Rosa do Deserto escrita por Y Laetitya


Capítulo 24
Uma estranha




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Os dias em Red Rock Canyon passaram devagar, calmos e sem muitos conflitos. Não consegui ficar muito tempo de cama, de alguma forma, eu me sentia ansiosa demais sem fazer nada, talvez para compensar meu organismo se curou rápido do ocorrido, e assim pude voltar a trabalhar no laboratório de drogas. Depois de tudo que aconteceu, Trinity me ajudou bastante nas ultimas semanas, o sumiço de Max ainda me deixava muito ansiosa, quase todas as noites saíamos em sua procura e quando eu não podia fazê-lo, ela ia por mim mesmo quando estava cansada, não a achamos, mas ficou menos difícil superar a perda de Max com a força que ela me dava, mesmo que eu ainda acreditasse que um dia a encontraria. Eu estava cada vez mais perto daqueles olhos de esmeralda – nunca vi uma pessoalmente, mas imaginava que seria como aquele verde profundo e brilhante que havia nos dela.

Quando desapareci, ela mobilizou algumas pessoas para me procurar dentro e fora de Red Rock, Karl havia dito que eu fugi de volta para Freeside, mas ela lembrou de todas as coisas que contei a ela, e então soube que havia algo errado. Quando o enviado da Legião desapareceu logo em seguida, tudo ficou claro para ela. Algumas pessoas duvidaram e disseram que eu a havia abandonado, Rutherford tinha conseguido uma certa influencia na tribo por seus conhecimentos médicos e atos heroicos e então foi junto com Trinity falar com Papa, juntaram um grupo de pessoas para me procurar, passaram por várias cidades e perguntaram por todos os lugares, descobriram o acampamento no dia anterior ao ataque, investigaram sua rotina e então esperaram, o médico treinou tiro de sniper com a revista que eu dei a ele, e com mais dois atiradores posicionados conseguiram eliminar silenciosamente metade do acampamento antes que percebessem o que estava acontecendo. “Até que foi fácil”, ela contou, quase zombando. Muitas coisas não se encaixavam totalmente na minha cabeça, mas decidi não me incomodar com isso naquele momento.

Desde o dia do resgate, havia se passado muito tempo, estava anoitecendo quando saí do laboratório de drogas e caminhei até onde todos faziam suas refeições, alguns khans começavam a acender suas tochas para escapar da escuridão que se formava devagar, Trinity estava numa viagem para entregar os pacotes a uma pequena facção a sudeste do Canyon, imaginava que comeria sozinha, mas encontrei com Dylan Rutherford no caminho, coloquei alguns grãos de milho, um pedaço de carne assada de bighorner e uma fruta de cacto barril na minha tigela. Sentamos juntos em uma mesa.

—Como tá o trabalho, então? –Ele disse.

—Pesado. –Peguei o pedaço de carne pelo osso e mordi, arrancando uma parte generosa, eu estava com fome. –Soube que sumiu droga do laboratório?

—Ouvi por aí. Não descobriram quem foi ainda?

—Tem muita gente puta, e eu também estou. Nós recebemos um pouco pelo trabalho, não precisa sumir com as coisas, aliás, ninguém sabe ainda quem foi, imagina como o clima está lá. Estamos ficando até mais tarde para compensar.

—Mas você também não parece gostar muito do que está fazendo, não é? –Ele tira um pedaço de nervo de dentro da boca. –Não a vejo ir para o laboratório sempre, mesmo que já tenha tido alta. Enfim, sabe o que eu ouvi hoje de um viajante? –Rutherford disse, chegando mais perto. Eu fiz que não com a cabeça, curiosa.  –Há um “monstro” caçando os bighorners daqui das redondezas. Alguns dizem que é um night stalker.

—Acha que pode ser...? –Eu esbocei um sorriso para ele.

—Primrose? –Um khan de meia idade parou ao lado da mesa e me chamou. –Jack precisa falar com você, termine de comer rápido e venha comigo.

—Estranho, acabei de sair de lá. –Comi depressa, me despedi de Rutherford e segui o homem até o laboratório de drogas.

Jack estava sentado num banco de madeira torto e velho ao lado de um trailer enferrujado, ele mascava avidamente alguma coisa. Ah, Jack, essa bala que você tomou com certeza deve estar boa, pensei. Ele fez sinal para que eu chegasse mais perto, e o homem que me seguiu tomou outro rumo. As tochas crepitavam com o fogo, as rochas de noite pareciam mais vermelhas por causa dele.

