O Segredo das Estrelas escrita por Mika


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Música para escutar enquanto ler o capítulo:
Andrew Belle - In My Veins
www.youtube.com/watch?v=q0KZuZF01FA

O capitulo está meio confuso, pois é meio sentimental e contêm muitos pensamentos e passagens. Entretanto, ele é necessário para você conhecerem o protagonista. A narrativa começa pra valer no próximo capítulo.
Ps.: Escutem a música :)



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Eclesiastes 3:2, 7:

“Como as estações de um ano que se sucedem, tudo na vida é passageiro. Desde as cores e a vida trazidas pelo florescimento da primavera à dissonância que envolve o inverno, há um momento certo para que cada estação chegue e saia de nossas vidas.

Há momentos de semear alegrias e momentos de colher lágrimas; momentos de matar a dor e momentos em que temos que exibir com orgulho as cicatrizes que ganhamos nas batalhas em que fomos sobreviventes; momentos em que a única alternativa é aprisionar o choro na garganta e momentos em que rimos até nossa barriga protestar; momentos de lutar por nossos sonhos inalcançáveis e momentos de abrir mão daquilo que tanto almejamos; momentos de gritar aos quatro ventos o que sentimos e momentos em que devemos manter nossos mais puros sentimentos abscondidos, com a esperança que os de terceiros surjam e correspondam aos nossos; momentos de estar cego de amor e momentos em que deixamos que o ódio e o ciúme infectem nossa alma; Há momentos em que somos obrigados a relembrar aquele amor inesquecível/impossível e momentos em que devemos enterrá-lo no recanto mais inóspito de nossos corações (...).

‘É preciso viver tudo ao seu tempo, mas nunca se esquecendo de viver cada momento.”.

— a autora

O sol caia atrás dos grandes prédios de Seattle, incidindo brevemente sobre o céu uma coloração alaranjada. Alegre. Quase notória em contraste com a lugubridade das nuvens. Uma brisa gélida acarinhou meu rosto, a promessa de uma tempestade próxima. Fechei a janela lentamente; absorto ao som quase imperceptível das primeiras gotas de chuva caindo de encontro ao telhado, encoberto pelas vozes distantes rua a fora. Suspirando, olhei com desdém o copo de vidro em minha mão, tentando dissimular, sem êxito, o quão cedo era para voltar a beber.

Você devia beber mais, Edward... Você só é você mesmo quando bebe.

Tomei um gole generoso do conteúdo do copo, fechando os olhos pela queimação do álcool escorregando em minha garganta.

Lá fora a tempestade cumpria sua promessa. As rajadas de vento lançavam gotas de chuva contra a janela, e por um momento, elas se assemelharam às lagrimas que eu me negava a derramar. Correndo os dedos pelos vidros transparente, pensei em Rose, como havia feito em cada maldito segundo nos últimos seis anos. Nunca havia deixado de ser eu mesmo com ela, como me acusara. Mas, talvez, não fui o homem que ela queria que eu fosse.

Oh, Deus... Ela era tão linda. Tão elegante. Tão alegre. Sua arrogância, da qual fui advertido inúmeras vezes de ser um dos seus muitos defeitos, era uma das coisas que eu mais amava nela. Rosalie gostava do que gostava e pouco se importava com o que os outros pudessem pensar.

Massageie a nuca, cansado, assim que me distanciei de onde estava. E me pus a vagar pela casa. A casa onde vivi os melhores anos da minha vida — anos vividos com Rose —, agora não era mais o lar que tanto almejei para nós dois; era apenas o lugar onde eu dormia, ou melhor, onde tentava dormir. Os cômodos, antes abarrotados de moveis extravagantes e de gosto duvidoso, estavam vazios agora. Vazios de qualquer centelha de vida. Vazios de Rose.

Uma cacofonia de latidos veio de dentro da cozinha. Com passadas rápidas alcancei o cômodo a tempo de presenciar Bayley, Beanie e Bear, nossos cães, disputarem algum objeto entre si, estraçalhando-o no processo.

