A Herança de Espinhos escrita por Hime Illana


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

⊰ ♔ ⊱ Prólogo ⊰ ♔ ⊱

O Vale

Eu estava naquele lugar outra vez, uma espécie de bosque cheio de árvores brancas secas e de galhos pontudos, era noite, mas não havia estrelas nem lua ou vento ou qualquer som de alguma criatura viva por perto, o céu era um manto negro sobre minha cabeça, ameaçador, como um abismo que poderia desabar e me engolir a qualquer momento.

Eu não estava usando meu velho pijama de algodão, mas um vestido branco reluzente, era muito bonito feito de um tecido tão leve que eu não conseguia sentir sob minha pele e era tão longo que se arrastava pelo chão de pedra enquanto eu andava. Segui em frente, sem saber bem para onde ia, eu só tinha essa estranha sensação de que precisava continuar andando.

Depois de um tempo eu encontrei ruínas pelo caminho, e restos de algumas construções antigas caindo aos pedaços, eu estava entrando no que parecia ser um castelo, ou o que tinha restado dele. Comecei a explorar as ruínas, entrei em vários quartos e salas procurando algo que eu não sabia o que era, mas não havia nada ali, e não parecia que havia sido habitado há muito tempo, eu queria ir embora, voltar pra casa, mas a vontade estranha de continuar procurando era maior do que a minha própria. Enquanto pensava que tudo aquilo só poderia ser um sonho estranho eu encontrei uma grande porta de madeira envelhecida pelo tempo, cheia de entalhes e desenhos que deveriam ser muito bonitos em seus tempos de glória, mas agora, cheia de poeira e teias de aranha, só transmitia abandono, e solidão. Sem hesitar eu empurrei a porta e entrei por ela.

Atrás daquela porta havia um grande salão com várias tapeçarias antigas e tapetes enormes pelo chão, ele não tinha teto e o branco das paredes parecia ainda mais fantasmagórico fazendo contraste com o céu. Entrei no salão e pelo caminho achei uma piscina cheia de uma água escura que parecia refletir o céu negro acima, ou ser um pedaço dele, senti um arrepio e me afastei da piscina, foi aí que vi uma grande escada de pedra com degraus grandes e largos apoiados uns sobre os outros como se formassem uma pirâmide, e no que deveria ser o topo da pirâmide tinham nove tronos prateados, e sentados neles tinham nove mulheres usando longos vestidos pretos que pareciam ser de várias épocas e lugares diferentes.

Cada uma delas estava usando um longo véu que me impedia de ver seus rostos, ao me aproximar eu ouvi um gemido de tristeza bem baixinho que vinha de uma delas, percebi que essas misteriosas mulheres estavam chorando e consolando umas as outras em silêncio, era como se elas estivessem lamentado algo, chorando de arrependimento. Vendo aquela cena eu fiquei confusa e curiosa, tentei dar mais um passo quando acidentalmente pisei num galho seco quebrando-o, naquele momento era como se eu estivesse invisível e tinha acabado de quebrar o encanto me tornando visível novamente, fiquei assustada, pensei que elas fossem brigar comigo por ter entrado ali sem permissão, surpresas com a minha presença elas pararam de chorar e me olharam por debaixo dos véus, eu estava pronta para me desculpar com elas por ter invadido quando elas começaram a chorar novamente e a gemer, foi aí que eu percebi que elas estavam chorando e se lamentando por mim, tudo aquilo era muito estranho, parecia que eu estava vendo o meu próprio velório, não conseguia entender, por que elas estavam chorando por mim? Eu estava bem, então por que elas choravam daquela maneira?

