Meu nome não é Kyle escrita por Garoto de All Star


Capítulo 9
Capítulo 8: There’s so much feelings in my bag


Notas iniciais do capítulo

Olá queridos leitores, hoje tem mais dose dupla de ''Meu nome não é Kyle'', agradeço muito pelos comentários de semana passada. Vocês deixam tudo mais divertido.



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Eu não reconhecia o lugar onde estava, era um dia de sol e tinha música tocando, uma canção alegre, dessas que a gente escuta naqueles carros de sorvete. Meu corpo é pequeno, sou uma criança. Era um lugar com muita gente, eu estava sozinho, mas não foi sempre assim, sinto que largaram a minha mão, ela ainda esta quente, na outra mão eu seguro um boneco do power ranger azul. Fico olhando as pessoas ao meu redor, as risadas, as crianças correndo de um lado pro outro, eu caminho pelo local procurando alguém que eu conheça. Nada parece muito claro, e inconscientemente eu me pergunto - Como eu vim parar aqui? - tenho a mesma sensação de sempre, de que tem uma nuvem presa na minha cabeça. Não sei se estou vendo tudo claramente. Vi alguém se aproximar, é um homem, eu o conheço, mas naquele momento eu não sabia quem ele era, ele me entrega um algodão doce de cor verde e segura minha mão, ele sorri pra mim.

– Jude? - Diz o agente David me acordando, abri meus olhos e a luz da delegacia quase me cegou, acabei caindo no sono em algum momento. Ele esta segurando café e rosquinhas - Desculpe te acordar, mas imaginei que estava com fome.

– Estou morrendo... - Esfrego meus olhos tentando fazer com que eles se acostumem a claridade, não sei por quanto tempo dormi, nem mesmo sei que horas são. Percebo que seu paletó marrom esta sobre mim.

– Obrigado, pela comida - Disse eu, entregando a ele o paletó - e pelo casaco...

– Você estava encolhido nesse banco, achei que estava com frio, eles deixam o ar condicionado ligado no máximo nessa central. Não sei por que - Ele me entrega o café e as rosquinhas - Se quiser mais é só ir à mesa ao fim do corredor.

Ele deixa a comida e sai, pensei que o agente David não tinha ido muito com a minha cara, acho que me enganei. Penso no sonho que eu estava tendo, de certa forma ele se assemelha aos meus sonhos com afogamento, eu me senti da mesma forma, como se fosse mais que um sonho. Concentro-me tentando lembrar o rosto do homem que eu tinha visto, mas agora era como se isso tivesse sido apagado da minha memória. O relógio de parede a minha frente marca dez horas da noite e Joan ainda não havia chegado. Depois que saí de dentro da sala, onde eu recebi a notícia de que minha vida toda era uma mentira. Tentei ligar pra minha mãe mais umas cinquenta vezes, mas ela não me atendeu, parei de ligar assim como parei de chorar. Não era como se não estivesse doendo ainda. Acho que meus olhos simplesmente secaram.

Após isso peguei meu telefone e liguei pra Joan contando o que aconteceu, ela ficou tão perplexa quanto eu por tudo.

– Como foi que isso aconteceu? - Perguntou ela do outro lado da linha.

– Não sei, minha mãe não me atende, e só posso sair da delegacia acompanhado dos meus pais, pais estes que eu não conheço. Estou perdido.

– Que barra...

– Joan eu preciso que você faça uma coisa por mim...

– Claro. Qualquer coisa que você quiser Jude.

– Preciso que você vá a minha casa, entre no meu quarto e coloque em uma mochila o meu notebook, algumas roupas, e tudo mais que você achar que é importante pra mim. Venha até a delegacia, quando você chegar aqui eu troco o conteúdo das mochilas.

– Claro, mas como eu vou saber que coisas eu devo trazer?

– Quando você olhar vai saber... - Disse, secando os olhos mais uma vez, minhas lágrimas não tinham acabado. Era ridículo achar isso, lágrimas não acabam - Você me conhece melhor que ninguém Jo, faça isso por mim, se eu tiver mesmo que ir embora, quero levar qualquer coisa que me lembre quem eu sou.

– Tudo bem, eu vou fazer isso, fica bem tá legal? Eu já chego aí.

Só que ela ainda não havia chegado, ela está demorando, quero tanto que ela chegue antes deles. Não é só pelas minhas coisas que eu quero que ela venha. Não quero correr o risco de partir sem antes me despedir. Quero que ela venha pra eu poder vê-la pela última vez antes que tudo mude. Sei que posso contar com ela, sei que ela vai chegar, mesmo que tenha que desobedecer a avó, ou a tia, é assim que funciona quando um de nós está com problemas e precisa de ajuda. Foi assim quando ela perdeu o casaco roxo de botões da tia dela no metrô. Ficamos procurando o casaco na estação por quase uma hora até acharmos ele com um mendigo. Foi mais uma hora pra convencer o mendigo de que roxo não era a cor dele, e que ele precisava nos devolver. Foi assim quando eu bebi tequila pela primeira vez e não conseguia parar em pé. Ela me levou pra casa dela e disse pra minha mãe que tínhamos um trabalho surpresa pra entregar no outro dia e que eu ia dormir na casa dela pra ficarmos até tarde fazendo.