Recostei-me no batente da porta observando a cena com um ar tedioso, enquanto bebericava mais um pouco do uísque barato que havia comprado na noite anterior. Mas, de qualquer forma, não deixava de ser cômico o que eu testemunhava ali diante dos meus olhos: Bayley e Bear — os maiores — aparentemente, travavam sua própria rixa particular; ignorando completamente Beanie, que esperava atentamente o melhor momento para, sozinha, abocanhar o “motivo” de discórdia entre ambos — algo que só pude discernir como de cor azul; devido à miopia ou ao álcool, finalmente, fazendo efeito em meu organismo .

Sim, definitivamente uma cena que teria me rendido uma boa gargalhada no passado, pensei, sentindo um leve estender dos cantos de minha boca para cima.

— Mas não mais — murmurei roucamente, dilapidando qualquer indicio de sorriso que pudesse torcer a comissura de meus lábios. O que foi o suficiente para distrair os cães por uma fração de segundo e Beanie sair em um rampante da cozinha com o objeto na boca, fazendo com que os outros dois latissem em protesto.

Mas já era tarde. Beanie já havia se escondido.

Respirando fundo coloquei o copo vazio sobre a pia — o mesmo fazendo companhia aos muitos que jaziam ali —, e fui procurá-la. No meio da sala deserta, parei, voltando-me e olhando para trás, notando Bayley e Bear nos meus calcanhares. Escoltando-me como os dois cães de guarda que nunca foram.

— Se ela fugiu de novo, eu juro, vocês vão comer vísceras por uma semana — ameacei, trincando os dentes, ignorando por completo seus olhos brilhantes. — E parem de me olhar com essa cara de cachorrinho que caiu da mudança. Não cola mais.

Marchei até o antigo quarto de hospedes, meu atual quarto e o esconderijo favorito de Bearnie, orando pra que ela estivesse debaixo da cama, como de costume, e não sob um caminhão — o que quase acontecera na semana anterior.

Um sopro de alivio escapou de meus lábios assim que avistei seu rabo balançar sob as cobertas caídas.

Agachei-me ao seu lado puxando-as, pronto para dar-lhe uma boa reprimenda e... estanquei, estático. O atrito das sensações me paralisaram, fazendo-me segurar a coberta, suspendendo-a no ar, pelo que pareceu um século. Incapaz de mover sequer um musculo.

Eu quero filhos, Edward! Não um bando de cachorros pulguentos que soltam pelos por toda a casa e que comem meus sapatos. Droga! Quando você vai entender isso?

Um sapato. Beanie estava roendo o que restou de um dos saltos altos de Rose. Um que, sujo par, devia estar no porão com os moveis, roupas e demais sapatos; junto de tudo ou qualquer coisa que pudesse me lembrar de Rosalie, que pudesse me remeter aos momentos que vivemos.

Puxei o salto do confinamento de Beanie, que, confusa, abocanhou minha mão fazendo-me ofegar. Alheio a dor latejante, vislumbrei o sapato como se o mesmo acabasse de sair de outro planeta. Com as pontas dos dedos acarinhei a costura rompida pelos dentes de Bayley, Bear e, claro, Beanie, enquanto a lembrança do dia em que vi Rosalie pela primeira vez, calçando este sapato, ocorreu-me.

— Quero te mostrar um lugar — digo sorrindo para ela.

Estou numa festa na casa dos meus pais. Encostada sobre a bancada do bar ela se encontrava. O rosto sereno acompanha o movimento da massa de corpos pulsantes enquanto seus saltos sutilmente marcam a compasso da musica que toca no ambiente. Só de olhá-la a distancia sinto meu coração acelerar e ao mesmo tempo parar de bater de uma forma que eu sempre julguei biologicamente impossível.

São logos e atemporais os momentos que se antepõem até que junto uma coragem que não tenho e a convido para dançar. No instante em que nossas mãos se tocam, eu descubro naquele precioso segundo que ela será a mulher da minha vida. A única que eu quero em meus braços para sempre.

O que seria apenas uma dança rápida se transforma em duas, três, quadro... e não nos desgrudamos a noite toda. Assim como as demais que sucederiam aquela.