—Prim. –Ele disse, me estendendo uma garrafa de cerveja, eu a peguei e tomei um gole. –Sabe por que está aqui? –Eu neguei com a cabeça. –Você sabe que alguns pacotes de drogas aqui do laboratório sumiram, né?

—Pera aí, você acha que eu tenho alguma coisa a ver nessa história?

—Toma a cerveja e escuta o que eu vou te falar. –Eu fiquei quieta. –Eu não sei quem foi que fez isso, beleza? Mas nós sabemos que você consome muitas das que sumiram. Muitas mesmo. Olha Prim, a gente não te julga, mas você precisa diminuir. Onde você estava na manhã passada? Onde estava todas a tarde da semana passada? Sabemos que era na sua tenda, usando droga. –Que? Isso foi pesado...

—Eu estou parando, e também faço meu trabalho direitinho. Eu já roubei sim, mas eu não preciso mais disso, as drogas que eu uso eu as compro ou ganho, não pode falar assim comigo. –Eu quebro a garrafa de cerveja no trailer e a aponto para Jack. –Eu não roubei essa merda, mas estou trabalhando pra cobrir o que foi roubado mesmo assim.

Jack destrava sua pistola, olhando para mim. –Calma. Você pode usar a porra que você quiser, contanto que não atrapalhe ninguém. Você faltou varias vezes com seu compromisso na comunidade, lembre-se que ainda não passou pelo ritual definitivo. –Ele disse. É claro, pessoas importantes como ele andam bem armadas aqui. Eu abaixei a garrafa quebrada e a joguei longe.

—Desculpe. –Eu abaixei o olhar, envergonhada.

—Vá. –Ele disse, apontando com o queixo em direção às tendas, e eu fui embora depressa, com a cabeça baixa, quase correndo.

Fiz merda, eu sabia disso, Jack poderia ter atirado e foi sorte minha de não ter feito. Isso que acabara de acontecer uma hora ou outra chegaria aos ouvidos de pessoas certas, e eu vou ter cagado com tudo novamente. Por que eu agi daquele jeito? Eu realmente não tinha nada a ver com a porra do sumiço das drogas, mas perdi minha razão no momento que o ameacei com um caco de vidro imenso e afiado.

A essa hora já estava escuro o bastante para não enxergar além do que as tochas permitiam, as pessoas já haviam comido e havia poucas andando pelo acampamento. Eu podia sentir seus olhares, e então percebi que eu não era uma deles. Nunca fui, e nunca serei. Finalmente cheguei em frente à minha tenda, entrei e procurei nas minhas coisas algo que me fizesse esquecer do que acabara de acontecer. Acendi um cigarro, e depois de fazer bastante fumaça e sentir minha pressão abaixando de repente, peguei um stealth boy, sentei no chão e procurei qualquer veia do meu pé. Sabe, eu não era muito fã desse tipo de droga, mas ninguém iria me ver, e lá, eu estava escondida de todos.

Fiquei algum tempo parada, apenas pensando no que iria acontecer dessa vez, então, vejo uma sombra em frente à minha barraca, uma mão puxa a cortina e uma mulher entra, sorrateira. Eu nunca havia a visto, era mais jovem que eu, estava suja e magra, ela carregava consigo um pequeno embrulho. Fiquei parada, observando o que ela iria fazer, já que não podia me ver ali. Tinha um cabelo picotado e amassado, marrom, talvez. Ela abriu meu baú, e colocou o pacote lá dentro, se virou e ia saindo, resolvi que deveria investigar por que e o que era aquele pacote, eu a agarrei por trás, jogando-a no chão e a imobilizando.

—Quietinha. O que você colocou ali, hã? –Eu disse, apertando meu joelho em suas costas, ela parecia assustada, pois não podia me ver.

Tão já o efeito do stealth passou, quando ela viu meu rosto, seus olhos se arregalaram e tentou escapar, sem sucesso, eu tive a ideia de quebrar seu pulso esquerdo para que ficasse quietinha –com sorte, ela seria destra e não sofreria muito com isso–, ela ganiu quando seu osso sucumbiu à pressão, e então começou a falar:

—Sua traidora, eu vou vingar ele!

—Ele quem? O que tem no pacote?

—Me solte e vá lá ver. –Ela cuspiu.