Mordo a rosquinha e mastigo, tem recheio de leite condensado e coco ralado, aquilo teria me deixado feliz, se alguma coisa ainda pudesse me deixar feliz. Bebo o café no copo de isopor, ele não colocou açúcar, provavelmente não sabia a quantidade a colocar, ou se deveria colocar. Estou tão perplexo com tudo que acho que nem ligo mais, bebo o café mesmo estando amargo. Então me dou conta que aquele é o verdadeiro sabor, o verdadeiro sabor do café, que eu nunca tinha sentido de verdade. Nós vivemos fazendo esse tipo de coisa, pondo açúcar, modificando e amaciando tudo pra ficar mais fácil de consumir, mais fácil de lidar. Mas acho que chega um momento que não tem mais como amaciar as coisas, eu sou como aquele copo de isopor, minha vida é como aquele café e no momento nem todo o açúcar do mundo pode deixa-la doce e suportável.

Olho para o lado e vejo Joan entrando pela porta da delegacia, ela caminha em minha direção e eu me levanto. Ela me dá um abraço apertado, não falamos nada por alguns segundos.

– Que bom que você veio. - Digo após soltá-la. Nós nos sentamos no banco.

– Como eu poderia não vir? - Disse ela passando a mão no meu rosto - Nunca ia te deixar sozinho nessa.

– Você demorou tanto, eu cochilei, cheguei a pensar que você tinha vindo e a polícia não tinha deixado você entrar.

– Eu só demorei porque estava esperando os policiais deixarem o andar de vocês, senão eu não poderia entrar, tem um carro de polícia de guarda na porta do nosso prédio, eles estão mesmo atrás da sua mãe.

– Então ela fugiu mesmo. - Digo desviando o olhar, no fundo eu ainda tinha esperança que ela aparecesse na delegacia e dissesse que tudo não tinha passado de um mal entendido.

– Eu acho que sim Jude, eu estive no quarto dela, quase todas as roupas sumiram.

– Isso é um pesadelo...

– Você é mesmo obrigado a ir com eles? - Pergunta ela.

– A agente do FBI me disse que é a minha melhor opção, se eu me recusar eu posso ir parar no sistema - Esfrego meus olhos e respiro fundo - Talvez eu devesse aproveitar essa mochila e fugir.

– Não. - Disse ela, segurando minha mão - Isso é loucura, eles te achariam antes que você pudesse piscar, confie em mim, você não tem nenhuma vocação pra fugitivo.

– Então o que eu faço Joan? Eu não posso simplesmente ir embora com essas pessoas.

– Você precisa se acalmar. - Disse ela, me olhando nos olhos. Percebi uma inversão de papéis, geralmente eu era o amigo conselheiro e ela era a amiga impulsiva - Se sua melhor opção é ir embora com eles, então vá... Entenda melhor o que aconteceu, não esqueça que eles estão te procurando a um tempão, você não sabia de nada, mas eles sempre souberam que você estava desaparecido, eu duvido que eles sequer tenham esquecido algum momento.

– Eu sei, eu sei disso... Mas eu estou apavorado.

Respiro fundo mais uma vez, e abro a mochila pra ver as coisas que ela me trouxe. Tem muita coisa, imagino o sacrifício que ela fez pra que coubesse tudo ali dentro. Vejo o meu notebook, algumas mudas de roupa, meu livro preferido.

– Esta finalmente me devolvendo meu livro? - Digo, segurando meu exemplar antigo de "Admirável Mundo Novo".

– Eu queria ter ficado com ele de lembrança, mas me senti uma farsa por isso, ele já estava lá em casa há quase um ano e eu nunca abri pra ler, sei que você ama esse livro.

Também havia na bolsa todos os meus cds, um Pikachu de pelúcia de quando eu era pequeno, o meu brinquedo favorito no primário, eu o guardava no fundo do guarda roupa. Havia um headphone amarelo, um aparelho de discman velho, que eu uso pra ouvir meus cds, uma velharia de quando eu tinha doze anos, sei que quase mais ninguém faz isso, talvez ninguém mais tenha discman hoje em dia. No meio de tudo está um porta retrato meu e da minha mãe, é o porta retrato que fica em cima do meu criado mudo. Eu o pego na mão e observo atentamente a foto, eu contorno com a mente cada traço daquela imagem.

– Achei que era importante... - Diz ela, me olhando encarar a foto.

– E é mesmo... - Não importa que ela tenha mentido pra mim, ela ainda é minha mãe, ela é tudo o que eu tenho e eu sou tudo que ela tem. E não existe nenhuma dúvida quanto a isso.

– Tem outra foto aí na mochila - Disse Joan, eu a olho e ela faz sinal com a cabeça indicando a bolsa, eu procuro mais um pouco.