— Pro seu quarto? — pergunta sorrindo maliciosamente, esfregando seu corpo no meu. Timidamente, recuo um passo e, encabulado, nego com a cabeça. Seu desapontamento é quase palpável, mas ela não o deixa transparecer por muito tempo — Tá legal! Pra onde você quer me levar?

— Você me convidou para ver as estrelas? — Pergunta assim que terminamos de subir o lance escadas que levam ao terraço. Sua voz é um misto de supressa e decepção, e eu não sei se gosto disso.

— É — confirmo hesitante.

Franzindo o cenho, me questiono por uma fração de segundos se fiz uma boa escolha levando-a ali. A astronomia é uma das minhas grandes paixões — uma das muitas que quero compartilhar com Rose — e além do mais, quero que as estrelas sejam as únicas testemunhas desse amor que está florescendo dentro de mim como pétalas de uma flor delicada. Quero que elas eternizem esse momento pra sempre.

— Eu... queria você só para mim essa noite. — Não era uma mentira. — E... Também... Eu... quero te mostrar minha luneta.

Ela ri da minha tentativa patética de formular um comentário de duplo sentido, aliviando um pouco a tensão que paira entre nós.

Posiciono-a de frente para meu telescópio, o qual humilhei chamando de luneta, tentando ignorar o fato dela está tão perto de mim — tão perto que posso cheirá-la. Tocá-la. Disfarçadamente, inalo o perfume que emana de sua pele. Doce. Um cheiro artificial, mas não menos marcante.

Infelizmente o céu está nublado, ofuscando parcialmente o brilho das estrelas. Amaldiçoo silenciosamente. Quero que o céu esteja perfeito, digno de sua observadora, que o contempla, agora, com as sobrancelhas franzidas.

— Ah... Edward, isso é tão — ela fica momentaneamente em silêncio, mas, quando sua voz sai, ela não está tão cheia de convicção como estão suas palavras: — Lindo. Tão romântico... Adorei!

Sem pensar, a viro e a puxo para mim. Se não posso contar com as estrelas nesse momento, eu tenho ao menos meus sentimentos para lhe oferecer.

O beijo é intenso e demorado. Um pouco desajeitado devido a minha inexperiência, mas não menos doce.

— Rosalie, eu sei que é muito cedo, mas eu já gosto tanto de você — digo assim que nossas bocas se separam.

— Oh, Edward... Nós acabamos de nos conhecer...

— É, eu sei... Mas... não dizem que o amor é assim: instantâneo e visceral? Porque eu não gosto; eu acho que... amo você. — Respiro fundo e pergunto: — Quer casar comigo? — Sem esperar pela resposta, a beijo novamente, porém seus lábios não estão tão receptíveis como antes — Eu não consigo me imaginar passando o resto da minha vida sozinho agora que te conheci. Diz que sim, por favor.

— Não.

Lágrimas freneticamente emergiam dos meus olhos, nos quais os mesmos ardiam de modo incessante à medida que as recordações se sucediam. Eu, porém, não conseguia chorar. Por mais que fosse isso o que eu ansiava, as lagrimas não desciam. Após longas respirações, desviei a atenção do sapato e notei que Bayley, Bear e Beanie fitavam-me com o que só pude interpretar como preocupação.

Relutante, larguei o sapato no chão e gesticulei para que os cães se aproximassem. Os dois — menos Beanie — correm para mim com suas línguas para fora e rabos abananando alegremente. Esfreguei atrás das orelhas de Bear, e Bayle logo empurrou o companheiro, exigindo minha atenção. Beanie, entretanto, ainda mantinha distância de mim e dos seus amiguinhos, encarando-me receosa.

— Ei, garota! — Chamei batendo as palmas das mãos nas coxas; o som amortecido pelo jeans que abraçavam as mesmas — Lembra de mim? Sou eu, seu dono rabugento, mas que te ama muito apesar de você ter tentado arrancar a metade da mão dele fora... — suspirei — Não vai me dar um abraço de desculpas?