Eu gritei por ajuda, e meus vizinhos de tenda apareceram rapidamente, pedi para que abrissem meu baú e abrissem o tal do embrulho. Havia uma dúzia de drogas que eu reconheci como sendo do nosso próprio laboratório. Levamos a mulher para fora, não sem antes se certificar que ela não fugiria. Não era uma khan, já sabíamos disso.

—Essas são as drogas que sumiram! –Um khan que trabalhava comigo disse alto o suficiente para que mais pessoas chegassem, curiosas.

—Vou chamar Papa e Jack. –Outro disse, e saiu apressado.

Minha tenda parecia pequena demais com a quantidade de pessoas que estavam lá dentro, eu me sentia sufocada, estava tarde, mas Papa, Regis, Jack e Diane queriam conversar. Com tudo o que aconteceu, a seringa do stealth ainda estava no chão, bem visível, junto com a bituca do cigarro. Merda, eles viram com certeza, e o fato de eu não saber o que eles iriam pensar me deixava nervosa. Será que estavam duvidando de mim?

—Essa mulher de mais cedo... Conhece ela, Primrose? –O líder dos khans perguntou.

—Não.

—Não imagina de onde ela veio? –Ele insistiu, e eu neguei com a cabeça.

—Ela tem alguma coisa contra você, Prim. Tentou te incriminar pelo sumiço das drogas, eu imagino. –Diane interrompeu.

—Muitas pessoas têm algo contra mim. –Eu desviei o olhar.

Lá fora, os grilos cantavam alto demais pro meu gosto, minha fogueira estralava.

—Eu espero que essas pessoas parem de trazer problemas para nossa tribo. –Papa disse. –Vamos mantê-la conosco até descobrir por quê fez isso.

—É uma boa. –Eu me remexi, inquieta.

Ele se retiraram e eu finalmente consegui respirar. A essa altura, eu já desconfiava de onde ela veio, ela era igual a mim. Mas haviam se vingado, por que vieram até aqui novamente?

Estava inquieta, não conseguia dormir, Trinity estava demorando para chegar, então decidi esperar por ela na entrada do Canyon, eu precisava conversar com alguém. Sentei numa rocha grande que havia se desprendido do paredão e rolado para baixo, estava uma noite fresca, úmida, diferente. Parada ali, comecei a pensar em tudo o que aconteceu desde Rose Campbell, quanto tempo havia se passado? Merda, com tudo o que aconteceu, eu perdi a contagem dos dias, dos meses, do meu aniversário. Soava engraçado, por um lado. Eu perdi tudo, mas ganhei muita coisa também, então cheguei à conclusão que meu aniversário já não importava.

Olhava para aquela escuridão, até que uma pessoa surgiu caminhando devagar, calmo, era um homem, parecia castigado pela Wasteland, em sua cabeça havia uma cicatriz que impedia cabelos novos de nascerem, talvez tenha levado um tiro, ou uma pancada muito forte, enfim, não era da minha conta, um bigode cheio e cicatrizes de espinha. Ele me cumprimentou mexendo em seu chapéu de vaqueiro.

—Noite. Preciso falar com seu líder.

—Vai à merda, cara. Fale com outra pessoa, suma da minha frente. –Eu cuspi perto de sua bota suja de poeira vermelha.

Ele olhou em meus olhos –Ok, senhora. –E pôs-se a andar para dentro do canyon, fazendo um gesto com a mão, talvez significasse uma despedida, ou pedido de calma, foda-se. Eu tava preocupada, não queria perder tempo com aquele merda.

E então quando ele sumiu da minha vista, Trinity apareceu das sombras, sua silhueta era inconfundível para mim àquela altura, mas... Algo estava errado. Ela se apoiava no seu companheiro de viagem, Adam, suas roupas estavam sujas com vermelho. Merda. Corri até eles, preocupada. Quando ela percebeu que eu estava alí, deu um sorriso sem graça, tentou ficar de pé sozinha, mas não conseguiu, eu o ajudei a segurá-la.

—O que aconteceu?

—Fomos interceptados perto do ferro velho da Violet. –Adam disse, enquanto Trinity gemia baixinho, com a cabeça caída em meu ombro.

—Foram os fiends? –Ela sangrava na barriga.

—Sim, não sabemos o porquê fizeram isso, mas não era pra acontecer. Parece que não são mais nossos “amigos”, afinal.

—Eles nunca foram. Leve ela para a enfermaria, eu vou chamar Rutherford. –E saí correndo. Então percebi: ainda não havia acabado. Nunca iria acabar.


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