Uma Fita Vermelha Carmim escrita por Kraken


Capítulo 2
Essêncial




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Mona realmente não conseguia compreender. Acima de tudo, o por que ela estava tão preocupada com o tal fripon? Ela se pôs a recordar da cena. Aqueles olhos flamejantes, eles não podiam esconder a dor. Era claro que ele estava ali sofrendo, provavelmente todo aquele discurso era algum meio de se distrair. De provar a si mesmo que ele era forte o suficiente para aguentar aquela situação.
E como diabos, alguém sangra daquele jeito? Até onde Mona podia se lembrar, o chão estava coberto de sangue. Ela sentiu outra pontada no peito, ele devia estar bem mal agora. Sua mãe contava historias sobre como os ferimentos que ela havia visto na faculdade de enfermagem eram horríveis. Ela dizia que muitos dos casos de estudo, eram de acidentes com armamentos, ou casos reais da Primeira Grande Guerra. Eram as historias de fantasma que preencheram suas noites quentes de verão.
Mona havia passado toda a infância em um colégio interno, na Inglaterra, desde seus seis anos. Sua família a visitava duas vezes por ano, mas os invernos eram deprimentes. Principalmente quando você tem oito anos e seus pais e suas irmãs estão viajando de volta para França uma semana antes do natal.
Mas bem, os verões faziam tudo valer a pena; Duas semanas de acampamento na casa de campo em que sua família morava, na área de La Censé des Prés, além das ultimas duas semanas de férias na casa de seus tios em Vitry-le-François. Uma cidade ótima por sinal, onde eles podiam comemorar o aniversario do irmão mais velho de seu pai.
O vento bateu no rosto de Mona. A garota despertou de seu passado, com a seguinte frase em seus lábios: “Mona, Moira, Molly, Moss, quem ficou com o cordame sem nós?” e sorriu. Como estariam Moira, Molly e Ruppert Moss? Os três pestinhas aos quais qualquer monitor de corredor do antigo colégio em que Mona estudava, se referia ao usar a palavra “monstrinhos”.
Como em “Qual dos monstrinhos tirou uma carpa do lago?” ou em “E qual monstrinho escondeu o apagador de lousas?” ou então em “Foi a senhorita Mary Sanchés Crowood?” O que era prontamente respondido com “Não sei”, ”Talvez” e “Quem sabe?” por cada um dos outros monstrinhos.
Mais uma vez a brisa quente a trouxe de volta do passado e dessa vez a porta se abriu.
— Aqui está mon cherè. Poulet rôti aux petits pois, com... Com purée ?
— Com purê ?
Oui, mon cherè, com purê.
— E o Marco ?
— Hum ?
— Onde tá o Marco ?
— Marco foi a le François, comprar mantimentos para o barracão de jardinagem.
— E o jardineiro? Não pode fazer isso?
—Jean? Monsieur Frederick foi ao Ministério ontem...
— Ah sim, sim. Marco me disse.
Pardon, vou lhe servir, mon cher.

Assim que Salete se moveu a frente para depositar a pequena mesa dobrável sobre a jovem, Mona recuou, sentando-se e assumindo uma posição confortável para receber a refeição.

Salete, prontamente a serviu, amaciando e depositando um dos travesseiros da garota por detrás dela. Assim que a garota se recostou, a serviçal sacou um lenço de um dos bolsos frontais de seu avental e o pôs dentro da gola da jovem, pendendo por sobre seu peito.

Mona comeu devagar, apreciando a textura da comida, mastigando como se cada garfada fosse a ultima. Como ela passava muito tempo na cama e simplesmente apagava de tempos em tempos, ela adquiriu o hábito de comer bem e devagar, quando conseguia comer. Assim ela cansava a boca e evitava ficar resmungando sozinha. Ela apenas conversava consigo mesma enquanto esperava pela fome ou que uma alma viva se predispusesse a subir ao seu quarto e conversar com ela.