Eu tentei perguntar o que estava acontecendo, mas não consegui, tentei gritar, mas parecia que o som simplesmente não saía, era como se alguém tivesse apertado o botão de mudo do controle remoto em mim, foi aí que percebi que uma das mulheres estava de pé olhando pra mim, ela era a que estava bem no meio das nove e a que estava no degrau mais alto da pirâmide, ela era a única que não chorava mais, ela estendeu a mão pra mim como se estivesse me chamando, eu ia me aproximar quando vi que escorria um líquido viscoso e escuro da mão dela, sangue, por reflexo eu recuei um passo, ela estendeu a outra mão pra mim que também estava escorrendo sangue, implorando por algo que eu não sabia o que era as outras mulheres a imitavam, fiquei chocada com aquilo e estava me preparando para fugir quando ouvi a misteriosa mulher dizer “me desculpe” com a voz trêmula e meio fantasmagórica, eu tentei novamente falar e perguntar o porquê daquilo tudo quando pisei em algo molhado, olhei para o chão e vi que era o sangue que agora descia como uma cachoeira pela escada de pedra, ele ia subindo pelo meu vestido branco como se quisesse me engolir, eu não aguentei e corri, corri o mais rápido que pude tentando me afastar dali, tentando fugir daquele pesadelo.

Quando eu estava quase chegando na porta de madeira, me virei para ver se as mulheres estavam me perseguindo, quando tropecei e caí na piscina da água negra, meu corpo estava pesado e eu não conseguia nadar, sem opção fui afundando cada vez mais naquela escuridão, até que perdi a consciência.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/530289/chapter/1

Acordei assustada com o despertador do celular tocando uma música animada de um grupo de K-pop num volume bem alto, me estiquei até o móvel perto da cama pra desligá-lo, eram 06:30h da manhã, eu tinha entrado de férias na faculdade no último final de semana, mas tinha me esquecido de desligar o despertador.

Era segunda-feira, pensei em voltar a dormir, mas fiquei com medo de voltar para aquele sonho assustador, que, aliás, eu quase não me lembrava. Do que eu estava fugindo mesmo? Que lugar era aquele? Só conseguia me lembrar de algumas partes, mas não conseguia conectar as imagens, então decidi deixar pra lá e me levantar.

Despreguicei-me para alongar os músculos adormecidos e fui começar a minha rotina de todas as manhãs, que era ir ao banheiro, lavar o rosto, escovar os dentes e ajeitar o cabelo, depois fui procurar algo para comer e fui assistir desenhos na televisão, mesmo já tendo vinte e poucos anos de idade eu ainda não tinha abandonado alguns hábitos de criança, como jogar videogame e assistir desenhos animados, e sinceramente nem pretendo abandoná-los. Algumas pessoas podem me achar estranha por ser uma garota jovem e preferir ficar em casa assistindo animes no computador ou lendo no meu quarto do que sair para festas ou bares, mas eu sou feliz assim e nunca liguei muito para a opinião alheia mesmo.

— Bom dia Lena! – disse Elise, minha irmã caçula de cinco anos de idade que tinha acabado de acordar.

— Ora, já acordou! Bom dia minha passarinha! – disse eu, dando um beijo na bochecha dela.

— Bom dia Elena, acordou cedo hoje, mas que milagre! – disse minha mãe, Vivianna, com um bocejo.

— Eu me esqueci de desligar o despertador do celular. – disse eu, enquanto dava uma mordida no meu pão com manteiga.

— Não se esqueça de que você tem que ir à faculdade pegar suas provas.

— Não sei para que, eu sei que eu passei em todas as matérias.

— Mesmo assim, nunca se sabe o que pode acontecer, vai que houve um erro na sua nota e você não passou por décimos! Você precisa ir e conversar com seus professores, não quero filha repetente, seu pai banca seus estudos com muito esforço, ele vai ficar furioso se souber que você não passou em alguma matéria – disse minha mãe, me dando o primeiro de muitos sermões que ela me dá diariamente, na maioria das vezes sem necessidade.

— Tá bom, tá bom, mas espera pelo menos eu terminar meu café em paz! - reclamei.

Depois de comer eu fui tomar um banho e me arrumar, coloquei uma calça jeans escura, uma camisa polo rosa com listras azuis e tênis, eu gosto de roupas mais femininas e bonitinhas, mas infelizmente tudo o que eu tenho no guarda-roupa são roupas casuais e sem graça, mas tenho esperança de que algum dia eu tenha uma condição melhor e comece a me arrumar mais como uma garota e quem sabe até arrumar um namorado, mesmo eu achando que isso seja meio difícil, afinal, eu não sou muito atraente, bom, pelo menos eu não me acho atraente como as outras garotas que vejo por aí.

