Scape escrita por Burn


Capítulo 2
Freak


Notas iniciais do capítulo

Super obrigada aos quinze comentários no prólogo. Vou correndo responder um por um agora u.u
Desculpa demorar uns diaszitos, mas cá estou eu e espero que gostem.



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Oliver estava fazendo sua festa de 13 anos, mesmo que meus pais nunca tivessem descoberto a origem de Oliver muito menos sua idade e a data de seu aniversário, eles resolveram que o dia em que o encontraram roubando pedaços de bolo de chocolate seria o dia de seu aniversário. A idade era aproximada as informações que os médicos acreditavam.

A casa estava lotada, haviam amigos, parentes, parentes de amigos, vizinhos e até mesmo as professoras da pequena escola onde Oliver e eu estudávamos no final da rua estavam lá. Em meus aniversários nem um quarto dessas pessoas compareciam. Meus pais nunca nos trataram com diferença. Eramos claramente amados da mesma maneira, porém eu sabia que o dia do aniversário do Oliver era o dia dele, assim como o dia do meu aniversário era meu dia, então, assim que a festa começou eu subi até o sótão onde permaneci por um bom tempo. Ninguém havia sentido minha falta lá embaixo, e, se era para ficar deslocada em meio a várias pessoas eu preferia ficar sozinha assistindo o quintal da única janela de vidro que clareava o lugar.

Eu vi o parabéns e também vi quando Oliver caminhou com seu pedaço de bolo para dentro de casa. Depois disso lembro-me de deitar no sofá velho que era da minha avó e minha mãe nunca tivera coragem o suficiente para desfazer-se, por isso permanecia lá em meio as outras tralhas. Fechei os olhos e assim que os abri Oliver estava ao meu lado, inexpressivo, segurando aquele pedaço de bolo de chocolate.

Aquela era a terceira ou a quarta vez que ele me olhara nos olhos em minha vida.

Ele não sorriu, nem sequer falou uma palavra. Estendeu o braço e eu timidamente peguei o bolo. Nossas mãos se encontraram pela primeira vez por um breve segundo e isso foi o suficiente para causar um choque em ambos. Recolhi minha mão rapidamente com um grito abafado e quando finalmente olhei para frente, Oliver estava desmaiado no chão. O medo de encostar nele novamente e provocar algo pior fez com que eu me escondesse em meio as caixas empilhadas por lá. Não demorou muito até que meu pai e minha mãe aparecessem e o encontrassem. A festa acabou e Oliver passou o resto da semana com febre e de cama.

A culpa me corroía mesmo ele não tendo falado para nossos pais que eu estava no sótão antes dele desmaiar. Eu sabia que ele sabia que aquela febre toda era culpa minha.

***

Nossos pais nunca entenderam o fato de eu e Oliver raramente nos falarmos. Eles tentaram muitas vezes nos aproximar, ou fazer com que interagíssemos um com o outro mas meu irmão adotivo era impassível a mim . No final eles aceitaram porque achavam que cada um estava respeitando o espaço do outro.

Outra tentativa foi dois anos depois, quando eu já tinha dez anos.

Desde o início, quando minhas primeira memórias começaram a se fixar na minha mente, eu achava que meu irmão apenas não ia com a minha cara, e, quando o deixei febril e de cama por uma semana minha teoria mudou para algo um pouco mais elaborado: Passei a acreditar que eu e Oliver apenas havíamos nascido para nunca, em hipótese alguma, nos aproximarmos. Não era uma teoria muito conformadora mas diminuía a frustração. Isso até eu encontrar recortes de jornais com algo que jamais haviam mencionado a mim.

Todos os médicos que trabalharam no meu parto morreram.

Talvez eu realmente fosse uma aberração e meu irmão sabia disso.

Essa ideia me acompanhou por dias a fio. Primeiro a negação, depois aceitação e por ultimo negação novamente.

Talvez tudo não passasse de uma fatalidade, inclusive o fato de Oliver ter desmaiado. Talvez ele estivesse doente antes mesmo de me tocar.

