Diário de Uma Semideusa escrita por Lúcia B Wolf


Capítulo 14
Oráculo




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O que foi que acabou de acontecer?

Minhas pernas tremiam enquanto eu subia as escadas que levavam aos dormitórios. A única iluminação no quarto era a luz da lua, passando pálida por entre as janelas. Liz e Emily, que estavam deitadas cada uma em sua cama, levantaram os olhos enquanto eu passava por elas indo em direção à minha cama.

– Cice, está tudo bem? - Liz perguntou.

Eu estava eufórica.

– Levei uma detenção por estar na Torre de Astronomia.

Emily riu baixinho. – E por que diabos cê parece tão feliz com isso?

Mordi o lábio. Não podia contar pra elas, não ainda.

***

O dia estava quente quando saímos do castelo e atravessamos os jardins, rumo ao estábulo. Alguns semideuses já aguardavam a professora quando Emily e eu chegamos, Lee entre eles. Enquanto Emily correu para conversar com meu irmão, fui para a baia da extremidade oferecer um torrão de açúcar para o meu companheiro de todas as aulas de vôo.

– Ei, Blackjack! - O pégaso veio até a porteira da baia, colocando a cabeça pra fora. Estiquei a mão e ele abocanhou o torrão de açúcar, satisfeito.

Blackjack era um cavalo alado de pelagem completamente negra e brilhante. Nos entendíamos bem desde a primeira aula de vôo e, ao contrários da maioria dos outros pégasus, ele nunca me derrubara de seu flanco.

Senti minhas bochechas queimarem quando Logan lançou-me um sorriso ao passar por mim e parar na baia de Daphne.

– Eu vi, hein! - Emily juntou-se a mim, rindo - e essas bochechas vermelhas aí?

– Quê? ah, não, nada não…

– Pode desembuchar, Cice! Cê finalmente admitiu que tá gamada nele?

Blackjack, que ainda estava com a cabeça pra fora da baia, relinchou baixinho como se concordasse.

– Tá vendo só, até seu cavalo concorda comigo!

– EMILY!

– Ah, qual é! Pô, depois do fiasco que foi o seu namorico com o John, eu já imaginava que algum outro pãozão tivesse sido menos palerma que ele e roubado seu coração.

– Ai, que exagero! - Ri antes de continuar, num cochicho - é só que… nós nos beijamos.

– CÊS O QUÊ? - Emily gritou, fazendo alguns alunos lançarem olhares para nós.

– Psiu! Fala baixo! Foi só um beijo, nada de mais.

– FINALMENTE! - Ela me segurou pelos ombros, sorrindo.- Como cê não me contou isso antes, menina? Pode contar tudo! Onde cês tavam? Como foi? AI QUE MASSA!

Eu ri.

– Mas calma aí - ela continuou, mais séria - ele ainda tá com aquela filha de Atena?

– Foi ontem à noite, na Torre de Astronomia… E sim, ele ainda namora aquele projetinho-de-Atena-mal-feito, por isso é segredo. Ninguém pode saber, ou ela mata nós dois.

– Não precisa esquentar a cabeça - ela deu uma risadinha maléfica, - esse namoro deles não vê o sol da semana que vem.

– Como assim?

Ela pareceu indignada. – Não vai ter mais namoro até semana que vem, sacou?

– Como você sabe? - Um sorriso me escapuliu. - Ouviu alguma coisa? Eles brigaram?

– Não - ela fez um movimento com a cabeça, indicando Logan atrás de mim. - Mas ele não tira os olhos de você.

***

A Sala Comunal estava bastante cheia para um sábado a noite. Maísa, minha colega de quarto do 3° ano, sentava-se perto da lareira enquanto dava em cima descaradamente dos Reed. Liz e eu estávamos perto das janelas enquanto ela me falava sobre seu time de quadribol preferido. Só senti falta de Emily, que estava nos jardins com Lee.

– … e é por isso que os Chudley Cannons são os melhores - Liz ia dizendo. - Pra qual time você torce?

Com o braço escorado na janela e o olhar perdido no céu noturno, eu mal a ouvia.

– Cice?

– Hum? Ah, desculpa… Estou meio distraída esses dias.

