Uma Fita Vermelha Carmim escrita por Kraken


Capítulo 1
Em Meio A Tempestade




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— Já faz um bom tempo agora...

Disse Mona a si mesma, sozinha em seu quarto. Ela respirou profundamente e soltou mais um de seus muitos suspiros. Levantou, com muita dificuldade, as cinco colchas que à vedavam a cama e puxou seu braço de dentro dos tecidos. Ela tentou colocar seus dedos na pequena sineta que estava sobre o criado mudo, mas mesmo esticando seu braço ao máximo, ela não a alcançava.
Mona suspirou mais uma vez. Ela deu pequenos saltinhos com o bumbum, se movendo pesarosamente em direção a sineta.

— Vem logo, ô porcaria!

Finalmente ela agarrou a sineta e, então,passou a chacoalha-la vigorosamente enquanto se soltava na cama, mantendo o braço levantado. Depois de algum tempo ela finalmente soltou seu braço, o deixando cair, pelo próprio peso, um pouco acima da sua cabeça, assim sessando o ruído da sineta. O silêncio tomou conta do ambiente. Mona olhou para os quadros que cobriam as paredes de seu quarto. Eles, em sua maioria, eram de paisagens, as mais belas por sinal: montanhas com picos brancos, bosques povoados por animaizinhos, lagos especulares, campos de flores com vilinhas ao fundo, o oceano jade e até um por do sol magnifico, laranja, violeta e azul-marinho feito por sua irmã mais velha, Sarah.

Todos eram paisagens, com exceção de um. Mona tinha um quadro que ficava logo ao lado da janela, bem em frente a sua cama. O quadro era um retrato, uma menina de uns treze anos ao lado de um menino de uns quatorze. A mãe de Mona tentava insistentemente tirar aquele quadro de lá, mas a menina insistia, também, que gostava dele ali, alias, ele sempre esteve ali, sempre mesmo! Quando a família se mudou para aquele enorme casarão o quadro já estava lá. De alguma maneira, Mona podia ouvir os risos que a menina soltava enquanto aquele quadro era feito, ela ouvia também os resmungos do menino e mais alguns ruídos de fundo, como se assistisse ou se lembrasse da cena, toda vez que olhava para ele. Olhar para aquele quadro a trazia paz.

— Chamou, Mademoiselle?

Mona virou o rosto em direção a porta. Um homem alto, narigudo, com os cabelos grisalhos e o rosto já cansado pela idade, estava parado atrás da porta entreaberta.

— Sim Marco. Mas não esperava que você atendesse. Não é seu dia de folga?

—Deveras atenciosa Mademoiselle. Ocorreu que o Monsieur Frederick teve que resolver pessoalmente alguns assuntos no Ministério hoje. Monsieur Frederick levou Michel, Hector e Jean para que pudessem auxilia-lo. Assim sendo, fui incumbido de atende-la hoje, Mademoiselle.

Disse Marco com as mãos justapostas por detrás das costas.

—Hum. Tá bom então.

A pequena moça fez um bico com os lábios, mas não conseguiu esconder empolgação e a felicidade.

—E mamãe ? Está em casa?

M'lady Nicole está em Châlons-en-Champgne. M'lady fora convocada para organizar o alistamento de médicos e enfermeiras essa semana, a previsão é que ela volte até o dia 25, Mademoiselle.

— Então Papai e Mamãe estão fora?

Disse Mona, já sentada na cama e chutando as colchas para longe.

— Temo que a resposta seja afirmativa, Mademoiselle.

Mona ficou de pé, entre a cama e o mordomo, apenas de camisola. Ela tentou avançar até o guarda-roupa, mas sua perna direita vacilou e ela acabou caindo ao chão.

Mademoiselle! Mademoiselle Mona, ainda não deveria sair da cama! O médico ordenou que...

— Ordenou uma ova! Não aguento mais ficar nessa maldita cama!

Marco se aproximou da pequena caída e a escorou de volta ao leito.

— Eu só queria ir lá fora um pouco, esse ar viciado do quarto já está me fazendo mal...

Disse Mona tentando conter o choro.

— Pobre Mademoiselle. Temo que esteja a tanto tempo presa nessa cama, que já perdeu a noção do tempo.