Era uma sexta-feira quando desci as escadas ainda ponderando esses pensamentos. Na sala os amigos de Oliver riam de alguma palhaçada que ele acabara de fazer. Ele era tão carismático que chegava quase a ser impossível de acreditar que nossas únicas frases trocadas durante esses dez anos de convivência foram: ' A comida esta pronta', ' a mãe mandou te chamar', 'o pai mandou te chamar', 'sua vez de lavar a louça' e ' você esta me atrapalhando' -essa última era a preferida dele. No entanto, ali estava ele fazendo palhaçadas, sorrindo para as garotas, jogando videogame com os garotos.

Assim que pisei no último degrau, sua expressão se fechou completamente. Ele não precisava olhar para mim para saber que eu estava lá. A aberração. Talvez esse fosse exatamente o pensamento dele.

Segui para a cozinha, resignada e desolada.

Minha mãe cozinhava o jantar. Ela adorava cozinhar e passava praticamente a maior parte do tempo na cozinha. Eu a considerava a melhor cozinheira do universo, porque todas as suas receitas eram feitas com amor e o sorriso que ela abria quando sentávamos à mesa e fazíamos um elogio não tinha preço.

Amanda, ou Am, como preferia ser chamada, tinha os mesmos cabelos loiros, o nariz, e as sardas que eu tinha. Já meu pai, tinha os mesmos olhos, boca e meu formato de rosto. Eles se amavam incondicionalmente e também amavam a mim e a meu irmão da mesma forma. Eu sabia que quanto a eles não podia reclamar de forma alguma, já quanto ao meu irmão... chegava a ser frustrante.

Assim que me viu subir na banqueta do balcão ela abriu um grande sorriso e arrastou um prato com cookies recém preparados pela pedra de mármore até o meu alcance.

–Ainda estão meio quentes, mas acho melhor você pegar uns agora, antes que Oliver e sua cambada acabem com tudo- me aconselhou amigavelmente.

Assenti mas não peguei nenhum. Não estava com vontade.

Minha mãe me olhou desapontada. Essa era a primeira vez que eu recusava algo que ela havia feito.

–Algum problema Liv?- ela se inclinou sobre o balcão, quase fazendo com que seu cabelo tocasse os cookies.

Ponderei por um breve momento se deveria falar ou não e por fim decidi que sim.

–Mãe, porque o Oliver não gosta de mim?

Seus olhos esbugalharam-se de forma assustada pelo choque da pergunta. Não era surpresa que ele não gostasse de mim, a surpresa era eu fazer uma pergunta dessas tão diretamente.

–Quem disse que ele não gosta de você?- ela desviou o assunto, fingindo casualidade ao virar-se de costas para pegar um pano e um prato molhado.

–Eu sei que ele não gosta de mim- suspirei.

–Bobagem filha- ela riu nervosa, esfregando o pano no prato freneticamente.- Ele gosta de você sim, você é a irmãzinha dele. O Oli só é meio tímido com as pessoas que ele ama.

–Mãe! Eu já falei para você parar de me chamar de Oli, parece que sou um bebezão..

Paralisei ao ouvir a voz de meu irmão logo atrás de mim. Será que ele tinha ouvido toda a conversa?

Ele entrou no meu campo de visão assim que se aproximou da mamãe e pegou um cookie. Apenas o balcão nos separava e a ideia de estar tão perto dele me deixava apreensiva. Só ficávamos próximos assim quando íamos à algum lugar de carro. Ele em uma janela e eu na outra.

– Posso saber o que a senhora estava falando de mim pelas minhas costas?- ele sorriu envolvendo um braço em sua cintura enquanto o outro levava o cookie boca.

Ele era muito carinhoso com a nossa mãe, isso eu não podia negar.

Ainda paralisada vi as engrenagens na cabeça de minha mãe rodarem. Ela ia sair pela tangente e ainda deixaria meu irmão na saia justa.

–A Olivia só estava perguntando o porquê de você não gostar dela- falou com um sorriso sacana.

Me arrependi completamente de ter aberto a boca. Queria que todas as minhas frases ditas retornassem exatamente de onde elas vieram.

Ele estava claramente chocado com a pergunta. Seus olhos castanhos me encaravam pelo que parecia ser a quinta vez da minha vida.

–E-e-eu, hãn... eu – gaguejou.

A ansiedade de finalmente receber uma resposta fez com que minha barriga parecesse fria.

–Eu -

–Oliver, é sua vez!- Brad, o amigo loiro, gritou da sala interrompendo o que parecia ser a declaração da minha vida.

