contrário da nossa, nunca deixou de exercer o ofício tradicional, passando-o de geração à geração. Mesmo nesses tempos onde um armeiro é praticamente inútil eles ainda forjam lâminas de qualidade. São dignos de confiança.

- Entendido. Boa noite ojii-san. E obrigado.

-~~*

- Perdão, senhora, mas... Sim, sim. Exatamente. Creio que fui impreciso nos termos usados...

Através de uma janela, dois espertos olhos observavam o médico andar de um lado a outro com o celular no ouvido. A noite estava mais escura que o habitual, contribuindo para atividades que envolviam discrição...

"Não está aqui."

Ágil como certo aracnídeo dos quadrinhos, a dona daqueles olhos desceu pelos pequenos apoios que a arquitetura do edifício oferecia, sem erros ou hesitação.

"O cheiro impregnou... Mas não está mais aqui."

Já no chão, a garota de negros cabelos seguiu por uma via sem muito movimento, guiada por seus instintos. Caminhou por alguns minutos e parou repentinamente em frente a uma banca de jornais.

"Aqui também... Por onde agora?"

E assim Yomi prosseguiu durante toda a noite, seguindo o tal 'cheiro' pela cidade.

"Por que é tão forte? Por que me é tão familiar? Quem é você, Apoio-Isao?"

-~~*

- E aí está o garanhão... Como foi a estada no hospital? Divertida?

- Olá, Shirogumi-senpai.

O cumprimento saíra da boca de Koyanagi com a animação com que o banshou merecia, ou seja, automático e arrastado.

- Você seria um dos assuntos mais 'quentes' do colégio hoje, Koyanagi-chan, se mortes não houvessem acontecido na feira. Temos gente morta, gente desaparecida, gente internada, desmaios... E um espertinho que tentou se divertir aonde não devia mas foi interrompido. Ah; eu queria ter visto a tal garota de cabelos negros com quem você foi encontrado, dizem por aí que a beleza dela era 'sobrenatural'...

- Prometo apresentá-la assim que puder, Shirogumi-senpai.

- Assim que encontrá-la, você quer dizer?

Akira assumira um tom sombrio, finalmente olhando diretamente para Isao.

- Como..

- Não há nada que aconteça deste lado de Tokyo que eu não saiba. Nada! Se quiser ajuda para encontrá-la... Obviamente isso terá um preço. - O sorriso de Yamashirogumi transbordava cinismo.

- Não é preciso. Ainda tenho meus truques e contatos, Shirogumi-senpai.

O valentão riu, aliviando o clima. Isao ficou em dúvida se seguia seu caminho ou ficava ali, levando a desconfortável conversa adiante, até que certa aluna passou pelos dois, resolvendo o impasse.

- Rigea-san!

Mas a mestiça o ignorou, seguindo seu caminho sem nem mesmo demonstrar que havia escutado. Akira continuou a rir, meneando a cabeça em sinal de aprovação, ao passo que Isao, entendendo o recado, o deixou ali e saiu apressado em busca de sua 'presa'.

- Uma princesa, uma sacerdotisa e uma guerreira... O pobre ninja conseguirá conquistar ao menos uma?

E voltou a rir.

-~~*

- Espere Rigea-san!

Ligea nem mesmo olhava para trás, apenas apressando o passo a cada clamor do jovem. Seu semblante não estava lá muito agradável... Finalmente alcançando-a, Isao começou a acompanhá-la com muita dificuldade, mas...

- Rigea-san! Por que não parou?

Um olhar de desprezo pelo canto dos olhos foi a resposta. Isao continuou a tentar acompanhá-la, mas as dores pelo corpo - causadas pelos exercícios nos últimos dias - acabaram por desencorajá-lo completamente. Estacou ao lado de um lixeira, apoiando-se na parede.

"Acho que ela ficou chateada com o que eu disse ontem. Como posso consertar essa situação sem revelar a verdade?"

Durante todo o período de aulas Isao tentou pensar em algum modo de remediar sua situação com a loira, o que acabou atrapalhando a já debilitada atenção do rapaz nos estudos. As provas no dia posterior seriam um desastre se ele continuasse nesse ritmo...

