Contos de Enigma escrita por DezzaRc


Capítulo 2
Jason Cole


Notas iniciais do capítulo

O primeiro conto, a pedidos, foi o de Jason Cole. Ele antecede os dias de sua ida para casa de Julie, e os motivos por trás da decisão. Este conto é bem diferente do estilo de Enigma, pois Jason é um personagem problemático. Contém linguagem imprópria e violência explícita. Espero que entendam o que se passa na cabeça do nosso loirinho favorito. Caso queira conferir o teaser: https://www.youtube.com/watch?v=TpAlHcixW-g. Boa leitura!



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I tried to be perfect

But nothing was worth it

I don't believe it makes me real

I thought it'd be easy

But no one believes me

I meant all the things I said

(Pieces - Sum 41)

Jason Cole

O ser humano tem este desejo doentio de ser amado.

Por onde quer que eu vá, tudo ao meu redor grita a maldita palavra amor. A mulher pálida e esquelética está correndo atrás de um garoto rechonchudo a alguns metros de mim. Ele não irá levar uma bronca. Estão apenas se divertindo no parque, um sorriso irritante está prestes a rasgar a face do garoto estúpido. Não muito longe deles, há um casal preso em uma troca de olhares contínua. Qual é a necessidade daquilo?

Puxo o capuz do casaco que uso e enfio as mãos no bolso. Um cachorro desajeitado por pouco não me derruba, solto um belo palavrão, atraindo a atenção do gorducho com sorriso de palhaço. A mulher esquelética, que acredito ser sua mãe, me lança um olhar de desaprovação, e tudo que faço é retribuir com um sorriso debochado. O dono do pulguento passa por mim sem nem ao menos se desculpar; logo penso como seria uma pena se o cachorrinho dele sumisse.

Mais amor.

Um trio de garotas está rindo em um dos bancos próximo a mim. Uma delas diz, animada, sobre um tal de Peter ser um cara incrível. Eu até posso contar nos dedos quanto tempo irá levar para ele se tocar do quão idiota esta garota é, e a largar. Um mês no máximo. Ninguém consegue aguentar um mala por tanto tempo. A não ser que você também seja um.

Levo um tapa nas costas, e, por pouco, não dou uma cotovelada nas costelas do meu melhor amigo. Seria mais uma entre tantas que ele já ganhou de mim.

— Você tá chapado?

O projeto de mauricinho surge na minha frente e bloqueia meu caminho. Não consigo olhar para seu cabelo e não rir. Nem quando eu era um pirralho partia o cabelo de lado e passava gel para ficar colado na cabeça, mesmo que meu cabelo seja estilo tigela, como ele vive me lembrando. Desde que o conheço, não sei se Thomas é moreno ou loiro, pois nunca o vi de cabelo seco. O nariz pontudo também o ajuda com a imagem de garotinho mimado, embora ele passe longe de ser um.

— Olá pra você também.

— Você tá com cara de quem fumou... Qual foi, Jay-Jay? Tão cedo assim?

Dou-lhe um soco de brincadeira no estômago.

— Não me chamo Tommy.

Ele desvia do meu golpe, rindo.

— Tommy, Jason?! Apelou, hein, cara.

— O que faz no parque de manhã? Achei que só acordasse à noite.

Ele puxa uma carteira de cigarro do bolso do jeans, tira um e oferece-me outro. Aceito e uso seu isqueiro para acendê-lo. Começamos a caminhar lentamente no parque florestal.

— Fui praticamente despejado de casa. Meu padrasto tá lá.

— Ah — é tudo o que digo.

Continuamos a caminhada em silêncio, cada um distraído em sua própria baforada de cigarro. É fácil ser amigo de Thomas. Ele não acredita no amor, como eu. Nem uma única dose de drama corre nas suas veias. Para ele, tudo é preto ou branco, não tem meio termo. Fala nas horas certas e não é enxerido. E tem uma vida de merda como a minha.

— Vai ter um racha hoje na saída da cidade.

— Os caras me disseram — respondo.

Jogo-me em um dos vários bancos de pedra espalhados pelo parque, exausto. Damos umas três voltas na reserva. Thomas senta ao meu lado, sem fôlego. Devíamos parar de fumar, isso realmente acaba com nossos pulmões. Puxo o casaco por cima da cabeça, e fico apenas com a regata branca de baixo. O tempo está relativamente frio, mas a corrida acelerou minha pulsação, a ponto de suar bicas.

— Você vai?

— Lógico.

— Douglas também — ele comenta, como quem não quer nada. Mas ele quer.

— E daí? — rebato seco.

— Você não tem medo que ele arme outra pra cima da gente? Escapamos da última por pouco.

Solto uma risada ácida.

— Eu, com medo do Douglas? Qual foi, Thomas? Tá me tirando? Não tenho medo daquela putinha.

— Se você diz...

Não respondo. Ao invés disso, apoio o cotovelo nas pernas e enterro a cabeça nas mãos, esgotado. Não dormi nada esta noite.

— O que você tem, cara? Desde que cheguei, você tá estranho.

Detecto preocupação no tom de voz do meu amigo, mas pondero se conto ou não a ele. Thomas já sabe de tudo mesmo, uma coisinha a mais não irá assustá-lo.

— Ethan quer me mandar para fora da cidade.

— O quê?! Como assim?

Viro à cabeça nas mãos para olhá-lo e me deparo com seus olhos escuros esturricados devido à magreza, o que me faz lembrar um personagem cômico de desenho animado. Aparentemente, ele curte o visual “filhinho da mamãe”, embora sua mãe perca mais tempo mimando o padrasto da vez do que o filho biológico.

— Isso mesmo que você ouviu. Papai está tentando ser útil.