–Eu tenho que ir- desculpou-se, salvo pelo gongo.

Meus ombos murcharam enquanto ele saia da cozinha. Desci da banqueta e pude ver o olhar de minha mãe desapontado, ela pegou um cookie e me entregou.

–Esse eu deixo você comer no seu quarto.

Agradeci e fiz exatamente o que ela falou, fui para o meu quarto. Passei o resto do dia lá e quando senti fome comi o cookie, mas não sai.

Já passava da meia noite quando ouvi porta do meu quarto sendo aberta. Eu estava deitada na cama com a coberta até o topo da cabeça.

Provavelmente era a mamãe ou o papai dando uma verificada para ver ser eu realmente estava aqui. Assim que a porta se fechou eu abaixei a coberta até o pescoço. Me surpreendi ao ver Oliver caminhando em direção a minha cama. A pouca iluminação provinda do abajur deixava a pele pálida dele com um tom amarelado. Vestido apenas por uma samba canção de desenhos aleatórios e uma regata branca, ele se sentou na beirada da cama.

Ergui o corpo e sentei-me também desconfiada de que aquilo podia ser um sonho.

O cabelo escuro de Oliver estava bagunçado como se ele tivesse rolado na cama por muito tempo. Seus olhos estavam focados nas estampas do meu edredom. Ainda que ambos estivéssemos sentados, ele continuava muito mais alto que eu por consequência da nossa diferença de seis anos.

Ficamos daquele jeito pelo que pareceu uma eternidade. Ele olhando o edredom e eu o olhando. Quando seus olhos castanhos finalmente tomaram coragem e se encontraram com os meus, seus braços longos me puxaram e me envolveram contra seu peito.

Arregalei os olhos, amedrontada pelo fato de poder talvez causar uma febre que durasse meses, ou até mesmo sua morte.

Seu queixo pousou sobre minha cabeça e aquele ato me fez desistir de tudo. Envolvi meus braços ao redor dele e fechei os olhos, me entregando a primeira melhor sensação que eu experimentava em minha vida.

Meu irmão não me odiava.

Eu não estava matando-o.

Ele permanecia lucido me apertando firme contra seu peito.

Ele não tinha repulsa de mim.

Permiti que a felicidade envolvesse cada pequena partícula do meu ser. Ser aceita pelo meu irmão adotivo era o meu maior desejo. Eu o amava e aquela sensação de retribuição fazia com que eu me sentisse segura, do mesmo jeito que eu desejara milhares e milhares de vezes se nossa relação fraternal fosse normal, assim como era a das outras pessoas, ou as dos filmes.

Era como se estivéssemos flutuando em uma bolha. Eu queria que esse momento nunca acabasse, mas infelizmente ele acabou. Senti o abraço de Oliver se afrouxando e quando abri o olhos percebi que não estávamos flutuando em uma bolha. Muito pelo contrário. Tudo ao redor flutuava, desde minha escrivaninha, ao meu abajur, meu tapete, meus ursos de pelúcia, meus livros e até mesmo minha cama conosco em cima. Empurrei Oliver completamente assustada e tudo foi ao chão com um estrondo alto suficiente para que a vizinhança ouvisse.

Não tive tempo nem de assimilar os acontecimentos, nossos pais apareceram na porta vestidos de pijama e encontraram seus filhos. Um mais assustado que o outro.

Nenhum de nós ousou confessar o que aconteceu.

Nenhum de nós queria se passar por louco.

Depois disso, não havia mais dúvidas que eu realmente fosse uma aberração. Nem para mim, nem para Oliver. Ele tinha tanta certeza disso que nosso relacionamento fraternal evoluiu de zero à hostil.

Principalmente depois daquele inverno rigoroso. Nossos pais haviam viajado para a casa da vovó, porque ela estava muito doente e, sem escolha, acabaram deixando Oliver para cuidar de mim. Seria coisa de quatro dias e ele já tinha idade para cozinhar algumas coisas e fazer com que eu não cometesse nenhuma besteira.

Foi exatamente uma hora depois dos nossos pais saírem que eu vi umas pessoas de preto paradas no jardim da parte de trás da casa.

Eu estava com vergonha de falar com meu irmão que assistia TV sentado na sala, mas ainda assim meu senso de proteção me dizia que se eu não falasse nada, algo muito ruim aconteceria.