Chegando à faculdade, peguei minhas provas e, como já tinha adivinhado, fui aprovada em tudo. Eu não sou o que chamam de aluna modelo, pois sou meio preguiçosa para estudar, mas pelo menos me esforço para ficar na média.

Quando estava saindo da faculdade ouvi alguém gritar “pega ele!” por perto, assustada fui abrir o portão da faculdade para sair quando ouvi uma pancada alta seguida de um grito, quando olhei percebi que tinha acertado um homem com o portão e o derrubado no chão.

— Ai meu Deus, desculpe! - disse eu tentando ajudar o homem caído, surpresa com o ocorrido.

— Ufa, que bom, você conseguiu detê-lo! – disse um homem que veio correndo em minha direção seguido de um policial.

— O que? O-O que está acontecendo? – perguntei assustada.

— Esse cara é um ladrão, ele acabou de assaltar a minha loja! – disse o homem.

— Bom, mas agora ele vai é pra delegacia! – disse o policial, levando o ladrão que eu tinha derrubado para uma viatura que estava por perto.

— Nossa, eu não sabia, foi um acidente, eu estava saindo e... – disse eu, com a voz tremendo, nervosa.

— Bom, graças a sua ajuda o ladrão foi pego e eu consegui recuperar minhas mercadorias, gostaria de te agradecer por isso... Já sei, que tal como agradecimento eu te dar alguma joia da minha loja? – disse o homem.

— Nossa, obrigada, não sei nem o que dizer! – disse eu, um pouco mais calma.

Eu fiquei contente com aquilo, afinal eu nunca tive joia de verdade, só bijuterias.

— Ah, que isso, é o mínimo que eu posso fazer. A propósito, meu nome é Sérgio, Sérgio Pellegrino, eu sou o dono dessa joalheria que abriu recentemente. – disse Sérgio apontando para uma joalheria que ficava quase no final da rua.

Sérgio era um homem bonito, com olhos e cabelo castanho mais escuro que o meu e pele morena e, apresar de aparentar não ter mais que trinta anos eu tinha a sensação de que ele era mais velho, bem mais velho do que eu.

— Puxa sua loja mal abriu e já foi assaltada, mas que azar hein?

— Hahahaha – riu ele, um pouco sem graça – Bom, é que minhas joias são tão bonitas que até os ladrões não resistem em querer levar tudo.

— Hmm, pode ser! – disse eu, rindo.

Eu empurrei a porta e entrei por ela, era uma joalheria bem simpática, pequena, mas aconchegante, bem diferente daquelas joalherias grandes de shopping que de tão luxuosas eu fico até com vergonha de entrar, principalmente se eu estiver mal arrumada.

— Fique a vontade e escolha o que quiser, vai ser o seu presente.

Eu olhei todas as vitrines, realmente todas as joias eram lindas, muitas delas faziam o meu estilo, era até difícil escolher uma. Eu estava quase levando uma pulseira linda de ouro com pequenos cristais cor-de-rosa quando eu vi o colar mais lindo que eu já tinha visto na vida, ele era uma corrente de ouro velho e no pingente havia uma pedra oval lindíssima emoldurada com arabescos, ela era da cor do sangue, magnética, impossível desviar o olhar, era como se me chamasse.

— E então já escolheu? - perguntou Sérgio, me surpreendendo e me tirando do meu transe.

— Ah, sim, eu gostei daquele ali, da pedra vermelha.

— Oh, aquele? – disse Sérgio indo para a vitrine e o pegando pra mim – Hmm... É uma boa escolha, mas devo alertá-la que dizem que esse colar traz má sorte.

— Má sorte? Como um colar com uma pedra tão bonita pode trazer má sorte?

— Bom, ele é realmente bonito, essa pedra é um Coríndon mais conhecido como Rubi Estrela e é meio raro encontrar joias com essa pedra.

— Que legal! Rubi Estrela, realmente esse ponto de luz me lembra uma estrela de dez pontas! – disse eu, enquanto admirava mais uma vez aquela pedra reluzente.