Sarah costumava visita-la, Mona adorava isso, já que sua irmã mais velha tinha passe livre até le François ou Châlons, se seu pai ou algum dos rapazes da casa se dispusesse a leva-la até lá de carro ou carroça. Sarah trazia historias e guloseimas para as jovens irmãs, elas se punham em roda em torno a cama de Mona e passavam duas ou três horas ouvindo as peripécias de algum jornaleiro atrapalhado ou assistiam as noticias do jornal sendo narradas pela irmã mais velha, como se ela fosse uma radialista. Sarah era uma deusa para Mona, alta, forte, linda e esperta.

— Terminou, mon cherè?

— Uhm?

Mona voltou a terra, havia raspado o prato e nem se dera conta disso.

Oui! J'ai le plaisir!

Ou-la-lá! Très bon, mon cher!

Salete, então se pôs a desfazer suas ações pré almoço, retirando o lenço da gola de Mona e ajeitando a almofada para que a pequena pudesse deitar.

— Com sua autorisation, vou-me.

E Salete deixou o quarto com a mesa dobrável em mãos.

Mona esperou ansiosamente pelo silêncio. Mas algo tamborilava perto da janela, como se alguém batesse insistentemente com um lápis na moldura de madeira. Mona olhou para lá. A luz quente do sol de verão passeava pela cortina, enquanto ela dançava sutilmente contra a brisa. Luz e sombra, como pares opostos em uma dança de salão.

A garota retirou a fina manta que a cobria e se arrastou até a beirada da cama, mergulhou suas pernas na luz quente que adentrava o quarto e ficou ali por alguns instantes. Em um misto de expectativa, enquanto o calor atravessava as bandagens de suas pernas, e medo, sem um pingo de confiança que suas pernas a sustentariam até o buraco emoldurado na parede.

"Ou vai, ou racha." E se atirou dentro da luz; como quem mergulha em uma piscina sem saber o quão funda ela é. Com os olhos fechados ela caminhou rapidamente, atenta para ver se as pernas não falhavam. Então ela bateu contra a parede e se escorou na madeira da moldura. A jovem levantou a cabeça e passou a sentir a brisa passeando por seu rosto, acariciando seus cabelos.

Ela então abriu os olhos e contemplou a vista: o sol no inicio seu declínio por detrás das árvores do bosque, os campos verdejantes a se perder de vista, ao longe a pequena le François com suas estradas de terra. O rubor tomou conta da garota. Como que apaixonada, ela fitava com ternura todo aquele quadro emoldurado em seu quarto, cuja luminescência própria tomava o ambiente para si.

Enquanto passeava com os olhos, imaginando que caminhava por onde sua vista passava, ela encontrou o barracão de madeira que Jean usava para guardar o material de jardinagem. "O quê?" disse a si mesma e, com o olhar mais atento, notou que, pela janela da barraca de madeira, podia ver um trecho de tecido de lona se mexendo repetidamente.

O tiquetaquear a chamou novamente, a brisa fazia com que uma pena, presa no encaixe da janela, oscilasse, tamborilando com o cálamo na madeira. Mona puxou a pena e a levou ao rosto, era como uma pena normal; brilhosa, mas de um negro cor de piche, mais escuro do que qualquer outra coisa que a jovem já havia visto. Ela voltou os olhos a cabana. Sem que notasse, a pena desceu a altura do nariz. Tinha cheiro de madeira, lembrava os pinheiros de seu antigo Colégio, um perfume nostálgico e distan...

—A-A-Atchim!

E voou, livre pelo ar, como devia ser. "Como devia ser..." Disse Mona em silêncio. A garota sabia que se realmente quisesse ajudar o dono daqueles olhos assustados, ela teria que esperar a oportunidade certa. Se suas pernas falhassem no meio do caminho, ela seria prontamente levada de volta ao quarto por Marco ou qualquer outro que a encontrasse ali. Ela estaria de volta ao marco zero. "Mon cher, você não pode sair andando por ai sozinha! O médico disse que..." Imitou Mona, exagerando os trejeitos frescos da serviçal. A garota precisava de tempo.

