Diário de uma Judia escrita por Contadora de Histórias


Capítulo 6
Página 6 - Nazistas só gostam de nazistas




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/526538/chapter/6

1940

22, Januar

Sair naquela noite não foi algo fácil. Depois de um tempo, como se já não bastasse o frio, começou a nevar. Eu ainda não havia visto a neve caindo até o momento em que cheguei às proximidades do lanterna e flocos gelados começaram a flutuar sobre minha cabeça, isso era um pouco preocupante. Não era algo bom enfrentar uma eventual tempestade fora de casa.

Olhei para o céu e não vi nada além da escuridão. Quanto mais me aproximava do galpão, mais um certo desconforto sentia. Esses últimos meses foram tão cheios de intemperes e parece que todo o meu cuidado para me proteger está indo por água abaixo.

Quando o Klaus descobrir... Vai surtar.

Quando cheguei ao lanterna, tomei cuidado para passar longe da casa do senhor Gal. Ele ainda devia estar muito magoado por conta do rádio.

Ri com o pensamento.

Como estava nevando, eu não precisava me preocupar em apagar minhas pegadas. As casas estavam todas fechadas e escuras e o silêncio imperava no local. Apesar da pouca luminosidade, dava para enxergar certos traços das casas e acabei percebendo, colado descontraidamente, atrás de uma das casas, um cartaz. Me aproximei e vi que estava escrito:

Procurada

Judia Imunda

Recompensa: 1 Barra de Ouro

Duvido que ele tenha uma barra de ouro. Caloteiro.

E logo em baixo um retrato meu desenhado, muito mal feito por sinal. Arranquei da parede.

– Minha sobrancelha não é tão grossa. – fiz uma careta.

Ouvi um barulho dentro a casa e logo tratei de sair dali.

Depois de um tempo andando, cheguei ao galpão. Senti um calafrio percorrer minha espinha assim que parei em sua entrada.

Elza. Esse era o nome da garota.

Ele era maior do que eu pensava e tinha duas portas gigantes muito bem trancafiadas. O arrodeei tentando descobrir por onde aquele retardado entrava nesse galpão, mas não encontrei nada, até que tropecei em algo enquanto andava.

– Merda – praguejei.

Quando observei melhor no que tinha tropeçado, vi que era uma espécie de corrente bem grossa. Tirei a neve de cima, o que revelou uma tábua sobre o chão, como se fosse uma porta subterrânea.

– Claro, ele não seria tão burro de ficar no galpão de fato. – murmurei.

Tentei puxar a corrente e abrir a entrada.

– Judia imunda... – ouvi uma voz suave atrás de mim, meu coração parou nesse momento – recompensa: 1 barra de ouro. – me virei.

Era ela... De novo.

– Parece que hoje é meu dia de sorte – disse sorrindo e me mostrando o cartaz igual ao que eu peguei.

Engoli em seco. Pelo menos era ela e não o senhor Gal. Qual era o problema daquela garota? Por que ela sempre estava nesse horário por essas bandas? Ela não tem cara de pobre, muito pelo contrário, deve ser filha de alguém bastante importante. Ela era a representação fiel de um nazista. Por que ela sempre estava por aqui...

Ai caramba...

Não pode ser...

Ainda não havia pensado nisso.

– E então, o que tem a dizer em sua defesa? – provocou, ainda com um sorriso sínico.

– Elza – minha voz saiu realmente fraca.

Mas ela ouviu, pois seu sorriso morreu no mesmo segundo.

Deu alguns passos em minha direção. Sua expressão era de confusão e raiva.

– O que você disse? – perguntou ela.

Um sorriso se formou em meus lábios. – Elza... Pelo que eu ouvi falar, você parecia mais educada.

Ela cerrou os olhos me observando friamente. Deu mais um passo e ficou a centímetros a mim. Era ela, tinha certeza.

– Te dou três segundos para sumir da minha frente e nunca mais botar os pés aqui. – disse firme.

– Você é muito mandona, sabia? – falei dando alguns passos para o lado – e espaçosa também. Deve ser algo em comum entre vocês nazistas – quase cuspi a última palavra.

– Já vocês... – começou andar, me imitando – São muito sorrateiros. Tal como ratos. – foi a vez dela cuspir a última palavra.

Precisei de todo o meu autocontrole para não ataca-la naquele segundo. Ratos. Esta palavra me incomoda, pois parece ser a definição do que eu sou hoje e eu odiei que ela jogasse isso na minha cara como se tivesse autoridade para tal coisa.