–Oli- chamei com a voz meio incerta.

Ele virou o rosto na minha direção com uma expressão nada boa. Talvez pelo apelido. Talvez por mim. Independente de tudo, evitei seu olhar para não desistir de dizer o que eu tinha para dizer.

–Tem uns caras no jardim- sussurrei. Não foi baixo o bastante para que ele não entendesse, eu tinha certeza de que ele tinha ouvido.

–O que?- perguntou mais como se quisesse uma confirmação do que eu dissera.

Não foi necessário.

Da sala ouvimos alguém bater na porta dos fundos da cozinha. Meu irmão adotivo se levantou alerta. Tão alerta que consegui realmente sentir o medo da situação.

Ele me pegou pela mão. Foi rápido, apenas para me direcionar para o armário que ficava em baixo da escada. Ele me jogou bruscamente lá dentro com a intenção de me proteger e não de me machucar, mas a dor do impacto da parede contra as minhas costas fez com que eu me encolhesse no chão.

–Não saia daqui- ordenou antes de bater a porta e me deixar no breu total.

Não que fosse muito possível, mas consegui me encolher mais do que já estava encolhida. Não dava para ouvir nada do que acontecia do lado de fora de casa. Cada segundo parecia uma eternidade. Cada segundo parecia adicionar mais medo e ansiosidade aos meus sentimentos.

Não sei se foram cinco, dez ou quinze minutos que passei lá dentro. Só sei que quando ouvi o grito de Oliver não pensei em mais nada. Tateei a maçaneta do armário no escuro e quando finalmente consegui sair fui correndo até a porta da cozinha abrindo-a sem a mínima ideia do que faria.

Eram três homens vestidos com sobretudo preto. O primeiro tinha cabelos longos e grisalhos, mesmo sem aparentar velhice. O segundo era alto, muito alto, e careca. O terceiro era o mais baixo e o que mais dava medo, principalmente pela sua cicatriz que pegava seu olho esquerdo e ia até o lábio. Devia ser uma gang que queria roubar a casa.

Eles estava em formação de V, uns dois metros de distância de Oliver e quando abri a porta os olhos dos quatro simultaneamente vieram até mim.

Senti o frio tomar meu corpo e quase chegar a minha alma.

–Eu mandei ficar lá dentro- vociferou Oliver com tanto ódio que me fez temê-lo mais do que temia aos ladrões.

–Aí está- falou o grisalho apontando para mim com um sorriso sinistro.- Segure-o – ordenou para o grandalhão que prontamente obedeceu erguendo com facilidade Oliver pelo pescoço.

Assisti horrorizada quando os pés de Oliver deixaram de tocar o solo. Ele se debatia e tentava inutilmente soltar as mãos do careca de seu pescoço.

O medo começou a vazar pelos meus olhos em forma de lágrimas. De súbito forcei meu corpo a correr e bati com toda a força que eu tinha no careca musculoso.

Uma garotinha de dez anos batendo numa montanha de músculos.

Ele sequer saiu do lugar. Talvez não estivesse nem sentindo meus golpes. Os outros dois que estavam um pouco atrás deles riram de mim. O grisalho chegou a bater palmas.

Não me importava o quão inútil eu estava sendo, eu não deixaria que enforcassem meu irmão.

O grandalhão jogou Oliver quase sem vida na grama e olhou para mim. Eu continuava a socá-lo na barriga e quando ele abaixou meus socos passaram a atingi-lo no peito.

Encarei seus olhos escuros ainda mais altos que os meus e parei de socá-lo gradativamente.

Naquele momento eu soube como é ter a sensação de estar prestes a morrer.

Recuei assim que ele ergueu a mão para tocar em mim. Sua mão era tão grande que podeira facilmente cobrir o meu rosto inteiro.

Minhas costas bateram bem na mesa de madeira que ficava no meio do gramado, me impedindo de recuar mais. O pânico me tomou por completo, lancei um ultimo olhar para Oliver que se recuperava não muito longe de mim e então fechei os olhos esperando pelo pior.