Havia um outro porta retrato dentro da bolsa, mas não era meu. Nele tinha uma foto minha e da Joan durante o nosso passeio de escola ao planetário no sexto ano. Foi um dia tão legal, não pelas projeções do universo e representações de todas as galáxias, nós quase não prestamos atenção em nada, apenas ficávamos rindo da voz do narrador que parecia que tinha uma batata quente na boca.

– Nossa foto do planetário - Contorno os traços da imagem em pensamento, da mesma forma que eu fiz com a foto minha e da minha mãe, acho que é um jeito de fixar a imagem no fundo da minha memória, pra nunca mais esquecer.

– Além disso, eu tenho mais uma coisa pra você - Ela tirou do bolso uma pulseira macramê, idêntica a uma que ela esta usando.

– Pulseira do Bob Marley?

– Pulseira da amizade - Disse ela, amarrando-a ao redor do meu pulso esquerdo - Se ousar tirá-la, seu braço vai cair, então nem pense nisso.

– Obrigado - Disse abraçando-a mais uma vez, durante o abraço eu olho a porta da delegacia atrás dela. Duas pessoas acabaram de entrar, eles estão conversando com o agente David e com a agente Nathalie. É um homem e uma mulher, eles estão agitados. A agente Nathalie indica a eles com a cabeça onde eu estou.

– Meu Deus, são eles... - Digo me levantando, Joan olha em direção a eles também.

Eles caminham quase correndo em minha direção, a mulher vem na frente, ela é talvez um pouco mais velha que minha mãe. Tem os cabelos loiros como ela, só que em um tom bem mais claro, e curto na altura dos ombros. Ela veste um casaco de trincheira bege, parece ser uma mulher elegante. Antes mesmo de ela chegar até mim já esta se desmanchando em lágrimas. O homem é alto e grisalho, deve ter uns quarenta anos ou menos. Um pouco antes deles chegaram mais perto de mim eu começo a tremer. Sinto vontade de sair correndo na mesmo hora, não sei se tenho folego pra mais isso.

– Kyle! Ai meu Deus! meu filho! – A mulher se joga em cima de mim em um abraço, quase caímos os dois no chão. Ela segura meu rosto e me beija várias vezes enquanto chora descontroladamente - Meu filho! Como você está grande e lindo! Achamos você meu amor, achamos... - O homem está parado atrás dela e chora também, só que em silêncio. Não sei como agir, não estou confortável com tanto carinho vindo de estranhos. Mas ao mesmo tempo lembro-me das palavras da agente Nathalie "Essas pessoas são seus pais, sofreram pela sua ausência e estão te procurando há quatorze anos, incessantemente" Seria maldade privar eles desse momento. Agora é a vez de o homem vir me abraçar, uma coisa muita estranha acontece quando ele me abraça, sinto o calor vindo do peito dele, ele põe a mão sobre a minha nuca e me beija no rosto, então tudo aquilo me pareceu estranhamente familiar de um jeito louco. Antes que eu dê por mim, as lágrimas começam a escorrer do meu rosto.

– Você se lembra de nós? - Pergunta ele, segurando meu rosto e secando as minhas lágrimas com a mão, eu olho o rosto dele com atenção. Não chega a ser familiar, não era como se eu sentisse que já o tinha visto antes. Mas ele tem os olhos verdes e profundos, olhos são verdes como os meus - Sou eu, seu pai...

– Claro que ele se lembra de nós Daniel, somos os pais dele – Disse a mulher pondo a mão sobre a boca enquanto continuava a soluçar.

Olho aqueles rostos novamente, apesar do que eu senti durante o abraço, simplesmente eu não consigo reconhecer nenhum deles. São dois rostos estranhos, como qualquer outro que a gente vê na rua.

– Me desculpe, eu não... - Mexo a cabeça negativamente - não.

– Jude... - Diz a agente Nathalie pondo a mão sobre os meus ombros - Como você já percebeu, esses são Daniel e Nicole Marshall, seus pais biológicos.

– Ele não se lembra de nós, como é possível? - Diz Nicole, ela parece surpreendida.

– Era o que eu estava tentando lhe dizer ali na porta senhora, o Kyle não se lembra de nada da época do sequestro, nem de nada da vida dele em Ohio.

– Isso é normal? - Pergunta Nicole novamente - Ele está traumatizado? Está em choque ou algo do tipo?

Não estou traumatizado, ou pelo menos não estava até pisar nesta delegacia, será que eles pensam que eu estive em cativeiro até o dia de hoje?

– Acho que isso é perfeitamente normal, muitas pessoas têm poucas lembranças dessa época da vida - Diz o agente David.

– Não tem problema algum nisso - Diz Daniel, ele continua segurando meu rosto com suas mãos, os olhos dele estão vermelhos de chorar, apesar de parecer mais controlado que a esposa - Temos todo o tempo do mundo pra nos conhecermos... Você está indo pra casa filho, isso finalmente terminou.

"Para vocês" Queria dizer a ele "Terminou pra vocês, mas pra mim só esta começando".


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