Eu queria muito soca-la naquele momento. Igual como eu fiz no meu último ano na escola, a raiva se espalhou pelo meu corpo e foi parar novamente em meu punho. Eu ia acabar com ela.

Porém, não consegui fazê-lo, eu não iria cometer esse erro novamente. Sempre palavras, somente elas têm tal poder de destruição, um soco não é nada perto de uma palavra. Por isso, me resguardei.

Respirei fundo buscando serenidade.

– Sabe, eu adoraria continuar discutindo nossas virtudes... – fiz uma pausa, para olha-la nos olhos – Porém, Elza, alguém precisa da sua ajuda.

Ela franziu o cenho, confusa. – Como pode saber meu nome...

Sorri – Então, esse alguém muito especial me contou...

– Mas...

– shh! Não gosto de ser interrompida. – reclamei e continuei – Sei muito bem que veio aqui para ver seu namorado... E ele, seu namorado, é muito irritante, igualzinho a você – sorri cinicamente – Não vou mentir, não gosto dele, mas, ele tem algo que eu quero e ele precisa estar vivo para que eu consiga o que ele tem, entende, querida?

Senti seu olhar enfurecido em minha direção. – O que fez com ele?

– O que eu fiz? – gargalhei – salvei a vida dele. E estou fazendo isso de novo.

– Que espécie de joguinho sujo você está tramando?

Suspirei – Ele me disse que se eu falasse dele para você, você o ajudaria. Aaron, o jovem e sonhador comunista. A beira da morte... Pode acreditar? Seria algo muito, mas muito triste se ele morresse, não acha?

Ela se aproximou pronta para me acertar, porém, segurei seus braços.

– Me enoja ter que falar e tocar em você. – ela engoliu em seco – Ele não está aqui. Está na minha casa.

Senti sua respiração pesada bater no meu rosto e seu olhar fixo no meu. De repente essa proximidade me incomodou e a empurrei para longe.

– É o seguinte, Elza: Por mais que eu odeie essa ideia, você terá que vir comigo.

Ela parou e continuou a me fitar friamente.

– Ou seu amigo vai morrer. – afiancei.

A loira ficou paralisada me observando enquanto parecia estar em um conflito interno. Fiquei aguardando sua decisão, ela parecia sem rumo, sem saber o que fazer. Talvez precisasse de alguma ajuda para aceitar a proposta.

– Eu não estou tramando nada. Só tenho 18 anos, meus pais estão em alguma prisão sádica nazista e vivo escondida igual a um rato – pronunciei a última palavra imitando seu tom de voz, essa palavra realmente me incomodou – se alguma pessoa sairia perdendo nessa história, essa pessoa seria eu. Mas seu amigo tá na minha sala enchendo o meu saco, melhor que faça algo pra tirá-lo de lá ou então ele morrerá.

Acho que me sai bem nessa última tentativa de convencê-la, porque finalmente pareceu se convencer. Ela tomou ar e questionou – Posso saber onde é sua casa?

– Estamos na parte sul da cidade, ela fica a sudoeste, depois da floresta e na cordilheira, em um local bem privilegiado, diga-se de passagem.

– Estou há dois anos na juventude hitlerista, sei tudo sobre técnicas de luta e sobrevivência. Se tentar qualquer coisa contra mim, eu prometo que acabo com você em dois segundos. – ameaçou.

Acho que isso foi um sim.

Sorri – Você não tem outra escolha a não ser vir e eu não tenho outra escolha a não ser te convencer a vir. Preciso dele vivo, pelo menos por enquanto – provoquei.

Bom, não nos matamos e isso era um bom sinal, talvez conseguíssemos chegar à cabana vivas e ilesas. Andamos lado a lado pela escuridão enquanto eu pressionava minha mão na cintura onde se localizava minha faca, só por precaução. Tínhamos que ir ao hospital para pegar algum remédio ou algo que ajudasse aquele ferimento dele e eu precisava avisá-la.

– Ele está com um corte... – comentei, esperando sua reação.

Ela arregalou os olhos – o que você fez com ele?

Arfei impaciente – Já disse. Salvei a vida dele.

– Um corte? – perguntou secamente.

– Sim, você não andou cuidando muito bem dele. – insinuei sarcasticamente – Temos que passar no hospital antes de ir à minha casa.

– Como assim hospital?

