Absence - Queria poder dizer uma última vez escrita por AHSfan


Capítulo 1
Queria poder dizer uma última vez


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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A voz dele. Tudo sempre se resumiu ao tom de voz dele, constantemente pacífica e que sempre soava meio rouca. Ele costumava cantar, dizia mamãe. Ele cantava muito bem e também tocava baixo. Ele cantou em bandas de rock, fez covers de bandas famosas como Scorpions.


Posso lembrar, com específica clareza, que nos anos 90, quando eu ainda tinha meus dentes de leite em minha boca, na escola pediram para que fizéssemos uma camisa especial no dia dos pais. Uma camisa que estivesse pintada com as nossas mãos, para darmos de presente aos nossos respectivos pais. A camisa era grande, afinal para mim, tudo que fosse três vezes o meu tamanho o era. Ela tinha uns kanjis na gola e eu a guardei com muito carinho. Era meu presente pro papai.


Recordo-me de perguntar a mamãe quando ele viria nos ver e pegar o presente, que fora feito com tanta animação infantil. Mamãe disse que iria ligar para ele, que ele não estava pela cidade, mas que iria tentar. O dia dos pais passou e eu não pude lhe entregar a camisa, porque não nos encontramos. Ela ficou guardada na terceira gaveta do guarda roupa de mamãe para que em breve estivesse nos braços do seu devido dono. Eu não sei bem o que aconteceu depois disso, acho que cheguei a entregar a camisa, mas não tenho certeza. Este é, provavelmente, um daqueles mistérios que nós só desvendaremos quando chegarmos ao fim da vida e conseguirmos vislumbrar todo nosso passado inteiro em um último suspiro.


Os anos passaram e eu fui entendendo minha situação enquanto filha de meu pai. Percebi que herdei apenas os sobrenomes dos meus avós, igualmente a minha mãe. Notei que as ausências de meu pai eram sempre superiores à presença. Acostumei-me. Eu me entristeci com a sua ausência, mas comecei a ver que as minhas enormes liberdades se devessem, talvez ao fato de que eu não tinha que conviver sob o constante olhar protetor paternal. Fui vivendo assim, eu não o procurei mais, por vezes ele é quem ligava para nossa casa, querendo falar comigo, com minha mãe. Depois as ligações ficaram mais espaçadas, mais raras, ele me procurava aproximadamente na semana do meu aniversário, um pouco antes ou um pouco depois. E eu sempre o escutava dizer: “Oi, filha.” Com aquela mesma voz, rouca. Sempre rouca.


E assim, eu vivi, namorei, estudei e o vi uma última vez. Ele parecia cansado, tão cansado com sua outra família. Meu pai estava tão velho, tão distante das fotografias de minha mãe, mas ainda assim aquela voz gentil e rouca permanecia a mesma. Meu querido pai. Eu estava na internet quando soube.


Uma mensagem enorme em forma de depoimento pelo Orkut explicara as causas e circunstâncias do falecimento de meu pai. Explicara que o enterro tinha sido no dia anterior e que não conseguiram me contatar, porque meu numero não era mais o mesmo. Pensei comigo: “Ah, não há nada mais que possa ser feito. Se ao menos ele ainda estivesse no hospital ou algo assim.” Terminei de almoçar, escovei meus dentes e fui à escola. Eu cheguei atrasada na aula de física de um dos meus professores mais queridos, acho que chorei, ou se não o fiz, pensei seriamente em fazê-lo, pois uma parte do peso da notícia tinha finalmente me atingido. Dei as más noticias a meu melhor amigo e fiz o melhor para seguir em frente com o resto do dia sem deixar que o assunto me perturbasse novamente.


Um ano depois eu tinha em mãos passagens compradas para viajar até a Rússia. Estava prestes a realizar o grande sonho do intercambio e muito ansiosa, de uma forma boa, para conhecer pessoas novas. Em mim tinha a certeza que enquanto as pessoas estivessem vivas seria sempre possível encontra-las, mesmo que elas estivessem morando em um lugar tão distante quanto à Rússia. Foi então que eu compreendi, com estalo oco no meu espírito, que eu nunca mais veria meu pai. Não importaria o quanto eu o buscasse, procurasse, tentasse, ele não estaria em lugar nenhum para ser encontrado. Eu poderia conhecer dezenas de países, ver milhares de rostos e atravessar os sete mares. Ele nunca mais iria me dizer: “Oi, filha” e a sua voz rouca seria apenas uma lembrança, uma memória. Ele nunca mais iria me telefonar próximo ao meu aniversário e eu não tornaria a escuta-lo dizer que me ama.


Recentemente, uma lembrança de infância me veio à tona. Minhas memórias estão constantemente associadas a momentos em que senti dor e essa não foi diferente. Nessa lembrança, estava em Juazeiro, brincando em um daqueles playgrounds infantis, segurando-me em barras. Indo de uma para outra eu lutava bravamente meu desafio de segurar a próxima barra para chegar até o outro lado. Até que, em câmera lenta, observei que meu bracinho não alcançaria a próxima barra. Meus dedos se esticaram inutilmente e eu soube naquele minuto que estava destinada a cair. Caí e a dor da queda me retirou todo o ar dos pulmões. De alguma forma, minha mamãe e meu papai vieram em meu socorro. Recordo-me da nota gritante de preocupação na voz dos dois, discutindo qual alternativa seria melhor para me aliviar a dor, se deveriam me levar a algum hospital ou comprar logo tal medicamento para abrandar minha agonia. Eu sei que minha mãe me ama, mas foi essa memória que me trouxe a dor da certeza que meu pai, da sua própria forma, também me amava.


Hoje eu gostaria de agradecer-lhe, por fazer o possível para estar ao meu lado. Eu gostaria de dizer uma última vez: “Eu também te amo, pai.”.


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Notas finais do capítulo

Se gostou, deixe um comentário por favor.Obrigada por ler e permitir que uma parte da minha alma frágil seja compreendida.