-~~*

Na saída do colégio Isao tentou encontrar Ligea, mas não obteve sucesso. Aparentemente não seria nada fácil reconquistar a confiança dela. Resolveu procurar Shinji: ele poderia ter alguma idéia sobre o assunto. Havia também a possibilidade de aquele ser um bom momento de abrir o jogo, livrando-o de ao menos uma de suas preocupações. Aliviado por não ver Yamashirogumi encostado ao portão, caminhou resoluto por este - mas foi violentamente puxado pelo braço assim que colocou um dos pés na calçada...

- Hey! O que... Yomi?

Bem na sua frente estava uma compenetrada Yomi, puxando seu braço com insistência, querendo retirá-lo dali o mais rápido possível. Ela se vestia exatamente como antes: o mesmo uniforme colegial, a mesma katana...

- Rápido, venha comigo. Esse lugar fede a youki.

Isao achou melhor segui-la sem fazer mais perguntas, afinal, fora um golpe de sorte 'encontrá-la'.

"Por 'aquele lugar' ela se refere ao colégio? Há youkais no colégio?"

A guerreira puxou Isao por duas quadras até contentar-se com um beco discreto o suficiente para que conversassem sem empecilhos. Isao ainda não havia aberto a boca, e tentava entender o modo de agir dela...

- Estamos seguros aqui.

- Seguros de quê?

Lançando um último olhar para a movimentada rua perpendicular à viela, ela respondeu:

- Um homem está te vigiando. Já o vi antes. Um intrometido. E há youki no lugar onde você estava. Muito youki, mais que antes.

"Deve ser o detetive... E devem haver mais youkais infiltrados na escola."

Sentando-se displicentemente em cima de um contâiner de lixo, Yomi foi direto ao ponto:

- Eu estava te procurando desde ontem, garoto. Agora me explique essa história de Guardião de Apoio.

Isao, tentando não prestar atenção ao fato de que ela estava sentada de pernas abertas quase na altura de seus olhos, começou a falar com embaraço:

- Bem... Meu nome é Isao Koyanagi, e descobri há uns dias atrás que minha família tradicionalmente fazia parte dos Guardiões de Apoio, e que antigamente lutávamos contra youkais.

"Falando desse modo parece até brincadeira."

- Fazia parte?

- A família foi banida de suas funções por uma razão que desconheço.

Tão familiar...

- Como descobriu tudo isso?

- Meu avô me contou. Já faz tempo que sei disso, mas eu não acreditava.

- Você tinha me dito que era pesquisador do oculto...

- Desculpe por mentir. Eu não sabia se podia confiar em você.

A garota esboçou um meio-sorriso no canto da boca ao ouvir a última frase.

- Seu instinto é bom. Mas suas ações são desleixadas. Por quê lutou?

- Para me defender, qualquer um faria o que eu fiz.

- Não. A maioria foge. Por quê lutou?

Ele já percebera aonde ela queria chegar...

- Porque sou... Guardião de Apoio?

- Não. Ainda não, Isao-Apoio. Mas quase.

O garoto achou graça no modo com que ela o chamou, mas não comentou nada. Concordou com a cabeça, continuando:

- Realmente. Comecei a treinar há poucos dias, apesar de ter algumas noções de ninjutsu da época em que o dojô era aberto. Mas o que eu mais uso mesmo é a briga feia das ruas; foi com isso que aprendi a me defender pra valer.

Yomi o examinava, curiosa - o que deixava Isao pouco à vontade. Ela sentia uma familiaridade estranha no rapaz, uma sensação até então desconhecida para ela. Pensou que deveria ter vindo a Tokyo mais vezes ao invés de se esconder a maior parte do tempo em Kyoto. Além disso, achava a voz dele agradável.

- Dojô?

- Meu avô ensinava artes marciais no dojô da família, mas está muito velho para continuar.

- Você tem armas, Isao-Apoio?

- Sim, mas ainda não aprendi a usá-las.

- Deveria. Youkais são poderosos demais para que você vença apenas socando eles.

Isao riu, sem graça, e arriscou inverter a situação, perguntando:

- Você conhece algum Guardião?

- Não.

- E o resto do Apoio?

- Também não. Sempre fui sozinha depois que minha Mestra morreu.

Aquilo era inesperado, e fazia Isao repensar em tudo o que sabia sobre Guardiões e o Apoio. Supostamente eles deveriam estar todos juntos, lutando e protegendo a retaguarda uns dos outros. Talvez algo grave havia acontecido para que não se reunissem mais, ou pior: talvez aquele homem que Isao viu na ponte com Hikari fosse o último dos Guardiões. Talvez ela fosse a última, e ele o mestre dela ou algo assim..

