RELATOS DE UM HOMEM DE BOM CORAÇÃO escrita por Marco Serra


Capítulo 2
Uma visita inesperada




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Isto foi alguns anos atrás. Claro, tudo depende da sua percepção de tempo - dizem que o tempo passa de forma diferenciada para cada pessoa.

– Meu rapaz, você está bem?
– Sim, padre, estou. Só preciso ficar um pouco a sós com Ele.
– Todos precisamos, filho. Fique à vontade na casa do Senhor. Ele está sempre aqui conosco.

Eu poderia ter rido, dizer que nem de longe aquilo era a casa de Deus, e muito menos que ele estava presente. Se nem em sua própria casa ele era presente, sem dúvida não era ali que seria. Esperei o padre afastar-se, então me dirigi aos bancos e ajoelhei-me.

– Pai... Você sabe, eu estou aqui há muito, muito tempo. Eu vi muitas coisas. Eu estava lá, na beira de uma praia, quando o primeiro peixe saiu do mar e começou a lutar para se rastejar pela terra. Lembro que tive vontade de pisar nele, mas Gabriel me alertou "Não pise nele, Thuriel, existem grandes planos para este peixe". Eu estava lá quando construíram a Torre de Babel, e quando ela caiu, os homens começaram a gritar "é a Ira divina!", mas sejamos honestos, bosta seca não deveria ser empilhada tão alto. Eu vi Davi matar Golias, Sodoma e Gomorra, a Grande Chuva, os milagres do Andarilho e sua crucificação. Tenho tentado fazer as coisas certas, dar os conselhos certos. Uma mão no ombro, um empurrão quando necessário, um sussurro ao vento. Eu tenho andado há muito tempo sem rumo, esperando pelo teu perdão, que parece nunca vir.

Olhei ao redor, para me certificar que ninguém escutava.

– Eu preciso saber, Pai. Eu estou no caminho certo? Eu estou fazendo a coisa certa? Eu preciso saber. Me dê um sinal.. Porque se Você não me der nenhum sinal, eu farei... Eu farei o que for necessário.
– E o que seria este "fazer o que for necessário"? - veio uma voz às minhas costas.

Levantei-me, ainda de costas para o lugar de onde a voz veio, mas não abri os olhos. Apoiei-me no banco à minha frente.

– Você não deveria estar aqui embaixo.
– Você também não, mas já está com os primatas sem-pelos há tanto tempo que já consigo sentir o cheiro deles em ti à distância.
– Às vezes me pergunto de que forma até hoje você não caiu..
– Sou mais esperto. Sei quem devo agradar.

Virei-me para encará-lo. Faziam anos desde a última vez que nos vimos. Provavelmente quando eu estava na Alemanha, cortando gargantas de alguns soldados nazistas que haviam acabado de invadir a casa de alguns judeus. Não que eu simpatize mais com os judeus que com os alemães, mas simplesmente era errado.

– Thuriel, você não mudou nada.
– Não posso dizer o mesmo de ti, Mikael. Me diga, quando foi que brotou um saco na genitália de Luiminer? A pobre coitada já deve estar com os colhões roxos de tanto que você vêm puxando.
– Meça tuas palavras ao falar comigo, Caído. Não se esqueça que o único motivo pelo qual tu permaneces vivo é a misericórdia do Pai, que nos proibiu de caçar aos Caídos. Por enquanto...

Me aproximei de Mikael. A sensação de estar tão próximo de alguém que ainda possuía sua Graça era confortadora, capaz de acalmar a mais atormentada das almas, mas eu sabia que por trás desta sensação de paz havia um desejo incontrolável de destruição.

– Se tem tanta vontade de derrubar um dos Caídos, estou aqui. É a sua melhor chance.
– Verme rastejante, eu não preciso que tu me dê uma chance para te pôr abaixo. Não preciso sequer de autorização do Pai. O real motivo para estar vivo é Luiminer, A Rubra.

Isto me pegou desprevenido.

– De quê está falando? De todos nossos irmãos e irmãs, eu tenho certeza que sou um dos menos favoritos dela. Por que ela teria ordenado que não me matassem?

Mikael deu um sorriso sórdido.

– O tabuleiro de xadrez está se mexendo, Thuriel. É uma partida demorada, mas os peões estão se movimentando. E apesar do Rei ser a única peça que não pode ser abatida, a Rainha é sem dúvida a peça mais importante do tabuleiro. Você irá descobrir.

E então, com um vento em meio à uma Capela que não possuía qualquer entrada de ar para explicar, ele não estava mais lá. Ajeitei minha jaqueta e saí para o frio da noite.

Havia algo que me perturbava. O problema não era o que Mikael havia me dito, ou mesmo A Rubra estar me acobertando. Eu teria tempo para me preocupar com suas intenções. Meu maior incômodo era justamente o que ele não disse. Eu podia perceber sua mão por baixo do manto branco, apoiada na manopla da espada celestial, apertando até os nós de seus dedos ficarem brancos pela força exercida, mas ele não a puxou. Sem dúvida as coisas em casa deveriam estar bastante diferentes, ou talvez ele simplesmente tivesse dívidas demais com Luiminer para se submeter à sua vontade.

Qualquer que fosse a resposta, eu tinha a péssima sensação de que eu estava neste tabuleiro, mesmo contra minha vontade.


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