Marco foi até a janela e abriu as cortinas. Ao contrario do que Mona esperava, estava escuro lá fora, o céu estava fechado e o clarão dos relâmpagos permitia vislumbrar as nuvens negras que se aproximavam.

— Que horas são, Marco?

Disse a pequena já engolindo o choro.

— Eram quinze para as oito da noite, quando a Mademoiselle me chamou. Já iriamos acorda-la para o jantar.

— Esqueça o jantar Marco, vou dormir.

— Mas Mademo...

— Sem mas, Marco. Por favor, apenas me deixe sozinha.

Marco suspirou.

— Sim, Mademoiselle. Estarei esperando caso queira me chamar.

Marco saiu pela porta, a fechando gentilmente.

Mona se deitou com as pernas penduradas a beira da cama. "Por que isso tinha que acontecer comigo ?" A jovem se lembrou do dia em que o médico finalmente receitou que ela ficasse em estado total de repouso e que só saísse acompanhada para dois ou três banhos de sol semanais. Isso por que ela já não saia do quarto por uma semana. Ela tinha alguma coisa grave, que a fazia fraquejar e derrubar o que ela estivesse segurando ou até mesmo cair ao chão, como acabara de acontecer.

Seus olhos ainda molhados foram se fechando lentamente, enquanto o suave som da chuva se intensificava.

Quase que instantaneamente Mona voltou a abrir os olhos. A luz do quarto estava apagada e já parecia ser bem tarde, a chuva castigava a janela enquanto os raios a faziam vibrar assustadoramente.

Um baque ecoou pelo quarto assim que um enorme vulto atingiu o vidro, Mona puxou no ímpeto uma de suas colchas, cobrindo com ela seu rosto. Mais um baque ecoou pelo quarto. O medo continha a vontade de espiar de Mona, mas com o terceiro baque, juntamente com o estrondo de mais um trovão e finalmente com o som o vidro da janela estilhaçando, ela teve que espiar.

Um enorme vulto se contorcia no chão do seu quarto, afastando os cacos de vidro e se arrastando de volta a parede da janela. O vulto puxou as cortinas, as fechado ruidosamente. Agora com o som da chuva abafado, Mona podia ouvir o arfar do ser. Era um som de cansaço, com leves gemidos de dor. Ele parecia tentar conter seu barulho agora, respirando dificultosamente mais baixo.

Mona abriu a boca para falar, mas suas palavras não saiam. O coração dela palpitava, enquanto sua respiração imitava a do vulto em seu quarto. Ela descobriu um dos olhos para que pudesse ver o que acontecia.

Uma enorme figura estava esparramada por seu quarto, ela mal cabia ali dentro e se escorava, por sobre a cortina, na parede. Tudo que se podia diferenciar do ser, eram seus olhos vermelhos e luminosos que permitiam a Mona acompanhar os movimentos dele.

Mona novamente tentou falar, mas dessa vez foi impedida por um guincho estridente que vinha de fora do quarto. O vulto se debateu uma vez, como se tivesse se assustado com o ruído. Ele fechou seus olhos brilhantes e começou a balbuciar algo baixo de mais para que Mona pudesse compreender.

Os guinchos oscilavam, como se a criatura que os emitiam estivesse rondando o casarão e depois de um algum tempo, acabaram por se distanciar até que não os podiam ouvir mais.

Os olhos vermelhos se abriram e olharam quase que através dos olhos de Mona.

Ele pronunciou algo estranho, como se estivesse engasgado com algo. Houve um breve pausa e ele novamente soltou sons sem sentido. O processo se repetiu até que Mona compreendeu algo:

Parlez-vous français?

O-o-oui. Mais je préfère l'anglais.

—Prefere o inglês, ahm? Britânica ou Americana ?

— Desculpe ?

— Perguntei se você é da terra nova ou do pais da rainha.

— Ah! é... Sou do sul. Southampton.

— E o que traz uma jovem de Southampton até aqui?

—Olha... Não tenho ideia de quem ou o que você seja, mas quero que você saia do meu quarto.

— Ué? Mas estávamos nos dando tão bem...