Sem hesitar mais, Beanie se jogou nos braços abertos à sua frente, fazendo-me tombar para trás. Aspirei profundamente o cheiro agradável de seu pelo, enquanto ela acariciava-me com seu focinho, para tão logo lamber meu rosto numa tentativa de tergiversar-se. Os outros não demoraram muito pra se juntarem a ela, salivando coletivamente sobre meu rosto.

— Tá legal... Tá legal — balbuciei tentando afastar aquelas línguas avidas da minha cara — Já chega!

Endireitei-me passado a mão por toda a extensão da minha bochecha, sentindo-a gosmenta sob meus dedos e focei novamente o scarpin azul ao meu lado. Sem preâmbulos, os acontecimentos da noite passada vieram á tona, me transportando novamente para aquele meu universo particular de dor e lembranças.

— ... você viu o que fez Edward?! — Gritara Jasper assim adentramos a sala onde eram realizadas as reuniões, que, naquele momento, estava inexplicavelmente vazia — Você pressionou tanto a garota que ela teve um ataque epilético bem na sua frente. Seu maldito, como pôde ver o corpo dela convulsionando e continuar bombardeando-a com perguntas impertinentes?

Ele estava vermelho. Como um tomate. Sua raiva era ao mesmo tempo cômica e desnecessária. Percebi que apenas alguns centímetros nos reparavam e senti os cantos de minha boca contorcerem-se ligeiramente tentando esconder um sorriso ao notar como ele respirava com dificuldade, cerrando os punhos ao lado do corpo, rangendo os dentes e dirigindo-me um longo e lendo olhar — advertindo-me talvez de suas intenções nada pacificadas e racionais e certamente tentando controlar o desejo de lançar-se contra mim e socar-me até saciar sua ira momentânea.

Igualzinho como fazia quando eramos crianças, pensei tentando abafar a vontade de rir ao imaginar-nos, já adultos, rolando no chão como dois moleques briguentos que um dia fomos. Mas então percebi que nada havia de engraçado na situação.

— Eu estava progredindo com a menina White. Um trabalho árduo de meses ganhando sua confiança, descobrindo pontos importantes para o prognóstico da garota, dando passos progressivos para sua recuperação... Mas tudo vai por água abaixo quando o Sr. Não me toquem, não preciso da sua piedade nem da sua falsa preocupação, se acha no direito de transferir suas frustrações pessoais nos meus pacientes.

— A culpa não é minha se Carlisle não te acha capaz de cuidar dos seus próprios pacientes — murmurei, enfatizando as mesmas palavras que ele.

Seu lábio superior elevou-se com aversão.

— Você foi negligente, Edward, e sabe disso — disse entre dentes — Ok... Sei que seus métodos de persuasão não são nada gentis e que você intimida os internos como o inferno. Mas provocar a garota daquela forma e não prestar socorro? Além de ser uma atitude antiética, é desumano. — Jasper balançou a cabeça. Seu controle parecia estar à beira de um precipício, oscilando precariamente. Era assim. Eu podia saber o que ele estava sentindo só em olhá-lo. E então, de forma inexplicável, esboçou um sorriso cheio de reprovação. — Sabe, às vezes eu me pergunto por que você deixou ela fazer isso com você.

— Não sei do quê você está falando — Cruzei os braços sobre o peito e então rapidamente descruzei-os logo que notei minha postura defensiva. Sabia muito bem a quem ele se referia.

— Rosalie, seu idiota! Só você não vê o que ela fez com você... Eu nem te reconheço mais! Quando cruzo com você pelos corredores, eu não se se vejo meu irmão ou um cadáver — Passou as mãos por seus cabelos, deixando-os em desalinho, como se buscasse entre os fios os últimos vestígios de sua sanidade. Não funcionou. — Porra! Quando você vai superar essa merda toda e seguir em frente? Quando você vai parar de existir e voltar a viver? Por que foi isso o que aquela vadia fez, Edward, tirou sua vontade de viver. Inferno, não aguento mais olhar na sua cara e ver o ser inóspito e sem sentimentos que ela te transformou.

Fez uma pausa, tomando coragem para o que viria a seguir.