Era quarta feira e, se tudo desse certo, Marco levaria as meninas para le François, para visitar a feira de quinta, no dia seguinte. Assim, apenas Salete estaria em casa. A serviçal tinha o péssimo e recorrente hábito de cochilar depois do almoço, seria o momento perfeito para Mona descobrir como o ajudar. Ela teria todo o tempo do mundo. Suas pernas poderiam falhar o quanto quisessem.

Mona ficou ali, admirando a paisagem enquanto maquinava seu plano. O tempo passou e, já no laranja do dia, o barulho do automóvel a fez se atentar. O conversível da família era um carro ótimo. Muito mais espaçoso e confortável que a velha carroça. Mas Mona tinha uma queda por cavalos e sempre que podia, evitava o corcel de ferro.

Marco estava ao volante. Ele manobrou e estacionou o carro por sobre o cascalho, uma parada abrupta. Desceu e bateu a porta com mais força que o normal, sua feição era de alguém contrariado, revoltado e derrotado. Salete atravessou as portas do casarão, atraída pelo ruidoso estacionar de Marco. Eles começaram a conversar em francês, algo que Mona traduziu como:

—Aquele... Aquele... Aquele mentecapto! Delegadinho de bordéis!

—O que houve, Marco? Por que toda essa braveza?

—Aquele senhorzinho desprezível. Como ele ainda pode ser delegado regional!? Você vai ver, eu deixei uma nota para aquele miserável e se ele não aparecer aqui até amanhã de manhã bem cedo, vou estacionar esse carro dentro da casa do prefeito!

—Acalme-se, Marco! Vai acabar acordando a senhorita Mona!

—Me acalmar? Como posso me acalmar se tem um...

E nesse ponto, os dois passaram a cochichar ruidosamente. Infelizmente Mona não foi capaz de acompanhar o resto da conversa, mas pela gesticulação inflamada de Marco, eles falavam do tal fripon. O mordomo apontava com o braço rijo e a palma aberta, o casebre de madeira, como quem aponta para um montinho de esterco que o cavalo acabara de trazer ao mundo.

A jovem sabia que seus planos não podiam aguardar até amanhã. Ela teria que fazer isso hoje.

A noite caiu e Mona pois seu plano em ação. Seu quarto era o último do corredor e lentamente ela avançou, evitando todas as tábuas que rangiam, se apoiando periodicamente na porta de um quarto para escutar se seu conteúdo roncava em sono profundo. Ao finalmente alcançar o quarto de Sarah, antes mesmo que pudesse tocar na porta, ela se abriu.

O ranger tomou todo o ambiente, enquanto Mona jazia petrificada sob a ponta dos pés, com os dedos pinçando a saia do pijama, os cabelos arrepiando na nuca com o flagrante que estava para ocorrer e com os olhos arregalados pela adrenalina no ar.

Um coração a mil, ouviu a pequena dizer:

—Mana... Banheiro...

Uma lasquinha de gente, esfregando os olhinhos com a mão direita e sustentando um grande urso de pelúcia pela sua contraparte esquerda. A pequena bocejou, um daqueles que suga completamente suas energias, parecendo até que deixou sua alma escapar por entre os dentes. Mona respirou aliviada.

—Michele... por que você está acordada a essa hora?

—Banheiro...

—Tá... A Mana te leva lá...

Mona segurou a pequena pela mão e continuou seu caminho com todo o cuidado possível, com a irmã mais nova a seguindo, arrastando suas pantufas pelo chão.

—Aqui ó.

Disse Mona abrindo a porta do banheiro com cuidado.

—Quando você terminar, volta para o quarto, tudo bem?

A pequena respondeu afirmativamente com um balançar de mechas. A jovem se pôs de volta em seus trilhos indo em direção ao barracão de madeira.

—Mana... Espera eu... tá escuro...