— Não. Acho melhor você ir embora logo... Ou... Ou eu grito e o Marco vai vir aqui!

— Garota. Não sei se você notou, mas não consigo me mover. Além do mais, você ouviu aquela coisa gritando. Eu te garanto que é bem pior de perto.

— Como assim não pode se mover ? Você atravessou minha janela pra chegar aqui.

— Estou completamente esgotado, se não se importa vou dormir um pouco.

— Claro que me importo! Quero que saia daqui agora!

A ordem de Mona foi respondida com o singelo silêncio. "Ele não pode ter dormido" pensou a menina consigo mesma.

— Ei. Ei. Eiii! Eu sei que você está acordado. Ei. Me responda.

Os olhos luminosos dele estavam fechados. Mona se levantou e ficou sentada na beirada da cama, olhando para aquela figura vultuosa. O sol começava a raiar, iluminando levemente a cortina. Com a fraca luz que vinha de trás dele, seu contorno começou a ganhar forma. Era um rapaz de cabelos negros, rosto triangular com as arestas arredondadas e, talvez pela chuva, extremamente pálido. Ele vestia uma casaca de lã, aberta na frente e coberta da cintas de couro, fivelas prateadas e botões azuis de vários tons, tudo espalhado desorganizadamente pela superfície do tecido. Por baixo da casaca ele vestia uma camisa de tecido pobre, bem amarrotada e remendada, já coberta de manchas. Sua calça parecia ser feita de lona, com partes rasgadas ou rachadas, expondo o forro e o tecido interno. Esparramadas pelo quarto, logo em baixo do rapaz, haviam quatro asas negras, um par maior que o outro, mas ambos eram enormes em comparação a qualquer outra asa que a garota tenha visto na vida.

Mona finalmente ficou de pé e deu alguns passos em frente, para tentar enxergar melhor o invasor em seu quarto. Na penumbra, ela notou o suave brilho vermelho do sangue que escorria pelo chão, assim que pisou sobre a poça. No susto, Mona recuou o passo, mas sua perna fraquejou e ela acabou caindo pra frente.

—Humpf. Vocês só mudam de rosto mesmo. Eu encosto pra dormir por um instante e você já se joga em cima de mim?

Mona estava com o rosto caído de lado por cima do peito de rapaz. Ela tentava mover suas pernas, mas tudo que conseguia eram espasmos e escorregões na água que estava no chão. Suas mãos haviam travado segurando o tecido da camisa dele, numa pose tanto quanto vergonhosa.

— Cuidado mocinha, vai acabar se cortando no vidro assim. Por que não se levanta, não sei se notou mas eu não estou em condições de flertar com você.

— Cala boca.

Mona não sabia o que a deixava mais vermelha, se era a raiva de não conseguir se afastar ou a vergonha de ouvir as provocações do rapaz enquanto ela estava caída sobre ele.

— Você está bem? Parece que não consegue se mover direito.

"Que raiva! Se mova porcaria!" Finalmente Mona conseguiu se levantar e se jogar de volta a cama.

— Ok, isso foi estranho...

Disse o rapaz. Agora a luz que passava pela cortina já era suficiente para revelar que o chão estava coberto de sangue. Mona se ajeitou na cama, ficando sentada na beirada dela como antes.

— Estranho? Você entra no meu quarto pela janela e resolve morrer aqui. E eu é que sou a estranha?

— Morrer? Entrei aqui exatamente para não morrer.

— Mas você tá encharcando o chão de sangue!

— Sério? Isso explica essa dor nas costas!

— Você tá de brincadeira? Você tá morrendo.

— Acredite mocinha, isso não é o suficiente pra me matar.

Os dois ouviram passos apressados vindos da porta, Mona se virou para receber quem entrasse em seu quarto. A garota então, escutou um terrível som do que pareciam ser ossos estalando ou quebrando e quando voltou a encarar o invasor do seu quarto, as enormes asas negras haviam desaparecido. A porta se abriu com um baque surdo.

Mon chère, está bem? Pensei ter ouvido... Mon Dieu!

Disse a governanta Salete ao notar a janela quebrada e o rapaz ao chão.

—Marco! Marco! Rápido ! Suba aqui! Alguém entrou no quarto de Mademoiselle!