O filme de toda a minha vida passou diante dos meus olhos e a raiva por ter que morrer tão cedo tomou meu corpo. Não havia mais medo, só raiva. Raiva do que esses caras fizeram com Oliver, raiva do que eles fariam comigo. Era tanta raiva que me forcei a abrir os olhos só para lançar o meu ultimo olhar de desgosto ao cara que seria meu assassino, e, assim que o fiz, o careca caiu diante dos meus pés se retorcendo de dor. Olhei para os outros dois que passavam pelo mesmo.

Logo a imagem do jornal com a notícia dos médicos mortos tomou minha mente.

Me apoiei na mesa atrás de mim para que eu não caísse. Os gritos dos homens eram tão altos que transpassavam a agonia para qualquer um que os visse.

Oliver me puxou pelo braço e me jogou para dentro de casa, fechando a porta logo em seguida. Ele permanecia do lado de fora.

Não demorou questão de segundos para o barulho das viaturas se misturarem aos gritos dos homens. Os gritos cessaram assim que a casa foi invadida pelos políciais.

Os três homens desapareceram assim como meu irmão. Papai e mamãe voltaram para casa no mesmo dia e o terror dos dois pelo acontecido era muito pior do que qualquer gang invadindo sua casa.

Mamãe passou os três dias seguintes acabada, chorava tanto que poderia até ficar desidratada. Meu pai não chorava, mas também não comia e nem falava uma palavra.

Os policiais procuraram, mas não os encontraram em lugar algum. No terceiro dia, Oliver apareceu de roupas queimadas.

De início fiquei muito feliz, mas depois tive medo de que ele contasse o que vira eu fazer. Eu tinha muito medo das consequências que isso poderia trazer a mim e a nossa família.

Para a minha sorte ele não contou. Mas também não agiu como se nada houvesse acontecido. Agora ele tinha mais medo de mim, ou talvez mais ódio por saber que eu poderia causar algum mal à família.

Com o passar do tempo passamos a trocar talvez mais uma meia dúzia de frases iguais e xingamentos, muitos xingamentos- ele me xingava porque me odiava, eu só revidava como uma forma de autoproteção, mas aos poucos começava a odiá-lo em resposta.

Assim seguiram-se mais dois anos. Eu não queria mais aceitação. Eu só queria ser deixada em paz, queria que Oliver não existisse, que ele nunca tivesse aparecido na cozinha dos meus pais.

Agora ele tinha dezoito anos. Saia com mulheres. Bebia. Fumava. E fingia ser um santo na frente de nossos pais.

Não era possível que só eu ouvisse as mulheres que ele trazia pela madrugada para a própria casa e... ãhn... fornicava descaradamente em seu quarto que, detalhe, era colado com o meu.

Papai o encobria, eu tinha certeza. Eles eram muito amigos, algumas vezes até bebiam no jardim juntos. Oliver era a realização dos sonhos de meu pai, já que ele sempre quisera um filho, e não uma filha. Eu sabia que ele me amava. Ele dedicava muito de seu tempo me ajudando em meus deveres de casa, me levando às aulas de teatro e até mesmo assistindo séries na TV pelos finais de semana comigo, mas apesar disso, nada se comparava ao filho carismático, maior de idade, companheiro fiel e macho.

Eu estava cansada disso. Eu estava com ciúmes. Oliver sequer era filho do meu pai ou da minha mãe.

Ele nunca falava meu nome, em vez disso, me chamava de Praga, mas não de forma carinhosa com minha mãe jurava de pés juntos que era. Ele me chamava de Praga de forma pejorativa, com direto a careta durante a pronuncia ou expressão de desdém.

Oliver sequer era meu irmão.

E foi aí que eu resolvi revidar. Resolvi que o faria sofrer de alguma forma. Me perdoem pela falta de criatividade em meus doze anos de vida, mas resolvi dedurar que Oliver fumava para nossa mãe. Ela repugnava cigarros, principalmente porque seu pai havia morrido sofridamente por câncer no pulmão e descobrir que o filho querido e perfeito fazia isso sob o teto dela com certeza renderia uma boa bronca.

Infelizmente meu planejamento não deu lá muito certo. Oliver me pegou no flagra assim que encontrei o maço de cigarros escondido em sua gaveta de camisetas.

–Ponha isso no lugar e saia do meu quarto agora, Praga- falou curto e grosso, terminando com seu xingamento rotineiro.

Sacudi a caixinha ouvido os cigarros tamborilarem de um lado para o outro e sorri convencida.