Mona mordeu seus lábios. Tinha que colocar a irmã mais nova na cama, ou alguém acordaria. Ela pacientemente guiou criança de volta a seu quarto e a deixou com um beijo na testa. Com o click do trinco da porta, Mona pode se focar em seu objetivo inicial.

Quando finalmente alcançou o hall de entrada, Mona pode respirar aliviada. Ela passou pela ala dos empregados. Todos dormiam como pedras em um campo pastoril. Ela saiu pela grande porta de entrada e rumou a cabana de madeira. Estava frio e a jovem, agora, se arrependia de não ter pego um casaco mais pesado. Ela optara pela opção mais leve por medo de que o peso viria a fazer com que suas pernas falhassem.

Ela avançou pelo gramado, ciente de que se ela caísse naquele instante, estaria em sérios apuros. Mona fitou suas pernas enquanto caminhava; Eram finas e a luz da lua revelava os pequenos cortes e arranhões que os cacos de vidro fizeram. Ela começou a caminhar pelo cascalho. Não faltava muito agora, mas ainda daria tempo de voltar e fingir que nada aconteceu.

Mona encarou a porta do casebre por alguns instantes. O cheiro da noite a envolvia e o frio era incomodo. Ela baforou nas mãos e, as esfregando uma a outra, atravessou a porta. Estava silencioso dentro da cabana, a penumbra era densa o suficiente para poder ser tocada. Os olhos faiscantes se abriram e se ergueram, recebendo Mona com curiosidade e surpresa.

—Então a pirralha ficou com saudades?

"Ora, sujeitinho!" Mona pensou consigo mesma.

—Tudo bem, não te ajudo se é isso que você quer.

E a jovem começou a fechar a porta, quando foi interrompida.

—Calma, calma! Achei que você tivesse vindo aqui pra me ofender como aquele Mordominho fresco!

—Não fala assim do Marco. Ele só estava se preocupando com a minha segurança. Aliás o que você estava fazendo na minha janela?

—Estava fugindo...

—Fugitivo?

—Sim, fui atacado e, na pressa de me esconder, acabei arrebentando a sua janela.

—Pera ai. Você disse que estava fugindo da policia? Por que se você estiv...

—Não! Ha, ha ha ha. Se fosse só a policia que estivesse atrás de mim, eu não teria tantos problemas.

—Só a policia? Você é fugitivo de guerra?

Os olhos assumiram uma inclinação de descrença. Os dois escutaram um longo silvo seguido de um estridente guincho.

—Droga, ele voltou.

—Quem volt...

—Rápido, me tira daqui.

—Por que? O que tá acontecendo?

—Não pergunta, só me tira daqui. O mordomo deixou as chaves por cima daquela mesa.

Mona correu até a borda da mesa.

—Aonde está?

—Ai em cima, ele só jogou ai.

Ela procurou em cada canto, mas não havia qualquer chave por cima do tampo da mesa.

—Não tem nada aqui!

—Droga! Ele deve ter levado na segunda vez que veio aqui.

—E agor...

Antes que pudesse terminar a pergunta, Mona viu de relance um enorme rosto de leão fitando a pequena janela que havia atrás da mesa. No susto, a jovem caiu para trás, congelando enquanto um calafrio a consumia por dentro.

—Mona! É Mona, não é? Presta atenção em mim. Você só vai ter uma chance. Assim que ele entrar aqui ele vai me atacar. Corra o mais rápido que puder pra sua casa. Não saia de lá até o amanhecer.

—Como assim? E você?

—Olha pra mim.

Mona olhou na direção dele, ele havia se movido alguns centímetros, entrando no feixe de luz da janela. Ele parecia tranquilo, como se já tivesse aceitado seu destino. O jovem apontou para o seu pé, que estava coberto por uma substância branca, lembrando muito cal, como se ele tivesse enfiado o pé em um balde de concreto que, agora, já estava seco.

—Eu fui desessênciado. Logo, logo eu não vou ser nada mais do que só uma estátua.


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