– Ele precisa de algum medicamento ou algo que o ajude com o ferimento dele... – dei uma breve pausa e fingi estar pensando – Que tal um enfermeiro? – provoquei com um sorriso.

Ela me fitou com mais ódio nos olhos – Eu sou enfermeira.

Arqueei as sobrancelhas, duvidando de sua afirmação – Enfermeira? Não é muito jovem para ser enfermeira?

– Isso não é da sua conta. Como é o ferimento dele?

– É um corte bem grande na perna. Parece que alguém a rasgou de propósito... – expliquei.

Ela olhou raivosamente para a minha mão direita que estava sobre a faca na minha cintura.

Grunhi – Não fui eu! Eu salvei...

– A vida dele. – interrompeu-me, revirando os olhos – Eu sei. Você não para de repetir isso a cada segundo.

– Aham, e você não parece muito agradecida por isso. – rebati.

Ficamos em um silêncio agoniante durante o restante do caminho, nos olhando, uma esperando que a outra fizesse alguma ação suspeita. Mas nada partiu de nenhuma de nós. Logo chegamos nas proximidades do hospital.

– Fica! – ordenou.

– Como desejar, alteza. – respondi friamente – Mas lembre-se: Seu amigo está comigo, sem gracinhas.

E ela entrou. Quando voltou, voltou com uma maleta branca, que tinha pintada o símbolo da cruz vermelha. Passou por mim feito um furacão e começou a andar em uma direção aleatória. Logo parou quando percebeu que não a acompanhei.

– Vai ficar parada aí que nem um poste? – reclamou.

Segurei o riso – Mas, alteza, minha casa é para o outro lado.

A loira virou e começou a andar na direção oposta, passando por mim novamente.

– Ridícula – xingou.

Nazistas... Revirei os olhos.

O resto do caminho foi realmente tenso e cansativo. Eu já estava cansada de manter a guarda levantada, cansada de andar e cansada por não ter dormido noite passada e provavelmente não dormirei esta noite com esses dois na minha cabana. Toda essa situação já me esgotara.

Se eu tivesse o deixado morrer na floresta, provavelmente não estaria com problemas agora. No entanto, ainda sou um ser humano, apesar de os nazistas estarem nos convencendo o contrário, e tenho sentimentos. Aaron também sabe onde os meus pais estão e isso significa que eles estão vivos.

Contudo, havia também a possibilidade dele estar blefando. Já que todos na cidade sabiam quem eu era e quem eram os meus pais. E ele só poderia estar me usando para que eu o ajudasse. O pensamento me fez parar.

– O que está fazendo? – a voz da loira me tirou do meu devaneio.

– Se seu amigo só estiver me usando para salvar a vida dele, eu o matarei. – afiancei – E matarei você também. – completei.

Ela levantou o queixo em sinal de superioridade, não se abalando com minha ameaça – Se você tentar nos matar é bom que consiga. Por que, senão, os cidadãos de Kahl irão adorar saber que a Stern caçula ainda está por essas redondezas e viva.

Engoli com dificuldade, mas não deixei transparecer meu medo.

Essa garota é... Desafiadora.

E isso me dava arrepios. Acho que ela percebeu certo receio em minha expressão e deu um pequeno risinho.

Prepotente.

Refiz o caminho todo com ela, uma espreitando a outra. Eu tinha certo medo dela dar um grito e chamar a atenção para que me prendessem, porém, Aaron parecia ser alguém que realmente importava para ela. Eu só não consigo entender como ela gosta de um comunista. Nazistas odeiam comunistas. Na verdade nazista só gostam de nazistas.

– Não entendo... – soltei as palavras sem perceber.

Ela me olhou.

Resolvi continuar – Nazistas só gostam de nazistas. O que aquele garoto tem para fazer com que você não o odeie?

Olhou para frente novamente. A neve já havia parado de cair e a noite estava fria, sombria e silenciosa. E eu estava cada vez mais me arriscando com essas pessoas.

– Eu não falo com judeus. – murmurou em resposta.

Soltei um pequeno riso – Mas fala com comunistas. O que sua família acha disso? – provoquei.

Nessa hora, ela parou de andar e se virou para me fitar – Nunca use sua boca suja para falar da minha família! – seu tom de voz era grave.

Senti o ódio de suas palavras e de seu olhar me atravessarem. Eles são todos iguais, o lado que está ganhando adora tripudiar em cima do que está sendo massacrado. Não me acanhei com o ódio de suas palavras, pelo contrário, isso fez com que suscitasse dentro de mim uma questão: Por que só deve existir nazistas puros, sem comunistas, judeus e homossexuais?