— Sim, mas eu ouvi dizer que todos os antigos donos desse colar não tiveram um final feliz, por assim dizer.

— Bom, mas eu não acredito em superstições bobas, eu achei o colar lindo, mas ele parece ser muito caro, acho melhor eu escolher outra coisa.

— Se isso é o que você quer, ele é seu.

— Sério? Mas...

— Pode levar, afinal vocês parecem que tem algum tipo de ligação, parece que ela te escolheu.

Eu olhei mais uma vez para aquele rubi.

— Obrigada!

— A propósito, eu não perguntei o seu nome.

— Ah, é mesmo. Eu me chamo Elena, Elena Lacasse Del Chiaro.

— Que nome bonito! Bom Elena fique a vontade para voltar quando quiser, você é sempre bem vinda. – disse Sérgio, sorrindo.

— Obrigada, pode ter certeza que eu voltarei, amei suas joias.

Assim que saí da loja coloquei meu colar no pescoço e fui em direção ao ponto de ônibus. Passei por uma sorveteria, e como eu adoro sorvete, resolvi comprar uma casquinha de chocolate com creme. Continuei meu caminho enquanto lambia meu sorvete, as pessoas passavam por mim e ficavam admiradas quando viam o meu colar, eu, claro, estava toda orgulhosa e confiante, pois não é todo dia que eu chamo tanta atenção assim, então estava aproveitando o momento. Quando cheguei no ponto de ônibus, fui pegar o meu dinheiro da passagem e percebi que algo estava errado, estava faltando dinheiro na minha carteira, resolvi contar de novo e olhar em todos os bolsos para ver se eu tinha colocado o dinheiro em outro lugar, mas não adiantou, estava realmente faltando dinheiro.

— Isso não pode ser possível, eu tinha certeza de que tinha o suficiente para o ônibus!

Nessa hora, um ônibus parou bem na minha frente para desembarcar passageiros, era o meu ônibus, logo ele fechou as portas e se foi, me deixando lá, frustrada. Sem outra opção a não ser voltar pra casa a pé, voltei todo o caminho que tinha feito, dessa vez fui pelo outro lado da rua, pois não queria passar pela joalheria de novo e correr o risco de Sérgio me ver voltando pra casa a pé, sabendo que eu tinha ido à direção do ponto do ônibus.

— Pelo menos está nublado, seria pior se estivesse fazendo sol forte. – pensei em voz alta, tentando me consolar.

Passei pela praça do bairro, e segui por um atalho que eu sempre tomava quando tinha que ir a pé para casa, era um caminho longo, mas era mais rápido por esse atalho. Depois de seguir até o final da rua, eu dobrei a esquina numa rua residencial que quase ninguém passava, e era assim mesmo que ela estava, vazia, mesmo sendo quase 11h da manhã.

Continuei seguindo até que passou por mim um rapaz usando jeans escuro e camisa social de mangas compridas dobradas até o antebraço que estava suja e rasgada em alguns lugares, ele estava andando de cabeça baixa quase no meio da rua, parecia distraído olhando o tempo todo para o relógio em seu pulso, resolvi ignorar e continuei meu caminho, até que ouvi uma buzina, eu olhei na direção do som e no sentido oposto ao meu vinha um caminhão enorme em alta velocidade, eu teria deixado pra lá e ido embora, mas eu tive uma sensação estranha, foi nessa hora que eu vi uma criatura dentro da cabine do motorista, ela era feia, parecia um monstrinho com grandes olhos amarelos, uma pele escura e dentes pontudos e afiados, ele estava dirigindo o caminhão, mas num piscar de olhos desapareceu numa nuvem de fumaça, o caminhão estava em alta velocidade no meio de uma rua quase deserta e sem ninguém para pará-lo, desse jeito o rapaz ia ser atropelado, foi aí que eu liguei os pontos, o monstrinho queria matar aquele rapaz.