— Sinceramente, eu agradeço que ela tenha... saído definitivamente das nossas vidas. Mas me dói presenciar o estrago irreversível que ela fez em você e não poder fazer nada — Num gesto impensado, ele puxou-me pelos ombros nivelando nossos rostos, enquanto eu permanecia num silêncio quase sepulcral, absorvendo suas palavras — Volte a viver, Edward! Pare de existir inercie a lembranças que só te causam dor. Viva! Não só exista.

Viver, não só existir.

Quatro palavras. Separadas cada qual tinha seu próprio significado e devida interpretação. Juntas eram como uma música ruim tocando no toca fitas de um carro antigo. Cujo refrão é impossível de se esquecer por ter marcado um determinado momento de nossas vidas ou por trazer átona sentimentos, até então, reprimidos. Entretanto, quando voltei para casa naquela noite meus pensamentos foram novamente reprimidos pela dor e redirecionados a uma só pessoa: Rose.

À medida que avistava nossa pequena casa tragada pela escuridão, sentia algo dentro de mim morrer: A esperança de que logo ouviria o som irritante do despertador perfurando meus tímpanos e mostrando que tudo não se passava de um sonho.

Com o passar dos segundos, tentei me convencer que acordaria deste transe assim que os doces lábios de Rose roçassem os meus — como fazia todas as manhãs. Eu, então, lhe contaria sobre o quão vivido foi o pesadelo que havia tido naquela noite e, aninhado ao seu corpo como uma criança assustada, confessaria meu medo de perdê-la. Ela envolveria os braços nos meus ombros e me acusaria de trabalhar demais e de que de tanto conviver com loucos eu estava começando a ficar paranoico. Depois conversaríamos sobre assuntos corriqueiros como o tempo, e Rose reclamaria de como seu cabelo e pele estavam reagido com as mudanças climáticas. Conversaríamos também sobre o que ela iria preparar para o jantar e teríamos uma pequena discussão sobre sua vontade de comer fora e minha relutância em enfrentar o trânsito num dia de pico. E, mesmo bravo com ela, fecharia os olhos para apreciar a mudança que seu tom de voz sofria quando ficava irritada; mas, quando fitasse novamente seu olhar violáceo, de um tom que se assemelhava às violetas florescendo no inverno, perceberia que não era capaz de lhe negar nada.

Parei o carro em frente à calçada que antecedia o gramado maltratado da casa. Fiz menção de abrir a porta; mas em troca permaneci sentado ali, encarando o monstro de três andares e as roseiras atrofiadas que um dia compuseram seu jardim. Soltei um sonoro suspiro e fechei os olhos por uma fração de segundos ouvindo apenas o som da minha respiração irregular em harmonia com o palpitar descompassado do coração. Então, bati com força a testa no volante do carro, apreciando a sensação de dor momentânea e esperando que esta diminuísse a que se formara no peito.

Sim, talvez Jasper estivesse certo: eu não sabia mais o que era viver.

No momento seguinte encontrava-me dentro da casa. A dor, sempre presente quando retornava todas as noites para esse mesmo lugar, amalgama-se às lembranças dos momentos felizes que vivi, ali, com Rose. Lutei, entretanto, contra as recordações, determinado a tentar esquecer, mesmo que estas fossem como se um filme mudo passando diante dos meus olhos. Imagens relampejantes do passado que me impediam de distinguir entre a realidade e a ilusão.

Viver, não só existir.

Piscando, olhei em volta como se despertasse de um pesadelo. E, de certa forma, sim, despertei. Foi como se uma luz provedora iluminasse o fim do poço em que eu havia me atirado. Como se a ficha tivesse finalmente caído e dei-me conta da merda que eu fiz da minha vida. As palavras de Jasper ecoando em minha cabeça.

Viver, não só existir.

Minha respiração deixou meus pulmões em um suspiro audível enquanto meus pensamentos se agitavam em conjecturas. E, ali, onde o silêncio predomina onde um dia só se ouvira risos, tomei uma decisão, que se tomada anos atrás, teria me livrado desse martilho que eu praticava contra mim mesmo todos os dias: Voltaria a viver, assim como meu irmão me aconselhara.

