Rosa do Deserto escrita por Y Laetitya


Capítulo 10
Goodsprings




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O sol começava a despertar no horizonte, minha sombra ondulava conforme ia andando pelo chão terroso, era uma visão muito bonita que não apreciava desde que havia me juntado à NCR, mas agora estava sozinha e precisava cruzar uma extensão absurda de terra para poder cumprir minha promessa. Eu estava mesmo mudando, e às vezes sentia medo de perder a minha essência, na verdade, sentir medo já era um sinal que eu não era mais a Miss.

O céu estava laranja e a temperatura àquela altura já estava esquentando, na minha mochila estavam algumas garrafas de água limpa, almoços de caravana, feijões enlatados e um pouco de carne de brahmin, quando peguei tudo isso, esqueci que teria que me acostumar primeiramente com o peso que aquilo implicaria junto com minhas armas e munições. Ajeitei a mochila nas minhas costas pela décima vez e arfei, xingando minha fraca condição física, limpei minha testa que já começava a suar. Não conseguia parar de pensar sobre um pedido que minha colega de tenda havia feito, fora a primeira vez que conversamos desde que eu comecei a dormir no acampamento McCarran que ela havia chegado parar trocar algum tipo de palavra comigo.

–Campbell, você já está de saída para o Acampamento Golf?

–Já, aconteceu algo?

–Eu só queria tentar ajudar em algo... E pedir um favor, se estiver tudo bem.

–Claro... Se estiver ao meu alcance como mera soldada.

–Tente evitar o caminho de Sloan, para o seu bem.

–Farei isso, mais alguma coisa?

–Poderia entregar isso para a minha família? –Ela estendeu um saquinho que ao balançar fez um barulho de tampinhas, parecia pesado. –Para Marta, em Goodsprings, fica no caminho que você fará se não passar por Sloan. Ela é minha irmã, apenas diga que Tânia está preocupada.

–Claro, vou entregar. –Com sorte estas tampinhas acabariam apenas em minhas mãos.

Ela se aproximou um pouco cautelosa colocando o saco de tampinhas nas minhas duas mãos. –Então é bom que entregue para Marta, e que ela envie uma carta agradecendo pelas tampinhas, eu sei exatamente quanto tem aí dentro, senão eu estouro sua cabeça, ouviu?

Eu deveria ter medo daquela ameaça. Quinhentas tampinhas. Tânia deve ter tido problemas ao tentar trocar o dinheiro da NCR por tampinhas, são poucos os lugares que aceitam trocar essa merda.

¨

A noite caiu e já estava pela metade quando tomei algumas drogas pela segunda vez para ficar acordada e alerta, elas apenas me despertavam e não causavam alucinações –eu tinha muitas dessas pílulas por causa disso–, ao sair do acampamento, me disseram sobre grupos que ficavam escondidos atrás de outdoors velhos para saquear caravanas ou armamentos de soldados, falaram ainda sobre uma tal facção em especial: a legião, e essa seria a que eu teria que tomar mais cuidado. Por sorte, ela era fácil de se reconhecer porque seus integrantes se vestem como verdadeiros idiotas romanos, se eu visse alguém assim, deveria atirar imediatamente. Mas eles não poderiam aparecer por aqui, é muito longe do território deles e perto demais do da NCR.

Ao amanhecer eu passava pelo cemitério de Goodsprings, que ficava em um monte, de baixo, eu conseguia avistar imensas moscas gigantes, não sabia o que elas poderiam fazer, mas também não queria descobrir, resolvi deixa-las sozinhas com os cadáveres e prosseguir, pouco tempo depois, adentrava a cidade. Ela era muito pequena e simples, as pessoas tinham um sotaque engraçado e pareciam levar uma vida de subsistência, o sol acabara de aparecer no horizonte e muitos camponeses já estavam de pé.

Passei por algumas casas e me deparei com uma espécie de bar, sua faixada tinha marca de balas e um pouco de sangue seco no chão, mas nada muito alarmante, era todo feito de madeira e teias de pequenos insetos nos cantos das paredes indicavam estar lá há muito tempo, cumprimentei um velho que me encarava, senti uma imensa vontade de perguntar o que era aquela cara de cu olhando para mim, mas fiquei quieta e adentrei o estabelecimento, sentei no balcão e pedi um whisky para a garçonete que limpava inutilmente o balcão com um pano sujo.

–O que houve com essa cidade? –Tomei um gole enorme do líquido do copo e então perguntei.

–Tivemos um conflito com os Arruaceiros da Pólvora.

–Arruaceiros do quê?

Ela cuspiu no pano e continuou a passa-lo no balcão.

–Não se finja de idiota, seu pessoal sabe muito bem do que estou falando. E pensar que um mensageiro conseguiu resolver o que vocês da NCR nunca conseguiram! A propósito, isso é 15 tampinhas. –Apontou para meu copo.

Terminei de beber o whisky e deixei notas da NCR no balcão apenas pela doçura da garçonete, eu espero do fundo do coração que ela não consiga trocar aquele dinheiro.

O sol já castigava lá fora, o velho continuava a me encarar e então resolvi perguntar para ele sobre os Arruaceiros, inventando a desculpa de que eu era nova na NCR. De alguma maneira, ele foi mais amistoso e se apresentou –Easy Pete–, contou que eles eram como uma facção, antigos prisioneiros de uma unidade correcional da NCR, de alguma forma, eles se rebelaram e usam dinamites para explodir tudo, eles não foram com a cara de alguém e resolveram ataca-lo, nisso, entra um mensageiro que levou um tiro na cabeça e que foi salvo pelo doutor da cidade, e expulsa os Arruaceiros junto com a ajuda de alguns dos habitantes. Todo esse confronto aconteceu há alguns dias, e isso explica as marcas de tiros e o sangue na faixada do bar. Uma história um tanto inusitada. Perguntei sobre Marta, irmã da minha colega de quarto, e Easy Pete me indicou com o dedo onde ela morava. Talvez depois dessa gentileza ele não tivesse tanto uma cara de cu quanto eu pensava. Agradeci e continuei a andar.