Sem pensar eu corri para tirar o rapaz do meio da rua que ainda distraído, não estava vendo o perigo que corria. Tudo aconteceu muito rápido, eu consegui alcança-lo, mas o caminhão se aproximava cada vez mais, eu só tive tempo de fechar os olhos e o que me pareceu ser uma fração de segundo depois, eu ouvi o impacto.

Fiquei lá, parada, esperando a dor da batida, afinal um caminhão de quase uma tonelada batendo em alta velocidade contra você deve doer bastante, mas eu não sentia nada, absolutamente nada. Será que eu morri? Não, não é possível, eu estou escutando a buzina e sentindo o cheiro da fumaça! Abri lentamente os olhos, com medo do que iria ver, mas o que vi não era nem um pouco parecido com a cena que imaginei do meu sangue espalhado na rua e eu lá parecendo uma batata amassada no asfalto, o que vi foi a frente do caminhão toda quebrada e amassada diante dos meus olhos, mas eu estava ilesa, olhei ao meu redor tentando entender o que tinha acontecido, mas ainda assim não conseguia entender, parecia que algo tinha parado o caminhão a centímetros de mim, mas não havia nada ali, então, o que me protegeu?

— Hmm, que coisa mais interessante! – disse uma voz masculina atrás de mim.

Eu olhei para ver quem era. Era o tal rapaz que tinha tentado salvar, agora percebi que eu tinha entrado na frente dele me fazendo de escudo contra o caminhão. Se eu não estivesse tão assustada eu teria me xingado, como eu pude ter sido tão burra? Eu poderia ter morrido! No que eu estava pensando?

— É a primeira vez que eu vejo algo assim acontecer, fiquei realmente impressionado, e acredite em mim, não é qualquer coisa que consegue me impressionar hoje em dia. – disse o rapaz, numa tranquilidade anormal para aquela situação.

— O... O que? Mas do que você está falando? Eu... Eu... Eu – eu tentei falar alguma coisa, mas eu estava tão assustada que meu cérebro estava totalmente embaralhado.

— Acho melhor sairmos daqui, logo isso aqui vai encher de curiosos e eu não quero aparecer em público numa situação dessas – disse o rapaz me puxando pelo pulso e me levando com ele. Quando estávamos quase dobrando a esquina, os moradores daquela rua saíram para ver o que tinha acontecido, muitos estavam assustados com a batida e outros estavam ligando de celulares para a polícia e os bombeiros, já que o caminhão tinha risco de explodir. Se o rapaz misterioso não tivesse me tirado dali rapidamente, eu teria sido vista por todas aquelas testemunhas e teria sido levada pela polícia para interrogatório.

— Para onde está me levando? – perguntei assustada.

— Vou te levar o mais longe possível daqui, você precisa se acalmar ou pode entrar em choque.

Depois que ele falou aquilo percebi que eu estava hiperventilando, minha visão estava ficando escurecida pela falta de oxigênio no meu cérebro e eu estava tonta. Percebendo que eu estava a ponto de desmaiar ele parou e me encostou no muro de uma casa.

— O... O que aconteceu lá atrás? Você... Parou aquele caminhão? – perguntei tentando respirar e raciocinar ao mesmo tempo.

— Eu? Do que você está falando? Foi você que parou o caminhão.

— Que?! – perguntei quase gritando.

Ele não respondeu e vendo minha expressão de total surpresa ele tentou abafar um sorriso, realmente ele não estava nem um pouco surpreso ou assustado com a situação, parecia que para ele, tudo aquilo era divertido e isso já estava me deixando irritada.

Agora que eu estava tão perto dele reparei que ele era bem mais alto que eu, em pé e na ponta dos pés talvez meu nariz encostasse em seu ombro, acho que ele deve ter 1,85m de altura, ou mais, tinha o cabelo preto, liso e sedoso arrumado casualmente e olhos escuros e misteriosos. Ele era muito bonito e atraente, era forte, com ombros largos e sua mão no meu pulso era firme, mas seu toque era macio, gentil.

— Como assim eu parei o caminhão? Ficou maluco? Como eu poderia ter feito aquilo? – perguntei claramente zangada com a zombaria dele. Será que ele ainda não percebeu que quase morreu há poucos minutos atrás?