– Espera só até a mamãe descobrir isso.

–Você não vai contar- eu o vi arquear uma sobrancelha, ainda que ele não estivesse olhando diretamente para mim.

–Quem vai me impedir?- respondi.

Oliver fechou os olhos e suspirou fundo. Em seguida caminhou até a porta, onde a escancarou e olhou para mim. Olhou de verdade. Não de forma inexpressiva como sempre, mas de forma cruel.

–Anda, vá em frente então. Mamãe está lá embaixo chorando e uma noticia dessas com certeza vai alegrá-la muitíssimo- sorriu irônico.

A imagem de minha mãe chorando surgiu em minha mente. Por que é que ela estava chorando?

– Anda logo, você não quer me dedurar? Não quer ferrar comigo? Está esperando o que, hein Praga? - seu olhar duro e sua voz desdenhosa fazia com que eu imaginasse veneno saindo de sua boca.

–Por que ela está chorando?- indaguei confusa.

Ele riu. E eu não sabia mais se era irônico ou engraçado.

–Porque você é uma garotinha muito idiota- falou calmamente, palavra por palavra, como se eu tivesse 4 anos de idade.- Porque eu não suporto mais ter que passar pelo que eu passo por sua causa e porque semana que vem vou embora. Me alistei para o exercito. Faria qualquer merda para me ver longe daqui, longe de uma...

Larguei a caixa de cigarros. Elas caíram com um baque surdo no tapete.

Aberração.

Era isso que ele ia falar, eu tinha certeza.

Ele realmente sabia.

Ele sempre soube.

Eu sabia disso.

Engoli seco, como se comprimisse toda a dor que suas palavras causaram em mim para dentro do meu estômago. Meus olhos arderam e eu sabia que era porque as lágrimas queriam jorrar descontroladamente, mas não as deixei. Não permiti que uma lágrima sequer caísse porque não valeira a pena. Porque eu queria acreditar que meu irmão estava mentindo. Ainda que as palavras fossem verdadeiras, e o jeito que ele as pronunciou friamente também fossem bem verdadeiros, eu queria negar. Seria mais feliz se negasse. Se fantasiasse que ele só estava indo para o exercito, mas não por minha causa, não por minha culpa, estava indo só porque deu vontade de ir.

Sai do quarto de Oliver e desci as escadas. Havia sim a remota possibilidade de ser só uma brincadeira de mau gosto caso minha mãe não estivesse chorando na sala e meu pai não estivesse amparando-a, mas sim, ela estava mesmo chorando e ele a estava abraçando, consolando, dizendo que todos os garotos precisavam se alistar, que não teria nada de mais nisso...

–Eu só não entendo porque ele realmente quer ir se tem a opção de ficar- lamentou minha mãe entre lágrimas. A ideia de perder o filho uma segunda vez a aterrorisava.

– É porque sou uma aberração- respondi baixinho ainda da escada. Eles não me ouviram, nem sequer me viram subindo os degraus novamente. Agradeci pela porta do quarto de Oliver estar fechada e me tranquei em meu próprio quarto.

Só lá permiti que todas as lágrimas caíssem de jeito que deveriam cair.

A semana seguiu como se alguém em casa tivesse morrido. Minha mãe de olhos inchados não cozinhava mais e chorava toda vez que esbarrava em ''seu pequeno Oli'' pela casa.

Meu pai estava triste por minha mãe estar triste. Ele até saia do trabalho mais cedo, tamanha era a preocupação.

Enquanto isso, minha peça de teatro se aproximava. Eu tinha ganhado o papel principal de Julieta e tínhamos até saindo para comemorar há dois meses no restaurante preferido de meu pai já que tudo era graças a ele e seu esforço para me levar às aulas de teatro na cidade vizinha. Mas agora, ninguém mais se lembrava. Eu também não tinha coragem de comentar. Parecia que estaria sendo insensível ao sofrimento de minha mãe, porque seria justamente no dia de partida do meu irmão.

Por isso, na sexta, fui sozinha após a escola ao ensaio final. Depois de quase me perder entre ônibus e mais ônibus, cheguei, ensaiei e voltei, quase onze horas da noite. Mas ninguém havia sentido a minha falta. Mamãe e papai estavam capotados na sala. Do hall de entrada era possível ouvir o ronco de ambos. Segui para a cozinha onde havia uma caixa de comida chinesa, comi os restos de subi as escadas.