Esbocei um pequeno, porém sincero, sorriso nos cantos de meus lábios ao tentar imaginar sua reação quanto tomasse conhecimento do fato. De que como suas simples palavras, pronunciadas num tom autoritário, remanescente de sua época no exercito, me libertaram destas amarras que me prendiam ao passado...

Mas tudo não se passou de uma pequena concessão ao meu livre arbítrio, um insignificante lampejo de lucidez que esmaeceu logo que despertei. E para mim só existia Rose e sua dolorosa ausência novamente.

Em nada importava minha vontade em seguir os concelhos de Jasper e de tantos outros que havia escutado nos últimos anos. Eles nunca entenderiam o quão gratificante era escutar o som da risada rouca da minha linda esposa quando eu a amava incansavelmente à noite. Esse som, sim, estaria gravado para sempre em minha memoria. Não, eles nunca entenderiam como eu ansiava escutá-lo novamente.

Rose deixou cicatrizes em meu copo e alma que nunca me permitiriam esquecer sua breve passagem por minha vida. Eu nunca poderia esquecer da minha amada Rosalie; nunca poderia sequer cogitar seguir em frente sabendo que a havia deixado para trás. Isso era uma traição ao nosso amor.

Traição.

De novo transportado à realidade, me permiti sorrir amargamente ao relembrar que essa palavrinha foi o estopim de toda a minha desgraça. Do fim do meu casamento. Olhei uma ultima e relampejante vez para o sapato em minha mão antes de atirá-lo num rampante porta afora, pronunciando em seguida breves instruções para que os cães o pegassem.

Mecanicamente, adentrei no banheiro anexo ao quarto. Tateei as cegas pela parede até encontrar o interruptor e pressionei-o, mas o banheiro continuava no escuro. Lembrei-me, então, que esqueci de trocar a lâmpada queimada.

Talvez não a troque nunca, pensei despindo-me da calça jeans e abrindo o chuveiro.

Minha pele protestou ao entrar em contado com o jato frio, fazendo-me ranger os dentes. Espalmei as mãos contra a parede, curvando-me, abaixei a cabeça e respirando profundamente, permitindo que a água gélida escorresse por meus ombros, ricocheteando por minhas costas — levando a letargia do álcool para longe. Depois, inclinei a cabeça para trás; a água, agora, açoitando meu rosto sem piedade. Como algum tipo tolo de autopunição. Castigo.

Com movimentos vagarosos, terminei meu banho e envolvi uma toalha em volta dos quadris. Inclinado sobre a pia, olhei-me no espelho, coçando o queixo incomodado com a barbar espessa.

Você fica tão másculo com essa barba por fazer, Edward... Adoro a sensação dela arranhando meu rosto quando você me beija.

As mulheres sempre me acharam atraente. Do adolescente monossilábico ao homem em frangalhos que sou hoje, elas matariam para estar nos meus braços em qualquer época — e Rose não foi uma exceção à regra. Quando questionada sobre as qualidades do marido, lembro-me de ouvi-la ressaltar constantemente atributos físicos, como meu porte e altura que a subjugavam; o tom dos meus cabelos, que, segundo ela, não eram nem loiros, nem ruivos, mas uma fusão fascinante de ambos, como o céu ao entardecer, declarava. Além, claro, do rosto expressivo e os olhos azuis esverdeados que ela dizia tanto amar.

Espalmei minhas mãos sobre o vidro frio, criando uma moldura sobre meu rosto no espelho, perguntando-me se era isso que Rosalie viu em mim: um corpo. Um corpo para satisfazê-la fisicamente e nada mais. Se era assim, porque procurou outro? Ela queria mais de mim? Ou menos?

Encarei meu reflexo opaco mais uma vez, buscando algum resquício do homem que fui um dia, do homem que ela amou; mas não havia nenhuma expressão na minha fisionomia —salvo a tristeza que eu vislumbrava em meu olhar —, não havia nada que traísse a imagem do homem alegre e inexplicavelmente tímido que um dia cativou minha esposa.

