Eu e Sombra voamos suavemente por algumas horas. Ainda me surpreendia como ele conseguia ser tão rápido e silencioso. Chegamos à floresta enevoada quando os primeiros resquícios alaranjados do sol surgiam no horizonte.

– Muito bem... – Comentei – Que bom que sabia mesmo voltar pra cá... Vamos...

Ele atendeu prontamente quando puxei as rédeas para a esquerda, disparando na direção do castelo.

Alguns guardas estavam no topo da torre de vigia e quase viram o Fúria da Noite passar sobre suas cabeças, mas Sombra aterrissou suave e silenciosamente atrás de um estábulo. Com sorte, os guardas pensariam estar delirando de sono ou com algum vulto lançado polos primeiros raios de sol do amanhecer.

– Fica aqui, garoto... – Disse eu, deixando sombra em um depósito. – E nem pense em... – Ele atacou os barris com peixes antes que eu pudesse terminar a frase. - Ah, deixa pra lá...

Ele me olhou de relance com seus imensos olhos amarelos quando saí do deposito e comecei a escalar a parede do prédio, e fiz um sinal silencioso para que ele continuasse lá.

A maior dificuldade que tive para subir ao quarto de Merida foi não chamar a atenção dos guardas, mas consegui em alguns minutos. Eu estava sumido há algum tempo, os arqueiros não esperariam me ver subindo pelas paredes daquele lugar tão cedo, muito menos com roupas que não eram exatamente típicas dali; uma camiseta comprida azul, calça preta e botas de... Sabe-se lá o que. Algum bicho bem peludo. Na verdade, acho que nem esperavam mais me ver.

Quando cheguei ao quarto de Merida e a vi dormindo, meu coração disparou... Só havia sentido isso em duas ocasiões: Quando ela chegara perto de mais do meu rosto no dia do meu aniversário... E talvez também quando... Novamente abanei a cabeça para afastar aquele estranho pensamento.

Tomando uma coragem que nunca precisara tomar antes, bati algumas vezes no vidro.

Os olhos de Merida abriram sonolentos... Ela olhou confusa para a janela por alguns momentos antes de me reconhecer. Várias expressões passaram momentaneamente por seus olhos; cofusão, surpresa, uma pontada de irritação e então alívio.

– Pelos deuses, Dimi, onde você estava?! - ouvi sua voz abafada pela janela.

Dei um sorriso torto.

– É uma longa história. Vamos lá pra baixo que eu te conto.

Ela acenou positivamente com a cabeça e saiu apressada do quarto. Desci o castelo o mais rápido que conseguiria sem chamar a atenção dos guardas. Quando cheguei lá em baixo, Merida me esperava na porta da cozinha; aquela mesma cozinha na qual havíamos nos conhecido anos antes.

– Onde você estava Por que demorou tanto?! Ah, seu idiota! - Disse ela, surpreendentemente pulando em meus braços ao invés de me dar socos. - Pensamos que você tinha morrido! Seus pais estavam tão preocupados... - Merida apertou um pouco mais o abraço. - Eu estava preocupada. Mais uma semana e enviaríamos as velas rio abaixo em sua homenagem.

Me surpreendi ao sentir algumas lágrimas quentes e contidas molhando meu ombro... Só naquele momento me dei conta de o quanto havia sido egoísta ao passar aquele tempo em Berk. Deveria ter, no mínimo, voltado e avisado que eu estava bem...

– Me desculpe... - Eu disse, sentindo o cheiro suave e a textura macia do cabelo de Merida. - Eu não queria...

– Tudo bem, Dimi. - Me interrompeu ela, fingindo não ter chorado. - Fico feliz que esteja bem. - Ela suspirou - Só não desaparece mais desse jeito, tá bom?

Eu sorri.

– Tudo bem. Agora... Por quanto tempo eu fiquei fora? Aconteceu alguma coisa importante?

Foi a vez dela sorrir, divertindo-se com minhas dúvidas.

– Ah, você não acreditaria se eu contasse. E eu acho que é você, mocinho, que deve as maiores explicações aqui. Afinal, que roupas são essas? Por onde você esteve no último mês?

– Já faz um mês? - Perguntei, surpreso.