— Calma, não precisa brigar comigo, vem, eu te pago um café.

— Mas o que?

Ele foi me puxando para uma lanchonete que nunca tinha visto, percebi que ele tinha me levado por uma rua que eu nunca tinha entrado, ele pediu dois cafés e uns croissants para uma garçonete, e me levou em direção a uma mesa de dois lugares que ficava perto dos fundos da lanchonete. A garçonete trouxe os cafés e os lanches. Eu comi dois croissants, desesperada de fome, nem tinha notado até então que já era mais de meio dia e fazia horas desde a última vez que comi algo.

— E então, qual é o seu nome?- perguntou ele dando um gole no seu café.

Respirei fundo depois de comer, já estava mais calma e estava pronta para ter minhas respostas.

— Elena, e você, quem é?

— Meu nome é Edric, e então Elena, vai me dizer como você fez para parar o caminhão?

— Já disse que eu não parei aquele caminhão.

— Sim, você parou. Eu não sei o que você fez naquela hora, só sei que o caminhão ficou naquele estado só de chegar perto de você.

— Olha, eu não sei do que você está falando, eu não parei aquele caminhão, agradeço a ajuda, mas eu vou embora agora.

Eu me levantei da mesa e estava indo em direção à porta da lanchonete quando num movimento rápido ele se levantou, deu a volta na mesa, chegou até o meio da lanchonete onde eu estava e me puxou pelo pulso como tinha feito alguns instantes atrás.

— Espera, me desculpa, eu não queria te ofender, por favor, sente-se, vamos conversar.

Fiquei impressionada com a rapidez dele, então, meio relutante eu me sentei outra vez.

— Elena, você viu o que aconteceu, o caminhão estava todo amassado, mas nada poderia ter feito aquilo, certo?

— Sim, eu vi.

— Bom, eu acho que você usou algum tipo de poder para deter o caminhão.

— Poder? Do que você está falando? Esse negócio de poder não existe!

— Achei que você diria isso, mas realmente coisas como poderes sobrenaturais existem. Você deve ter visto, não? O que estava dirigindo o caminhão?

Pisquei algumas vezes e a imagem daquela criatura feia veio a minha mente.

— Sim, e-eu acho que vi um tipo de monstro. - respondi com a voz baixa e fraca, meio com vergonha e com medo.

— Aquilo era um bicho papão. - disse ele, como se tivesse falado a coisa mais normal do mundo dando um gole no seu café.

—Bicho papão? Você acha mesmo que eu vou acreditar nisso?

— Se você vai acreditar ou não é problema seu, mas você viu, não viu? Aquilo não era uma criatura normal que se encontra por aí na natureza.

— B-bom, realmente aquilo não era normal.

— Era um bicho papão. Eles vivem em casas onde tem crianças para se alimentarem do medo delas, mas quando as crianças crescem, eles saem à procura de outras casas para morar e de outras crianças para se alimentar, como parasitas.

— Tá, mas então o que aquele bicho papão estava fazendo dirigindo um caminhão, melhor ainda, por que ele estava atrás de você?

— Eu disse que os bichos papões se alimentam do medo que geram nessas crianças, certo? Mas se eles ficarem muito tempo sem se alimentarem ficam muito raivosos e atacam qualquer pessoa que estiver no caminho e isso não é nem a pior parte, quanto mais tempo eles ficam no nosso mundo em contato com as pessoas, mais inteligentes eles ficam. O meu trabalho é encontrar e capturar esse tipo de criatura para evitar que ataquem pessoas inocentes, e como você deve ter percebido, eles não pegam nada leve.

— Realmente, jogar um caminhão contra uma pessoa não é nada legal, mas, você disse trabalho?

— Sim, eu trabalho capturando esses tipos de criaturas sobrenaturais que vem de outras dimensões para a nossa e as mando de volta para onde vieram, há quem nos chame de mediadores ou balanceadores.

— Balanceadores?

— Sim, já que eu mantenho o balanço entre as dimensões, ou seja, eu mantenho o equilíbrio entre natural e o sobrenatural na nossa dimensão.

— Acho que entendi, mas porque você acha que eu tenho algum tipo de poder?