Não deve ser apenas uma questão de preconceito, tem coisa maior envolvida. Klaus nunca me responderia, talvez me desse uma resposta sem sentido antes de terminar de explicar. Entretanto, sei quem me diria exatamente o que estava se passando e ainda me diria onde meus pais estão.

Aaron.

Eu tenho certeza que ele tem respostas, de alguma forma senti em seus olhos quando me convenceu a vir atrás de ajuda e quando me provou que tem uma amiga nazista. Ele sabe o segredo, a chave e o sentido de tudo isso.

Não rebati as palavras contra a loira. Preferi me virar e voltar a andar, como um belo ato de superioridade. Eu ia me vingar e, no momento, precisava dela para salvar o garoto.

Ao avistar o lago, um certo alivio percorreu meus poros e meu corpo relaxou levemente. A cabana, logo depois dele, aparecia opulente e como um majestoso palácio, dono da natureza cinza ao seu redor.

Quando chegamos na cabana, abri a porta calmamente, torcendo para que Aaron ainda estivesse vivo. Tinha uma vela acesa bem ao lado dele e ele parecia estar dormindo. Mas como já se sabe, não sou boa em saber quando alguém está dormindo ou não.

Ouvi o barulho da maleta, que a loira carregava, ao cair no chão abruptamente. Ela saiu correndo para tentar acordá-lo.

– Aaron – o sacudiu – sou eu, Elza. Acorda!

Fiquei parada na soleira observando a cena. Será que ele iria acordar dessa vez? Olhei ao redor, para checar se a cabana ainda estava inteira e parecia estar do mesmo jeito que deixei há algumas horas. Ainda era madrugada e eu estava faminta.

– Aaron... – voltei minha atenção aos dois. Ele estava acordando.

Me aproximei deles.

– Ele parece mais pálido. – olhei para a perna encharcada de sangue – Tá vendo isso? – apontei para a perna – você tem que dar um jeito nessa perna.

– Elza... – ouvi seu sussurro e meio sorriso. Ela sorriu de volta.

Eca, pensei. Fiz uma careta.

– Nada de beijos na minha casa. – reclamei.

A loira me fuzilou com os olhos.

– Rachel... – Aaron começou – você é a melhor. – agradeceu sorridente.

Dei de ombros – Eu sei.

Peguei uma maçã e meu diário no armário, depois meu rádio. Dirigi-me para fora. Antes de sair, levei o lampião. Eu precisava de um tempo só comigo. As últimas horas me esgotaram e eu não aguentava mais falar com pessoas. Precisava pensar. Precisava escrever. Botar tudo para fora. Fui para a beira do lago.

Pareço durona, mas fico feliz em ver que o Aaron vai conseguir um tratamento digno para o seu ferimento. Pelo menos ela gostava dele e mesmo que o jovem comunista morra, vai ter alguém que se importe com ele do seu lado.

Esse último pensamento fez com que eu sentisse algo estranho dentro de mim, algo novo, algo inesperado... Faz um bom tempo que ninguém se preocupa comigo dessa maneira. Tem o senhor Klaus, mas ele não se preocupa com essa parte emocional, ele se certifica se eu realmente estou na cabana e só, esse é seu jeito de se importar, é tudo muito mais por sua dívida de gratidão para com meus pais do que por realmente gostar de mim. Por isso que sinto falta de alguém que se atente a minha parte emotiva, a parte em que estou mais frágil e eu não tinha esse alguém. Na verdade, nunca tive. Nunca prestei atenção nisso até agora, agora que preciso disso.

Inveja.

Sim, eu, Rachel Stern, a filha adorada e protegida do banqueiro e prefeito da cidade de Kahl, a garota com a vida perfeitamente rica, confortável... Ou pelo menos costumava ser. Não mais, agora me diminui a mero ser que merece ser descartado.

Estou com inveja daqueles dois. Que sensação ruim.

Sim, eles tinham um sentimento real um pelo outro. Algo que valia arriscar a própria vida.

Soltei um riso sem humor.

– Como o mundo dá voltas... – foi o que saiu da minha boca.

Eu estou cansada, meus olhos brigam para ficarem abertos e não quero mais lutar contra isso. Preciso de alguns minutos de descanso, sei que é arriscado, só que isso não me importa agora. Só preciso fechar um pouco os olhos...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Diário de uma Judia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.