O mordomo subiu rapidamente e adentrou o quarto, onde parou bruscamente, pasmo pela cena.

Mon Dieu... Rápido Salete, tire a Mademoiselle daqui.

—S-sim!

A governanta tomou a menina em seus braços e a carregou porta a fora. Mona avistou, por sobre o ombro de Salete, a porta sendo fechada.

— O que o Marco vai fazer com ele?

—Vai cuidar daquele fripon! Mon chère, você está bem? Ele fez algo com você?

— Estou bem Salete. Me coloque em alguma cadeira, por favor.

Ouí! Tem certeza Mon chère? Mon seigneur! Você esta coberta de sangue!

— Sim Salete, tenho certeza que estou bem... Sangue?

Ela olhou para sua camisola, totalmente manchada de vermelho. A jovem recolheu as pernas, abraçando-as, depois que foi posta no assento macio da cadeira. Ela abaixou a cabeça e avistou por alguns instantes os olhos faiscantes do invasor, ainda em sua mente. Subitamente uma grande dó tomou conta dela.

"O que Marco vai fazer com ele?" Ela não conseguia parar de martelar essa pergunta na cabeça. Por que ela havia sido retirada do quarto tão abruptamente. Por que do silêncio? Isso seria um bom sinal? Já que, se houvesse algum tipo de conflito, os ruídos seriam perceptíveis.

Salete puxou uma cadeira para perto da pequena, onde ela se recostou ao lado da jovem, puxando suas pernas.

— Deixe Salete ver isso ai, quero ter certitude de que a Mademoiselle está bem.

— Já disse que estou bem, Salete.

Mas Mona começou a notar a dor nas pernas.

Mon Seigneur! Olhe para suas pernas! Estão cheias de cacos de verre! Deixe-me pegar o kit de primeiros-socorros.

A casa estava bem quieta, talvez suas irmãs ainda não tivessem acordado. Mais uma vez, os olhos cintilantes assaltaram sua mente. Salete logo voltou com o Kit e dispôs cadeiras de forma a poder deitar a garota em seus assentos. A serviçal colocou um travesseiro rosa por debaixo da cabeça da jovem.

O forte odor do óleo de rosas barato que Salete usava para dormir, dominou a mente de Mona enquanto seu rosto estava pousado sobre o tecido almofadado cor de rosa. Ela, Salete, vestia um pijama rosa bem claro, com rendas e babados estrategicamente localizados em suas extremidades. Logo a serviçal se pôs a retirar os pequenos cacos com uma pinça, repetindo consigo mesma "pardonnez-moi, mon cher".

Mon chère, acalme-se, logo tudo estará bem.

Mona hesitou por uns instantes, escutando ruídos do quarto acima dela, mas eles logo cessaram. Uma onda de fraqueza tomou conta de seu corpo, enquanto ela lentamente despencava no abismo do sono.

Mon chère, acorde pelo menos para o almoço.

Ela acordou com a luminosidade da cortina sendo aberta. Salete falava em um tom doce e convidativo, o que não facilitava a árdua tarefa de levantar da cama. Mona rolou para um lado, se espreguiçando enquanto a serviçal a cutucava por debaixo da costela.

Mona subitamente se lembrou do que ocorrera aquela manhã, levantando de supetão e assustando a pobre Salete.

— Tudo bem, mon chère?

A garota observou o quarto, não havia sinais de sangue, nem água ou qualquer indicio de que tudo aquilo realmente ocorrera. Mas a parede já não tinha a janela. As cortinas dançavam livremente ao ritmo das brisas do verão francês.
Ela levantou a manta que a cobria, suas pernas estavam enfaixadas até metade da coxa, o que dificultava move-las. A jovem olhou para os olhos de Salete.

— O que aconteceu com ele?

— Ele quem?

— O rapaz que quebrou minha janela... o jeune garçon que estava sangrando?

— Aquele fripon? Marco se encarregou dele.

— Como assim? O que ele fez? Ele está bem?

— Oh oh oh oh. Mon cher você se preocupa de mais com isso. Deixe que nós, les adultes, cuidemos disso! Agora, espere aqui que irei trazer sua repas.


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