— Primeiro porque você viu o bicho papão, geralmente pessoas comuns não podem ver o sobrenatural, com exceção de alguns casos e segundo porque você parou o caminhão sem nem tocar nele, pela sua reação não acho que foi intencional, mas alguma coisa te protegeu e tenho 100% de certeza de que foi algum tipo de poder.

— Então, eu tenho algum poder sobrenatural? - perguntei ainda sem acreditar em tudo que estava acontecendo. Bichos papões, poderes, mundo sobrenatural, no que raios eu estava me metendo?

— Eu acho que sim, apesar de eu não saber exatamente o que é. Se alguém com um poder sobrenatural tão forte assim estivesse por perto eu saberia, mas eu não recebi nenhum aviso naquela hora... Será que o papão bloqueou meu radar? Impossível, mesmo assim eu teria sentido algo. Bom, eu realmente estava concentrado em outra coisa na hora, mas...

Edric parecia estar envolto em pensamentos e começou a murmurar coisas que para mim não faziam o menor sentido, então tentei fazê-lo voltar ao assunto que estávamos conversando.

— Mas é que é meio difícil de acreditar, bom, eu sempre tive uma intuição muito forte e sempre fui muito sensível às coisas ao meu redor, mas não acho que isso pode ser considerado um poder sobrenatural.

— Acredite em mim, você tem um dom, e se possível gostaria que você viesse até a sede da organização onde eu trabalho.

— Para...?

— Para trabalhar conosco, é lógico! – Edric deu mais gole casualmente em seu café.

Eu ainda estava meio assustada com tudo aquilo e não sei se quero que meu primeiro emprego seja o de espantadora de monstros sobrenaturais que sabem como dirigir um caminhão.

— Olha, eu não sei...

— Por favor, pelo menos venha conhecer... Vamos fazer o seguinte, amanhã eu te encontro nessa lanchonete e te levo até lá, ok? Que tal às 8h da manhã?

Eu não queria aceitar, pois não queria me envolver nesse tipo de coisa. Monstros vindos de outra dimensão, poderes sobrenaturais... Eu realmente não queria essa vida para mim, mas se o que eu vi hoje foi real, então seria melhor eu saber bem do que se trata tudo isso e se for possível, tentar me proteger e proteger as pessoas que amo.

— T-tudo bem, eu acho...

— Ótimo, até amanhã então.

— T-tá, eu acho.

— Ok, tchau, Elena.

Edric se levantou, foi até o caixa pagar nosso lanche e depois de acenar para mim, saiu casualmente da lanchonete, eu segui logo atrás dele, mas ele tinha desaparecido. Voltei o caminho por onde viemos e passei na rua do acidente, que agora estava lotada de policiais, repórteres e curiosos, me afastei dali e segui em direção a minha casa. Quando cheguei já eram 3h da tarde.

— Elena, onde você esteve o dia todo? – perguntou minha mãe, quase histérica.

— Ah, desculpa mãe, é que teve um acidente e eu tive que voltar todo o caminho a pé. – disse eu, numa voz cansada.

— Eu vi na televisão, que batida horrível, um caminhão em plena rua residencial, que absurdo! Bom, o almoço já está pronto há tempos, quer que eu ponha o seu prato?

Minha mãe já estava indo em direção da cozinha.

— Não precisa, eu comi um lanche no caminho, agora vou dormir um pouco, vir andando da faculdade até aqui me deixou toda quebrada.

Fui em direção ao meu quarto me arrastando de tanto cansaço, tirei minhas roupas, e coloquei outras mais confortáveis, me joguei na cama e deitei a cabeça no travesseiro, fiquei pensando em tudo que tinha me acontecido hoje, a batida, o bicho papão, no Edric... Ele faz bem o meu tipo e parece ter a minha idade. Será que o que ele falou é verdade? Bom, eu vi o bicho papão com meus próprios olhos, não tenho dúvida disso. Senti um arrepio ao pensar que esse tipo de criatura existe e está solta por aí. Adormeci pensando nele e no mundo doido em que eu estava entrando.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Herança de Espinhos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.