Não sendo capaz de tolerar olhar para mim por mais tempo, retornei ao quarto e abri o velho guarda-roupa de mogno, tirando de lá qualquer coisa que me fizesse decente e me protegesse do frio que já se fazia sentir dentro da casa — Apesar da ideia de aparecer só de toalha na recepção do hospital ser demasiada interessante. Sentei na beirada da cama, calçando minhas velhas botas de couro. Havia um buraco em cada calcanhar, mas pouco me importava. Me sentia confortável com elas e não via necessidade de trocá-las. Não obstante, foi um presente de Rose.

Enquadrei meus ombros e a tensão sobre os mesmo se fez notar. Não importa há quantos anos fazia o mesmo ritual, a impressão que eu tinha de estar indo para a forca ainda era a mesma, e não consegui conter o bolo que se formou em meus estomago assim que tirei o jaleco do mancebo próximo à porta e corri dedos pelo tecido branco — quase uma caricia —, lendo superficialmente meu nome em negrito e minhas especializações gravadas em itálico.

Agora você é um homem, foram as palavras de meu pai quando o ganhei. Em nada significava para ele eu já ter uma mulher, estar constituindo minha própria família ou exercer com êxito a profissão que ele escolhera para mim; faltava esta realização profissional para que ele deixasse de me ver como o garotinho que dependeu dele até seus 16 anos para amarrar os próprios tênis.

Estendi o jaleco de maneira displicente. Esta era a prova de que, além de cuidar de mim mesmo, eu era capaz de cuidar dos outros.

Atirei aquele desperdício de pano sobre o ombro e marchei até a cozinha. Onde encontrei Bayley, Beanie e Bear ao lado de suas respectivas tigelas, seus rabos abanando e lançando um olhar especulativo de mim para os recipientes — o sapato já esquecido há muito.

Eu tinha os melhores cães do mundo, constatei enquanto preparava seus jantares. Trovões ensurdecedores estremeciam a casa como se estivesse sendo sacudida e o som de gotas pingando se fazia ouvir ecoando por toda ela; mas, ao contrario de qualquer cão em situação semelhante, meus amiguinhos pareciam alheios a tudo.

Assim que eles devoram suas refeições e as dos outros, despedi-me deles com um carinho rápido em suas cabeças e logo achava-me debaixo da chuva, caminhando calmamente em direção ao meu carro estacionando do outro lado da rua — havia me esquecido de colocá-lo na garagem na noite anterior. O vento lançava a chuva contra meu rosto, atrapalhando minha visão; as roupas aderiam ao meu corpo de uma forma desagradável. Porém, a possibilidade de adoecer e faltar ao trabalho era, no mínimo, tentadora.

Tremendo um pouco pela friagem, olhei para trás, para minha casa, sentindo meu estômago contorcer-se nervosamente, e, suspendendo a respiração, entrei no carro e tirei as chaves do bolso da jaqueta, procurando na escuridão colocá-la na ignição.

— Ainda dá tempo de correr para dentro e se enfiar debaixo das cobertas, como o garotinho medroso que você nunca deixou de ser — sussurrei, indiferente para mim mesmo, ligando o motor e começando a dar a ré; olhando mais uma vez na direção da casa.

Rosalie...

Por um instante, a vi debruçada sobre a sacada de nosso quarto. Os seus longos cabelos loiros serpenteavam ao sabor do vento frio. Seu corpo envolto em uma de suas finas camisolas de seda. Os dedos gesticulavam um “tchau”. Um sorriso travesso brincava em seus lábios, e os mesmos se moviam em um “eu te amo muito”.

Balançando a cabeça, tracei meu caminho para fora da inconsciência. Engatei a primeira e sai bem devagar — mantendo a casa no meu campo de visão o maior tempo possível com a tola perspectiva de capturar minha doce alucinação mais uma vez.

Tão logo, eu percorria uma série de ruas secundarias. As casas e toda aquela aura familiar enjoativa sumiram há muito, dando lugar a prédios cinzentos, tráfego, faróis piscando alucinadamente em meio a chuva e buzinas ensurdecedoras.

Meu destino? O Hospital Psiquiátrico St. Romanus.


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Notas finais do capítulo

Eu não abandonei essa historia!!!