- Estranho, sempre achei que vocês andassem juntos...

- Nunca encontrei alguém com o seu cheiro.

"De novo esse negócio de cheiros."

- O que tem de errado com meu cheiro?

- É estranho. Me dá vontade de te morder.

A frase saiu tão natural, tão isenta de malícia, que por um momento Isao esperou que Yomi começasse a rir, tratando-se de uma piada bem colocada. Como a risada não veio, o garoto compreendeu, temeroso, que o comentário fora sério.

"Ela tem um parafuso a menos, só pode."

- E isso, é, bom?

Yomi desceu do contâiner e ficou parada na frente de Isao, encarando-o com seu meio-olhar enigmático. Por fim respondeu, a sugestão de um sorriso desenhando-se em sua boca.

- Acho que sim. Não é algo que eu não possa controlar.

"É sério isso?"

Coçando a cabeça em dúvida, Isao percebeu que Yomi não era lá uma fonte muito rica de informações - ao menos, não as que ele queria ter. Ela era uma guerreira formidável, porém, ficava claro que não sabia de muita coisa que não fosse lutar. Além disso, aquele papo de cheiro estava deixando-o levemente temeroso com relação à sua própria segurança...

Yomi, sem alterar a expressão no rosto, caminhou até a ponta da viela e olhou demoradamente para os lados, verificando se estavam realmente seguros. Isao, por sua vez, concluiu que aquela conversa havia apenas lhe suscitado mais dúvidas:

"Isso será bem mais difícil do que pensei. Ela não parece perigosa, mas não parece completamente... 'Normal'. Acho que deve ter ficado assim quando a mestra dela morreu. Deve ter sido algo bem impactante em sua vida. Por outro lado, não posso simplesmente ignorar o que ela disse, talvez os Guardiões se encontrem em uma situação bem ruim."

- Isao-Apoio.

Retirando Isao de seus pensamentos, a colegial chamou-o até onde estava.

- Sim?

- Preciso te pedir um favor.

- Eh?

- Você sabe de algum lugar seguro em que eu possa me esconder?

Uma idéia ressoou na mente do garoto, que respondeu sem embaraço:

- Pode ficar em minha casa por enquanto, é bem simples mas aconchegante. De qualquer modo preciso te fazer mais perguntas; e ojii-san vai gostar de conhecê-la.

"Eu disse isso pra valer? Acho que estou pegando o jeito."

Yomi ponderou por alguns segundos - era impossível adivinhar o que ela estava pensando devido ao fato de não demonstrar emoções com facilidade, sempre conservando o tedioso meio-olhar mórbido. Respondeu com um tom neutro:

- Certo. Assim aproveito e examino o tal dojô. Vamos.

Os dois adolescentes deixaram a viela - causando um olhar de reprovação por parte de um casal de idosos que saía de uma padaria próxima - e seguiram sem pressa até seu destino, continuando a conversar pelo caminho. Isao ponderou que Yomi talvez fosse amnésica, ou sua loucura fosse pior do que imaginou de início: ela não se lembrava de seu próprio sobrenome e nem mesmo de sua idade. Quando inquirida sobre sua mestra, ela respondia de modo confuso ou incompleto demais - tudo o que o jovem entendeu foi o nome, que também era Yomi, e que ela sofreu muito quando o nome de seu clã caíra em desgraça. Aquela história era estranha: o conceito de 'clã' era ultrapassado demais para que fosse verdadeira ou recente. Talvez Yomi tenha se apropriado de histórias contadas a ela e incorporado-as em sua vida...

- E esse uniforme, você estuda aqui em Tokyo?

Isao referia-se ao emblemático serafuku cinzento que a garota parecia usar sempre. Estava gasto, sinalizando uso contínuo.

- Achei há muito tempo atrás em Kyoto. Gostei bastante e uso como uniforme. Tenho mais um igual escondido aqui perto. Não preciso de mais.

"Ela é muito estranha."

- Você não estuda?

- Em lugares como aquele em que você estava? Não.

- Mas então, o que você faz da vida?

- Caço youkais, ora.

- O tempo todo?

