RELATOS DE UM HOMEM DE BOM CORAÇÃO escrita por Marco Serra


Capítulo 1
Prólogo




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Estavam todos mortos.

O último tiro ecoou na calada da noite alcançando os ouvidos de qualquer alma vivente num raio de um quilometro. Tirei meu dedo do gatilho, estava tudo acabado.

Para que algo possa fazer algum sentido, preciso voltar alguns anos atrás, para a noite em que a dor começou.

A vida era bela. O Sol se pondo num belo dia de verão. A família inteira reunia-se todos os pores-do-Sol. Mantínhamos um tom solene, pois assim nosso pai havia nos ensinado. Eramos unidos. Meus irmãos e minhas irmãs trabalhavam duro todos os dias, mas tudo era recompensado. Nossa vida era o paraíso com que todos sonham. Mas, talvez, não para todos.

Certo dia, ao retornar para nosso lar, cheguei bem a tempo de presenciar uma discussão familiar. Não eram comuns de ocorrer, mas não dei importância. Creio que este tenha sido meu maior erro. Tudo o que se passou deste dia em diante talvez pudesse ter sido evitado se eu tivesse interferido.

– O que tanto te incomoda, meu filho? - perguntou nosso pai.
– Você realmente está me perguntando isto? Talvez o fato de você dar mais importância para o teu trabalho que para sua própria família. - retrucou meu irmão.
– Você sabe que não é exatamente assim. Sabes que eu amo vocês de maneira imensurável, mas meu trabalho... Eu também o amo.
– Mais que à nós? -questionou meu irmão.

Meu pai abriu a boca para responder, mas voltou a fechá-la.

– Sabe que não posso responder à esta pergunta...
– Claro que sei. Todos nós sabemos. Você está tão obcecado com suas obras que esqueceu de cuidar de seu próprio lar. Não consegue enxergar o que se passa embaixo de seu próprio teto. Acha que eu sou o único que penso assim? Pergunte aos teus outros filhos! -meu irmão começou a levantar o tom - Thuriel, diga ao nosso pai o que acha do amor dele pelo trabalho?

Congelei. Não estava acostumado a ser desafiado e, me envergonho em admitir, eu concordava em parte com meu irmão, mas não poderia de forma alguma me opor ao nosso pai. Eu o amava demais.

– Bem, eu...
– Thuriel, já conversamos sobre isto - interpelou meu irmão - Você mesmo havia se mostrado desgostoso com esta situação.
– Luc..
– Não adianta - interrompeu-me - Eu sabia que não poderia contar com você. Sempre obediente ao nosso pai, sem questionar, sem pensar - riu-se.
– Não é verdade... - respondi, e então tomei fôlego.

Aqui vai um fato sobre mim: consigo manter a calma por bastante tempo, mas quando eu estouro (raras ocasiões, devo dizer), infelizmente minha língua se move mais rapidamente que o meu cérebro e, quando eu percebo, já falei demais. E apesar de amar demais nosso pai, eu também amava demais meu irmão, e não queria me indispor com ele. Ele era meu exemplo. Era aquilo que eu idealizava para mim. Eu sonhava em, um dia, ser como ele.

– A verdade é que eu também não aguento mais tuas obras, pai. E não é só o fato de você amar teu trabalho mais que à nós mesmos, ou mesmo ter dias em que sequer retorna para casa. Não.. Como se isto já não fosse o bastante, ainda quer que nós trabalhemos junto à ti. Quer que façamos parte de teu trabalho, lhe ajudemos, e eu nunca reclamei disto, mas você sequer demonstra gratidão. Cada vez se afunda mais no trabalho.. Sinceramente? Eu gostaria que tuas obras fossem abaixo e..
– Já chega! - exclamou nosso pai - Eu já ouvi o bastante..
– Não, pai, não... - começou meu irmão,o canto do lábio esquerdo se curvando num sorriso - Você nem sequer começou a ouvir.

Eu reparei um brilho diferente nos olhos do meu irmão. Não dei importância, achei que fosse apenas impressão, mas infelizmente, tarde demais, descobri que não era impressão.

– ... Thuriel e eu não somos os únicos a pensar assim. Metade da família pensa o mesmo. Pai, queremos que largue seu trabalho e volte para casa.
– Não me dê ordens - vociferou nosso pai - Se não estiver satisfeito, sinta-se à vontade para ir embora de casa. E todos os que não estiverem satisfeitos, que façam o mesmo! Mas tenham em mente: se vocês saírem, JAMAIS os aceitarei novamente!

Meu irmão e eu nos entreolhamos. Sem nenhuma outra palavra, meu irmão deu-lhe as costas e caminhou em direção à porta. Antes de cruzá-la, olhou para nosso pai.

– Você se arrependerá deste dia, pai, e eu me certificarei disto. Irá se recordar disto por toda tua vida, perguntar o que poderia ter sido diferente. E eu farei você pagar por isto destruindo aquilo que lhe é mais importante e precioso.
– Não ouse...
– Ah, sim, eu ouso. E não há nada que possa fazer para me impedir. Thuriel, - disse, virando-se para mim - a pergunta é simples: vem ou fica?

Eu havia ido longe demais com nosso pai. Não poderia, agora, abandoná-lo, por mais que amasse meu irmão.

– Eu não posso ir, Luh...
– Você nunca vai mudar. Sempre o mesmo soldadinho.. - disse, virando as costas e cruzando a porta para fora.

Houve um momento de silencioso desconforto no ambiente.

– Pai...
– Não diga nada, Thuriel. Ele tomou a decisão dele. Ele e todos aqueles que estão indo com ele.
– Todos aqueles...?
– Sim. Ele não está indo embora sozinho. E você vai com ele.
– O quê? - questionei, espantado.
– Você compartilhava de suas dúvidas. E você mesmo alegou que gostaria que meu trabalho fosse abaixo. Não posso correr o risco de você sabotá-lo. Você me desapontou, me decepcionou, meu filho.
– Pai, o senhor sabe que jamais seria capaz de fazer qualquer coisaque lhe atingisse!
– Não tenho tanta certeza assim. Nunca achei que seu irmão fosse fazer isto. Eu dei tudo à ele, e ele me virou as costas. Eu ordeno que você vá embora. Vá, e não volte mais.

Antes que eu pudesse suplicar qualquer coisa, senti uma sensação como um soco no estômago me atingindo. Eu apaguei. E quando acordei, estava deitado no solo de um deserto. Ao me levantar, olhei ao redor e não vi nada, ou ninguém. Eu sabia o que havia acontecido. Não podia, não queria acreditar, mas sabia que era exatamente o que havia acontecido.

Eu havia caído.


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