A terra daquele lugar cheirava a poeira, era mais fina do que o do Mc Carran, entrava pelo meu nariz e deixava uma sensação entranha, às vezes me fazendo ameaçar espirrar. As casas pareciam todas iguais, com uma cultura de subsistência –geralmente um tipo de milho–, alguns bighorners domesticados pastavam uma grama inexistente por perto, caminhei na direção que Easy Pete apontou, meio incerta de qual casa seria. Chutei algumas latas enferrujadas que encontrei pelo caminho, aquela vizinhança era realmente estranha e algo não me deixava à vontade por lá.

Parei em uma das casas e bati na porta, um morador idoso abriu o trinco e espiou por uma pequena fresta quem era, ele parece surpreso e sua expressão logo ficou tensa.

–Pois não? –Disse, abrindo mais a porta. Suas vestes eram de um camponês pobre e ele fedia levemente a suor, como a maioria das pessoas que eu encontrara naquela cidade.

–Preciso saber onde uma tal de Marta mora. Disseram que era por aqui.

–Pois bem, está no lugar certo, garota, sou o pai dela, que assunto tem a tratar que não pode ser comigo? –Sua voz tinha um sotaque caipira e uma simplicidade explicita.

–É sobre Tânia, poderia chama-la?

–Ela não...?

–Ela está bem, não se preocupe. Está fazendo um ótimo trabalho, senhor. –Sua expressão se aliviou e ele abriu a porta por completo.

–Pode entrar, sente-se que irei chama-la.

A casa estava cheia de rachaduras e era bem pequena, teias de insetos pregavam-se em todos os cantos do teto e a sujeira de fora parecia entrar frequentemente para dentro da casa –ou alguém nunca a limpava como deveria–, embora tudo permanecesse bem fechado, o ambiente era escuro e não cheirava muito bem, alguns móveis estavam quebrados e remendados, o sofá quase não tinha estofado e estava rasgado em diversas partes, alguns porta-retratos estavam pendurados na parede.

Marta apareceu com um sorriso adorável e enxugava as mãos num pano de prato tão sujo quando o do bar que eu passei algumas horas antes, de fato se parecia muito com a irmã, mas com uma aparência mais gentil.

–E então...? –Ela disse, se aproximando.

Lembrei porque estava lá e peguei o saquinho pesado de tampinhas, os olhos dela abriram impressionados por um instante, mas logo depois ela disfarçou e pigarreou.

–Ela pediu para que eu entregasse isso nas suas mãos, você poderia mandar uma carta para Tânia avisando que recebeu estas tampinhas? Ou então eu estarei realmente encrencada. –Coloquei o saquinho em suas mãos, um pouco triste por ver todo aquele dinheiro voando para outra pessoa. Quando eu pensaria que iria fazer algo do tipo? Há alguns meses eu não teria hesitado em pegar tudo para mim, mas ao ver aquela família, sabia que eles dependiam daquilo mais do que eu.

–Pai! São noticias da Tânia! –Ela gritou para algum cômodo e logo em seguida se sentou animada do meu lado. –Diga, como ela está?

–Bem... –Eu deveria dizer o quanto ela bebia e estava infeliz trabalhando para a NCR? Preferi me conter e dizer apenas coisas boas. O velho apareceu na porta da cozinha sorrindo um pouco empolgado em ter notícias da filha, o que me deixou mais tensa com o tipo de resposta que eu daria. –Bem... Ela faz seu trabalho muito bem –menti–, na verdade, foram poucas as vezes que pude falar com ela, mas é uma boa pessoa.

–Ela sempre se queixou da vida que levava aqui, prometeu ir para a NCR e ser uma ótima soldado, nós ficamos felizes que ela esteja feliz com vocês, obrigado. –Ele disse, olhando um retrato de família que pendia torto na parede ao seu lado.

–Fique para o almoço! –A garota disse, um pouco mais contente com o que ouvira. –Não deve ser como as refeições que você está acostumada, mas tenho certeza que vai gostar do nosso ensopado de carne de brahmin.

¨

Eles não tinham uma mesa de jantar, por isso, quando a comida ficou pronta, Marta a trouxe em uma tigela para mim, que permaneci sentada no sofá. Levei a colher à boca e um sabor agradável a invadiu, provavelmente a carne era mais fresca que a que serviam no acampamento e tinha menos sal também, não pude evitar um pequeno sorriso de aprovação, embora o caldo tivesse um gosto meio sujo e estranho.

Foi então que reparei que minhas mãos estavam tremendo ligeiramente há algum tempo, e então uma vontade súbita de usar alguma das drogas que estavam em minha bolsa surgiu como um furacão dentro de mim, mas sabia que naquele momento era impossível. Me apressei em tomar todo o caldo e a engolir todos os pedaços de carne o mais rápido que pude sem parecer muito desesperada.

–Você parece cansada, gostaria de passar a noite aqui? –Marta disse, sem reparar em meu nervosismo.

–Bem, eu... –Tentei inventar alguma desculpa. Sem sucesso.

–Você pode ficar em meu quarto sem problemas, nos trouxe ótimas notícias e isso é o mínimo que poderemos lhe oferecer. Só não posso garantir muito luxo...


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