A japonesa concordou com a cabeça, como se o que houvesse acabado de falar fosse a coisa mais natural do mundo.

- Mas, e como faz com comida e lugar pra morar?

- Eu pego o que quero quando tenho fome. É estranhamente fácil achar frutas e água nas cidades.

"Quem sou eu para condená-la por roubo..." - pensou um Isao cada vez mais espantado.

- Quanto a morar, nunca fiquei em um lugar só. Existem dezenas de locais abandonados que uso pelo país quando viajo. Humanos abandonam lugares o tempo todo. É só saber procurar.

- Pelo país?

- Sim.

- Então você está me dizendo que anda pelo país todo caçando youkais, dormindo de graça e comendo o que bem entende quando bem entende sem pagar nada?

- Sim.

- Desde quando?

- Desde que me entendo por gente.

Koyanagi tinha de admitir que era uma vida invejável sob certo ponto de vista: ela não se preocupava com contas e nem com opiniões de terceiros, viajava por todo o país sem preocupação, comia o que gostava sempre que queria, não se importava com dinheiro, ou provas, ou valentões querendo provar algo, não se importava com escola, e, o melhor de tudo, fazia o que mais gostava. O temor do jovem estava se transformando em fascínio...

- Sua vida é incrível.

- É?

- Sim. Eu queria poder fazer algo assim e me livrar do peso de ser um inútil.

- Pode vir comigo se quiser. Mas só depois de treinar muito. Só tem um problema:

- Que seria...?

- Todos que tentam me ajudar morrem.

Outra frase repentina sem nenhum pingo de hesitação. Isao percebeu que deveria levá-la a sério o tempo todo, e que deveria estar sempre preparado para as respostas diretas da moça.

- Entendi. Tentarei não... Morrer.

-~~*

Assim que abriu a porta de sua casa Isao deparou-se com o cheiro delicioso que vinha da cozinha - já era quase hora do jantar.

- Yomi, espere aqui um minuto que vou chamar ojii-san.

A garota assentiu com a cabeça, pondo-se a examinar o interior da sala. Koyanagi acelerou até a cozinha e encontrou seu avô concentrado no preparo dos alimentos que serviria no jantar, murmurando uma canção antiga qualquer.

- Ojii-san, tadaima.

- Oh, Isao. Não percebi que chegou.

Iwao levou a colher de pau à boca, provando um pouco da sopa que fazia.

- Eu consegui encontrá-la.

- Encontrou a tal Guardiã de Apoio?

- Bem, na verdade... - coçou a cabeça, sem graça - ela que acabou me encontrando. Disse que eu estava sendo seguido, acho que se referiu ao detetive.

- É bem possível. Por mais que me doa afirmar isso, você é uma possível fonte de problemas e aquele homem deve estar querendo te deter.

Suspiro mútuo.

- Ela disse que o colégio está impregnado de youki.

O idoso parou o que estava fazendo, meditando, mas logo voltou a mexer nas panelas:

- Mais uma razão para que tome cuidado redobrado ao ir à escola. Quero que acorde 15 minutos mais cedo a partir de amanhã para que se exercite com uma série de flexões antes de se banhar. Assim seu corpo já estará aquecido para o caso de uma situação emergencial.

"Mais exercícios? Ele quer me matar?"

- Ojii-san, tem mais uma coisa...

- Sim?

- Eu trouxe ela para casa.

Iwao virou-se, surpreso.

- Por quê?

- Ela disse que precisava de um lugar para ficar, então eu pensei que...

- Por que não disse antes? Onde ela está?

- Na sala.

Dirigindo-se até a sala, porém, constataram que convidada não estava mais lá. Apesar disso Iwao não duvidou do net, notando o par extra de sapatos ao lado da porta.

- Você disse para que ela esperasse aqui?

- Sim. Acho que ela foi ao banheiro ou algo assim.

"Não, espera; Yomi ficou muito interessada quando eu disse..."

- O dojô. Acho que ela foi para lá.

O Dojô Koyanagi comunicava-se com a residência por meio de uma discreta porta no corredor entre a sala e a cozinha, em frente ao banheiro do andar inferior. Esta porta estava fechada quando os dois passaram por ela...

- Isao, vá buscá-la enquanto termino de preparar o jantar, não posso correr o risco de queimar a comida.