A bruxa suspirou.

– Nós temos que esquecer, Cice - ela indicou Finn e John com um movimento de cabeça. - Eu estou tentando, sabe? Estou fingindo que não tô vendo ele ali rodeado de garotas, mas… Está tão difícil, sabe?

Segurei as mãos dela. Liz balançou a cabeça, tentando disfarçar as lágrimas, e eu não pude deixar de me sentir mal por não ter contado a ela nada sobre o que aconteceu entre mim e Logan. Mas aquela não era a hora. Forcei um sorriso, mas uma outra coisa chamou minha atenção. Ouvi um som muito baixo, parecendo gritos distantes.

– Você ouviu isso?

– O quê? - Liz secava as bochechas.

– Eu não sei, parecia…

Um urro extremamente alto abafou minhas últimas palavras. A sala comunal se calou por alguns minutos, o medo se espalhando. Eu conhecia muito bem aquele som.

Fúrias.

As pessoas ali começaram a gritar e se agitaram para sair da sala; alguns queriam lutar, outros fugir. Liz parecia congelada no mesmo lugar. Vi Finn e John Reed seguirem para a porta apressadamente e corri para seguí-los, mas John me parou quando os alcancei.

– Fique aqui, Cice.

Era a primeira vez que ele falava comigo desde aquele dia.

– Não! Se tem uma fúria lá fora eu quero lutar! Esperei por isso tipo a minha vida inteira! - Outro urro. Gritos. Os Reed se entreolharam, e nós três descemos as escadas da Torre da Grifinória sem dizer palavra.

O caos corria solto enquanto a Fúria se agitava em meio aos jardins. Ela tinha quase dois metros de altura e asas de morcego escuras como a noite. Alguns alunos já estavam feridos, enquanto professores empurravam a gente porta a dentro de volta ao castelo, gritando para que fôssemos para as salas comunais. Quíron e alguns centauros atacavam a fera, que tentava desesperadamente acertar alguém. Finn e John correram para ajudar os alunos feridos, e vi Logan surgir correndo através das escadas que davam acesso às masmorras, ignorando os professores que ainda gritavam. Uma figura do outro lado dos jardins chamou minha atenção, apesar de que ninguém parecia vê-la ali.

– Emily! - Gritei, correndo em sua direção. A garota estava paralisada de medo, olhando para as costas da fúria. - EMILY! Saia daí! Sai logo… - antes que eu pudesse terminar, a fúria girou em direção aos gritos, batendo sua asa enorme em mim e mandando-me para longe. Caí com um baque. Ergui a cabeça a tempo de ver Lee atingir uma flecha no olho do monstro e correr em minha direção.

A fúria urrou de dor e levantou vôo, agarrando alguém às cegas.

Emily.

Mais flechas atingiram as costas da fúria enquanto os berros de Emily ficavam mais baixos. Lee e eu corremos, gritamos, atiramos flechas, mas nada impediu que a fúria levasse minha amiga pra longe de mim.

***

Aguardei sozinha na sala enquanto o Salão Principal ao lado enchia de gente. Andava de um lado pro outro ao secar as lágrimas que escorriam ansiosas pelo meu rosto até que, alguns minutos depois, Quíron entrou trotando na sala.

– Senhor - falei, - pra onde aquela fúria levou Emily?

– Escute, Cecília - ele falou com voz grave, - eu sei que você tem muitas perguntas, mas não tenho resposta para todas elas. Dumbledore está acalmando o resto da escola no Salão Principal. Não temos muito tempo, então vou te contar tudo o que precisa saber. Monstros não atacam Hogwarts, porque a escola é protegida e escondida contra eles. Mas aquela fúria atacou, o que significa que ela não é um monstro qualquer. E como se isso não fosse prova o bastante, foi aquela mesma fúria, ou alguma do mesmo clã, que atacou você e sua mãe quando você era pequena. Nenhuma outra conseguiria quebrar a proteção que Apolo lançou sobre sua casa. Há muito tempo o alvo desse clã específico é você, Cecília. Querem o Dom da Cura.

Fiquei em silêncio. Mais uma vez, era muita informação pra digerir.