Estava tão cansada que dormi com aquela roupa mesmo.

No dia seguinte acordei meio-dia , tomei banho e me arrumei. A peça seria lá pelas cinco da tarde e Oliver partiria às oito. Meus pais tinham tirado o dia para as despedidas e tentaram me acordar mais cedo várias vezes, mas eu não quis participar. Evitava meu irmão de todas as formas desde que ele me dissera os motivos para ir embora.

Não me forçaram a nada para a minha sorte.

Assim que o relógio bateu uma e meia da tarde, me despedi de meus pais. Não falei ao certo onde iria, tinha esperança que eles se lembrassem da peça, tinha esperança que eles se importassem comigo, mas nada disso aconteceu. No final eles ficaram meio decepcionados por eu não ficar para levar meu irmão ao aeroporto e eu fiquei decepcionada por ser simplesmente esquecida em questão de uma semana.

Apesar de tudo isso, Julieta era o papel principal e eu não podia deixar o grupo na mão. Depois de me perder novamente acabei chegando quase quatro e meia no teatro municipal da cidade vizinha. Só deu tempo de por o figurino e em poucos minutos eu estava no palco.

Atuar em frente a uma plateia não foi exatamente como imaginei que fosse ser. Atuei, dei o meu melhor, mas não era como se tivesse alguém que se importasse comigo ali assistindo. Não era como se houvesse alguém só focado em mim, nos meus erros e acertos em cima do palco.

Ninguém comemoraria comigo minha vitória depois da peça.

Não me senti no papel principal, porque não havia ninguém ali que me fizesse sentir principal. Eu estava o tempo todo em busca das madeixas loiras da minha mãe na plateia ou dos olhos azuis do meu pai, mas nenhum dos dois estava lá.

Ao final da peça eu sabia que tinha ido bem. Mas era como fazer algo importante e acabar sem legado.

Era decepcionante.

Frustrante.

Triste.

Isso até a primeira pessoa em meio a todas aplaudir de pé.

Oliver estava ali, na minha frente, sentado na terceira fileira. Foi exatamente no momento em que ele levantou que pude distingui-lo de todas as outras pessoas aleatórias sentadas fazendo volume no lugar.

De jeans escuro e camiseta preta, pele pálida e olhos castanhos transbordando orgulho. Ele bateu um total de trés palmas.

Clap, clap, clap.

Até que todos estivesses aplaudindo de pé. Mas ainda assim eu conseguia vê-lo. Aquele sorriso mínimo no canto da boca. Aquele carisma transbordando mesmo sem ele se dar conta.

E por aquele instante foi impossível odiá-lo.

Eu era mesmo uma aberração e ele não tinha culpa disso.

Eu não podia culpá-lo por ir embora.

Eu não podia odiá-lo por saber a verdade e principalmente por falar a verdade.

Não havia como odiá-lo porque ele estava ali quando ninguém mais estava.

Ele sabia o quanto era importante para mim e não foi um dia de despedidas que o impediu de vir, nem mesmo a falta de aviso.

Antes que as cortinas se fechassem eu sorri para ele. Sorri o sorriso mais aberto e agradecido que eu poderia dar e ele fez uma reverência, fingindo que tirava o chapéu para mim.

Tentei pular a enrolações dos agradecimentos atrás do palco e me troquei o mais rápido que pude, mas quando finalmente consegui sair já era tarde demais. Oliver não estava mais por lá. Gastei mais de uma hora tentando encontrá-lo em todos os lugares, mas ele tinha ido embora sem se despedir, o que me fez ter dúvidas se em algum momento ele realmente esteve por lá.

Talvez fosse coisa da minha imaginação.

Era bem possível que fosse.

E novamente o sentimento de decepção tomava cada célula do meu corpo.

Voltei de ônibus para casa e quando cheguei eles já tinham saído para o aeroporto.

Seis anos se passaram. Oliver sempre voltava durante as férias e eu sempre me dava ao trabalho de acampar para não encontrá-lo.


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Notas finais do capítulo

Quem gostou comenta. Quem não gostou comenta. Quem não comentar vai ver uma verruga crescer no meio do nariz u.u