O garoto assim o fez, correndo até a dita porta e adentrando o dojô. Um arrepio percorreu toda a sua espinha quando ele viu Yomi ajoelhada ao lado de um baú que deveria estar oculto...

"Mas como..."

- O que está fazendo?

A garota virou-se, assustada. Isao percebeu que ela estava segurando um dos ninja-tos Koyanagi. E mais: de seus olhos semi-cerrados, lágrimas caíam sem contenção.

- Yomi, o que aconteceu?

- Eu... - pela primeira vez ela parecia estar verdadeiramente confusa - Eu já vi isso em algum lugar. Não consigo me lembrar.

Isao se abaixou ao lado dela, tentando compreender o que se passava. Não sabia muito bem como agir ou o que falar; tentou ser compreensivo.

- Você esta chorando...

Claro, o rapaz não se saía muito bem nisso...

- Estou?

E, ao que parecia, ela também enfrentava uma situação nova.

- Você está cansada. Acho melhor comer e descansar, e depois você pensa nisso.

Lançando mais um olhar para a arma, Yomi a depositou no baú e empurrou-o de volta para o lugar. Sentia a aura da arma pulsando, uma energia familiar que a atraía. Por fim, seguiu Isao de volta para a residência Koyanagi, limpando as lágrimas.

-~~*

O jantar, a princípio, fora agradável, mas tornara-se constrangedor em um certo ponto. No início Isao contou animado sobre o modo como Yomi vivia, deixando clara a sua admiração. Porém, após isso, nenhum dos três pronunciou qualquer palavra por certo tempo. Iwao aparentava não se preocupar, comendo normalmente; a espadachim, por sua vez, conservava o semblante neutro e degustava a comida polidamente. O garoto-problema remexia o conteúdo de seu prato sem saber por onde começar, refletindo. Não havia contado ao avô sobre o que acontecera no dojô, preferindo interrogar melhor a guerreira à sua frente antes de tirar conclusões precipitadas. Pensava no que dizer para 'quebrar o gelo' quando Iwao, limpando a garganta, resolveu o impasse:

- Então, senhorita, meu neto disse que precisa de um lugar para ficar. Não vejo problema algum em ser a minha residência, mas peço que me esclareça a razão para tal pedido.

Yomi olhou para Isao, que meneou a cabeça afirmativamente, e respondeu:

- Serei sincera. Não quero que meu esconderijo em Tokyo seja descoberto. Notei que sou vigiada assim como vigiam Isao-Apoio, apesar de eu conseguir despistá-los. Preciso de um local seguro para repouso.

Iwao coçou o queixo, encarando-a.

- Não quer que descubram seu esconderijo, mas tudo bem em trazer problemas para esta casa...

- Ojii-san!

- Prometo ser cuidadosa caso permita que eu fique.

- E planeja ficar quanto tempo?

- Sete dias. Cinco, caso necessite retornar a Kyoto; três, caso os planos de Isao-Apoio se mostrem diferentes dos meus.

O ancião Koyanagi meditou por alguns momentos - o que pareceu uma eternidade para Isao - antes de proferir a respsota:

- Você é bem-vinda aqui pelo tempo que julgar necessário, e farei o melhor que puder como seu anfitrião. Mas, quero pedir algo em troca.

A garota apenas continuou a fitá-lo, serena.

- Treine Isao. Se tudo o que meu neto disse sobre você é verdade, então não há pessoa mais indicada para fazê-lo. Pode ficar o tempo que quiser, desde que transforme meu jovem delinquente em um guerreiro habilidoso.

A palavra 'delinquente' saíra dos lábios de Iwao em tom carinhoso e acompanhada de um sorriso, mas mesmo assim uma fagulha de reprovação passou pela fronte do referido em questão.

"Ojii-san... Então era isso que estava tramando."

Yomi ponderou por alguns segundos e repentinamente perguntou a Isao:

- E você, Isao-Apoio, o que me diz?

- Bem... Eu ia pedir a mesma coisa.

- Aceito o trato.

Iwao Koyanagi sorriu, feliz com o resultado. Sentia algo na moça que não conseguia explicar, mas que com certeza não era perigoso - ainda não confiava totalmente nela, mas achou que aquilo era a única coisa que poderia fazer para que Isao sobrevivesse na guerra contra youkais.

- Muito bem. Vou preparar o quarto de hóspedes. Isao, lave a louça.


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