– E você nem notou... - Disse ela, com uma pontada de mágoa que se foi logo que ela notou o que deia significar. - Ah Dimi, que incrível, você achou sua família?! - Sorri e confirmei com a cabeça.

– Descobri que tenho um tio e um primo vivos, e uma aldeia inteira que me acolheu como se eu nunca tivesse saído de lá... Sabe... Pela primeira vez na vida, aquela minha sensação de vazio despareceu por completo - Comentei, feliz.

– E onde fica essa aldeia? Mais alguém veio com você?

– Bom... Veio sim alguém comigo. - Eu respirei fundo. Assim como eu, Merida também tinha um preconceito com Vikings, e não seria bom que o rei Fergus ou a rainha Elinor ficassem sabendo. - Mas se eu te contar onde fica a aldeia você tem que prometer manter em segredo...

Ela me olhou, confusa, mas acatou.

– Claro Dimi... Mas se não quiser contar também... - Ela pareceu um tanto decepcionada. Ia falar alguma coisa, mas algo a conteve. Seus olhos, agora assustados, se desviaram para algo atrás de mim.- Fica parado. - Sussurrou ela, o medo claro em sua voz. - O que é aquilo?

Eu me virei, fazendo-a soltar um grito engasgado. Sombra havia saído do estábulo e nos olhava com interesse. Eu cruzei os braços.

– Eu te disse pra me esperar, garoto. - Ele abaixou as orelhas e me olhou com cara de quem fez algo errado. Não consegui evitar o sorriso - Mas, já que está aqui, vem cá. Merida, este é Sombra, o acompanhante que eu havia lhe falado. - Ela olhou assombrada para o dragão, não acreditando no que seus olhos estavam vendo.

– Ele existe mesmo?... Ou isso tudo é um sonho? - Perguntou, perplexa.

– Totalmente real. - Respondi, subindo no Fúria da Noite. Eram raras as vezes que eu via Merida tão impressionada. Não pude deixar de aproeitar o momento

– Incrível... - Disse ela, encantada, tocando a pele quente e escamosa do dragão.

– Será que a nobre princesa nos concede a honra? - Brinquei, estendendo-lhe a mão para que subisse também.

– Ele vai mesmo me deixar montar? Não vai, sei lá, me morder nem nada? - Perguntou ela, receosa.

– É claro que ele vai te deixar subir... Também fiquei com medo quando montei pela primeira vez... - Respondi. Merida ainda olhou receosa pra minha mão estendida por alguns momentos antes de, finalmente, aceitar subir no dragão. - Pronta? - Merida segurou em minha cintura e acenou positivamente com a cabeça. Estava pálida, pobrezinha... - Vamos com calma, garoto.

Sombra abriu suas grandes asas azul marinho e voou, fazendo Merida apertar um pouquinho mais seu abraço em minha cintura. Voamos silenciosamente por cima das muralhas do castelo, e então até os campos ao leste de Dumbroch. O nascer do sol estava, como sempre, indescritível, ainda mais com as grandes nuvens que brincavam com a luz lá no horizonte...

– Libertador, não é? - Perguntei

– Incrível... - Sussurrou Merida, afagando a lateral do corpo de Sombra. - Lá de onde você veio... É comum as pessoas ter dragões?

– De certo modo... - Respondi.

– Agora eu entendo por que você demorou tanto para voltar... - Ela suspirou. - Você não vai ficar aqui né? Veio só nos avisar que está bem... - Ouvi sua voz ficar um pouco mais triste. Não pude deixar de me sentir um pouco culpado.

– Não te culpo por isso - Disse ela, como se lesse meus pensamentos. - Deve ser incrível o lugar de onde veio.

Eu sorri. Berk realmente era incrível, a seu modo. Ainda assim, era uma aldeia viking... Eu teria de ser cauteloso ao contar aquilo a qualquer um de Dumbroch. E, falando bem a verdade, eu ainda não havia me decidido se ficaria em Berk ou em Dumbroch... Mas não queria pensar naquilo no momento. Queria apenas sentir a brisa em meu cabelo e ouvir a voz suave de Merida cantarolando atrás de minha cabeça: "Vou correr, vou voar, e o céu eu vou tocar..."