– Não são apenas fúrias - ele continuou, - são fúrias McClivert. Talvez já tenha ouvido falar desse clã nas aulas.

– Ah…

– Conta a lenda - Quíron prosseguiu diante do meu silêncio - que os McClivert eram uma família de bruxos poderosíssimos que dividiam a ilha de Drear com o clã dos MacBoon. Um duelo de bêbados entre Dugald McClivert e Quinto MacBoon, os líderes dos clãs, terminou na suposta morte de Dugald. Os McClivert, por vingança, transfiguraram os bruxos MacBoon em monstros peludos de cinco patas.

– Os Quintípedes. Lembro-me que Hagrid falou sobre isso na aula de Trato das Criaturas Mágicas. Como monstros, os MacBoon ficaram infinitamente mais poderosos e foram capazes de matar todos os McClivert.

– Quase todos. O que os livros não contam é que Dugald, como o grande bruxo que era, não pereceu no duelo. Ficou escondido por muitos anos, tentando retransformar os monstros em humanos, mas os Quintípedes são criaturas fortes demais. Para se proteger deles, Dugald transfigurou os morcegos da ilha em fúrias. A Fúria que esteve aqui era uma delas.

– Mas isso não é só uma lenda, senhor?

– Lendas são lições. Elas carregam a verdade.

Suspirei algumas vezes antes de responder. – Se a lenda é verdadeira, por que elas precisam de mim?

– Quanto a isso não tenho certeza. Provavelmente, alguma coisa aconteceu com Dugald e o Dom da Cura é sua única chance de sobreviver.

– Então por que a Fúria levou Emily?

Foi a vez de Quíron fazer uma pausa e suspirar. – Temo que seja por que ela estava no lugar errado na hora errada.

Meus olhos encheram-se de lágrimas mais uma vez.

– E... tem alguma chance de ela ainda estar viva?

– A Fúria pensava, ou desejava, que ela fosse você. Emily deve estar a salvo até que descubram que pegaram a garota errada.

– Então temos que ir atrás dela o mais rápido possível.

– Concordo, senhorita. Mas, como filha de Apolo, você já deve saber que todo semideus precisa de uma profecia do Oráculo antes de partir em uma missão.

E sabia, de fato. Mas o Oráculo causava medo até nos semideuses mais poderosos.

.

Saí discretamente da sala, passando pelo saguão de entrada e cruzando as portas principais do castelo rumo à Floresta Proibida. Ignorei o medo, a vontade de chorar, a culpa, a escuridão e os barulhos estranhos enquanto corria pela trilha até que nenhum feixe de luz fosse capaz de penetrar pela mata densa. Desejei que Logan estivesse ali e conjurasse um de seus raios. Ou não, pois só a presença dele já me encorajaria.

Se tenho alguma lembrança boa daquela noite é que não demorei a encontrar a Torre do Oráculo, que na verdade era um casebre pequeno e triangular que, além do nome, não tinha nada de torre.

A porta rangeu quando a empurrei.

O interior pequeno do casebre estava tão escuro e frio quanto o resto da floresta, que tive vontade de sair correndo daquele lugar. Contra toda a minha vontade, dei um passo e entrei na Torre. A porta bateu atrás de mim. Por um momento fiquei a encarar a escuridão, até que um tênue brilho esverdeado começou a inundar o local.

Meu coração deu um salto tão grande que bambeou minhas pernas.

O brilho saía da boca de uma boneca antiga de porcelana, e seus olhos de repente se acenderam num brilho muito verde. Uma voz rouca se fez ouvir, mas a boneca nem se mexeu.

Uma vida por outra será levada

Dois semideuses e dois bruxos para Drear irão

Numa missão que já foi lançada

Nem todos retornarão.

A névoa esverdeada ao meu redor pareceu ser sugada rapidamente pela boneca de porcelana, e tão repentinamente quanto acenderam, seus olhos se apagaram. Tudo ficou escuro novamente. A porta atrás de mim se abriu devagar, mas fechou-se com um baque quando passei por ela. Ao encontrar o caminho de volta para o castelo, só tinha uma coisa em mente.

Eu estava pronta.


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