O que eu fui depois de você escrita por Raissa Muniz


Capítulo 7
Capítulo 6 - A ligação de Carmem




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Helena ainda tagarelava sobre seus sonhos e suas possíveis interpretações psicanalíticas. Mexia o jantar com uma força que não reconhecia na tarde anterior. Indagou Lorenzo com uma ou duas perguntas sobre a tarde com o editor e sentou-se, vencida pelo cansaço.

— Já não sei o que faço com esses sonhos. — anunciou. — Perseguem-me desde guria.

— Procura um terapeuta, ué. Não procurava antes porque não ficava muito tempo em um só lugar... Mas e agora?

Helena ouvia tudo com atenção, recomeçando a mexer a comida.

— Vou procurar. — respondeu por fim, vencida.

Ao se locomover, uma dor de cabeça característica tomou as rédeas da situação. Helena bambeou, segurando-se em uma das cadeiras de madeira que estavam na cozinha.

— O que você tem? — perguntou Lorenzo indo ao seu encontro.

— Fiquei um pouco tonta, mas já passou. — apressou-se a explicar.

Ela suspirou, sentindo um cansaço cada vez mais recorrente percorrer sua espinha dorsal. Por fim, anunciou que iria se deitar. Deu as instruções necessárias para Lorenzo desligar o fogão no ponto certo da comida e caminhou rumo ao quarto do casal.

Deitou-se, fechando os olhos e sentindo o corpo ser tomado pelo cansaço. Sentia seu corpo pesado, quase como carregando um fardo contra a cama, mas a cabeça parecia estar cada vez mais atenta.

Helena abriu os olhos, e olhou em sua volta. Sentia-se novamente uma criança. Seus cabelos loiros eram balançados pelo vento enquanto recomeçava a andar. Dessa vez estava em um campo muito verde cercado por árvores frondosas. Trajava um vestido branco com detalhes dourados e seus pés estavam descalços, sentindo a relva do ambiente. Ela deu alguns passos, mas o céu começou a escurecer de tal forma que a criança não conseguiu correr. Dos arbustos, várias mulheres com rostos desfigurados encaminhavam-se em sua direção, planando sobre o ar. Helena tentou novamente gritar, mas não obteve sucesso. A marcha de rostos desfigurados continuou a se aproximar, causando arrepios intensos em sua coluna.

Entre seus gritos, finalmente conseguira emitir algum som. Tornou a gritar, tomada por um intenso pânico. Seus pedidos de socorro, no entanto, pareciam nunca serem ouvidos.

Assustada, sentiu uma mão que a sacolejava, mas não conseguia identificar de onde vinha. As mulheres de rosto desfigurado passaram a ficar cada vez mais distantes e o campo foi ficando difuso. Helena abriu os olhos pesados, tentando reconhecer em qual ambiente estava. A primeira imagem que teve ao entreabrir os olhos foi a de um Lorenzo um tanto assustado.

— O que aconteceu com você? Mais um daqueles sonhos? — perguntou.

Helena assentiu, sentindo-se novamente no sonho, onde não conseguia emitir som algum.

Respirou profundamente, procurando se reestabelecer naquele ambiente. Já sentada, levantou-se e caminhou novamente rumo à cozinha. Abriu a geladeira e retirou um suco de laranja industrializado que sorveu em vários goles. Lorenzo a acompanhava, preocupado.

— Beber coisa industrializada grávida não faz muito bem. — apontou ele aparentando preocupação. Já estivera perdido em vários sites de gravidez durante os intervalos do trabalho.

— Acho que vou escrever. — respondeu ela, ignorando a sentença do marido.

Caminhou rumo à sala de estudos, sentindo-se um pouco mais forte do que há alguns minutos.

Levantou a tela do notebook, rascunhando seu sonho em uma página em branco do word. Seus dedos percorriam as teclas agilmente, mas a mente permanecia no vasto campo de seu último sonho. Não entendia o motivo de tantos sonhos com mulheres desfiguradas, embora suspeitasse que tivesse relação com as traições de seu pai e o anúncio de sua gravidez. Uma vez na posição de mãe, temia ser trocada por mulheres sem rosto, tal qual acontecera com sua mãe. Seus pensamentos dissipavam as mais diversas opiniões. Embora confiasse em Lorenzo, sempre tivera um temor crescente em se envolver em qualquer relacionamento que pudesse lhe trazer desconfiança e dores de cabeça posteriormente. Assim, evitou durante muito tempo até mesmo os namoricos de escola, preferindo centrar suas forças em traçar um futuro melhor através dos estudos.

Helena, absorta, continuava a escrever quando o celular de Lorenzo anunciou uma nova chamada. Provavelmente esquecido ali antes do dono correr ao encontro de Helena, agora ele vibrava insistentemente. Helena olhou o mostrador, não identificando o número desconhecido. Resolveu, por fim, atender a ligação.

— Alô? — falou, ainda distraída.

— Lorenzo? — uma voz calma feminina respondera do outro lado da linha. Helena arqueou as sobrancelhas, permanecendo em silêncio. A voz recomeçou. — Aqui é Carmem, esposa de Rubens Paiva. Ele me pediu que ligasse pedindo que Lorenzo venha até o escritório munido de mais originais de crônicas. O que está no pacote é incoerente com a quantidade mandada de poesias e contos. — explicou Carmem, já identificando que não se tratava de Lorenzo do outro lado da linha.

De fato, Rubens comentara após a reunião que os trabalhos de Lorenzo estavam incompletos, mas não mencionara nada que recorresse aos talentos de Carmem como secretária. Ela, por iniciativa própria, resolveu pegar o número de Lorenzo com o marido, efetuando a ligação.

Helena assentiu, anotando em um bloquinho de papel o nome da mulher e a finalidade da ligação.

— Tudo bem. Vou avisá-lo. — respondeu, finalizando a ligação após os agradecimentos formais de Carmem.

Lorenzo adentrou a salinha, confuso.

— Acho que ouvi meu celular tocar. — disse.

— E tocou. — respondeu Helena, empurrando o bloquinho de notas para que o marido lesse. — Carmem. — complementou, com interesse na reação de Lorenzo. Apesar de toda a segurança com trabalhos acadêmicos e profissionais, Helena vestia uma casca de superioridade quando na verdade escondia uma insegurança ascendente em questões pessoais, principalmente as amorosas.

Lorenzo deu de ombros, respondendo às indagações silenciosas da esposa.

— É a esposa do editor.

Helena assentiu, retornando ao seu notebook e dispensando Lorenzo silenciosamente com um aceno. Seus pensamentos voltaram para o próprio sonho, apagando e reescrevendo cenas em vários momentos.

Lá fora, Lorenzo refletia sobre a ligação de Carmem. Não se recordava de ter enviado nenhum pacote de crônicas incompleto, mas poderia ser alguma implicância do velho Rubens. Ele não iria entrar em conflito com um titã. Sorveu sua bebida enquanto rascunhava algumas anotações no bloquinho de notas. Teria de procurar novas crônicas para enviar ao editor.

Neste momento, caro leitor, retorno com minhas interpelações de velho escritor falido. Abro a oportunidade para que larguem essa estória agora mesmo. Como já me pronunciei no início da mesma, não se trata de uma estória cheia de graça. Aliás, sinto até mesmo em ter que continuar a escrevê-la. Alguns fatos ainda são dolorosos para o velho falido que vos fala.


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