— Por que logo agora? Você já é maior de idade, não precisa aceitar essa merda!

— E como acha que vou viver, Thomas? Sou um vagabundo que vive do dinheiro dos pais. Não sei nem soletrar a palavra “trabalho”. Ela me dá arrepios!

Ele revira os olhos.

— Você nem ao menos tentou, deixe de ser trouxa. Prefere ser mandado pra fora?

— Só preciso me manter na linha. Ethan disse que se eu aprontar mais alguma, não terá volta.

Thomas solta uma risada irônica.

— Jason Cole, comportado? Vou organizar sua festa de despedida.

— Quanta fé em mim, hein? Obrigado!

Ele dá um tapinha amigável em meu ombro.

— Daremos um jeito.

§§§

Thomas me acompanha até em casa. Vamos ter uma partida de videogame decente antes do racha desta noite. Eu sempre ganho nos pegas. Douglas também. Ele não é meu inimigo, apenas o antagonista da minha vida. Até hoje não sei exatamente o que ele tem contra mim, pois dividimos a mesma turma. É mais um riquinho mimado, de família perfeita, namorada perfeita, e, talvez, vida perfeita, se não andasse com esse bando de perdidos.

Douglas é o que chamo de rebelde sem causa.

Assim que Kelly vê Thomas, seus olhos brilham e tudo que sinto é nojo. Felizmente ou infelizmente, ainda não me decidi, puxei a família dela; cabelo amarelado e espigado, mais de um metro e oitenta, porte atlético e olhos verdes foscos. É a marca da família Cole, e sim, eu adoto o nome da família da minha mãe, e não do meu pai. Apesar dela não valer um centavo, seu sobrenome vale.

— Thomas, querido! Não sabia que vinha aqui hoje — ela comenta descaradamente e fecho a cara. Claro, se soubesse que ele viria, teria vestido mais um dos robes reveladores.

— Oi, Sra. Cole — cumprimenta sem graça.

— Já disse para não me chamar assim, benzinho — Kelly continua com a voz melosa, aproximando-se perigosamente do meu amigo, que a fita de olhos arregalados.

Puxo-o pelo capuz e o arrasto dali antes que minha querida mãe dê mais um de seus botes.

— Sua mãe aumentou os seios mais uma vez, cara?

Cerro os olhos.

— Não acredito que você estava olhando os peitos da minha mãe!

Pego um dos joysticks e jogo o outro em cima dele, com raiva. Estamos em meu quarto e faço questão de trancar a porta para que Kelly não apareça com uma de suas desculpas esfarrapadas para dar em cima do Thomas. Ela dá em cima de qualquer um, na verdade.

— Ei, a culpa não é minha! Sou homem.

— E ela é uma vadia, já sei — completo sarcástico. — E Ethan um caça dotes. Tenho uma família desequilibrada, não há nada que precise ser lembrado.

— Não banque a garotinha dramática — rebate, enquanto escolhe um dos jogos de corrida de carro dentro da gaveta entupida de CDs. — Minha vida também não é cheia de flores.

— Escolhe logo essa merda.

§§§

A noite chega como um borrão. Thomas foi para casa horas antes e ainda tive que escoltá-lo até a porta, embora, para nossa sorte, Kelly tinha saído. Devia estar traindo meu pai por aí. O pior é que ele sabe de tudo e não faz absolutamente nada para mudar a condição de chifrudo. Ele é mesmo um alpinista social. Separar de Kelly é o mesmo que dar adeus à empresa de cosméticos que ela herdou. Ela devia ter assumido seu império, mas, pelo visto, só tem competência para uma coisa na vida. E então, Ethan tomou seu lugar e não saiu de lá desde então.

Eu tenho nojo da minha família.

Visto um jeans rasgado qualquer e procuro por uma das jaquetas de couro costumeiras. Saio com frequência à noite e meus pais sabem disso, apenas não ligam. Pelo menos Ethan não ligava até agora.

— Onde pensa que vai? — ele pergunta da sala, assim que me vê descer às escadas.

Tento ignorá-lo, mas Ethan bloqueia a passagem com o corpo. É estranho vê-lo sem os costumeiros ternos, com roupas tão despojadas quanto uma camisa de manga e moletom. Nas raras vezes que nos esbarramos pela casa, ele sempre está chegando ou saindo para o trabalho. Eu o evito.

— Eu lhe fiz uma pergunta, Jason.

— Por que finge se importar? — lanço-lhe um olhar de desafio.

Ele solta um longo suspiro e passa a mão na cabeça quase careca. Que os céus me livrem desse fim tenebroso. Não nos parecemos em nada, uma vez que ele é moreno e eu, loiro. Seus traços são retos e os meus mais angulares. Muitos até me julgam ser adotado, ou que Kelly pulou a cerca mais uma vez. Entretanto, há certas particularidades que nos assemelha, como o formato do ombro e a forma imponente que nós andamos.

— Eu sempre me importei, filho. — Ele pôs o livro que lia de lado e retira os óculos de leitura. Quando seus olhos se fixam aos meus, não gosto da vulnerabilidade que vejo neles. Ele está se fazendo de vítima.

— Não me chame de filho! — grito, alterado. — Você não tem esse direito.

— Jason...

— Adeus, pai.

Pego o molho de chaves em cima da mesa de vidro, desvio dele, furioso, e bato a porta de entrada sem olhar para trás. O clima aconchegante da sala é trocado pela escuridão da noite fria. Puxo a gola do casaco para cima e caminho até o Mitsubishi estacionado em frente à mansão dos meus pais. Já dentro do veículo, ligo o motor, e, em seguida, o aquecedor. Fico alguns minutos ali parado, apenas pensando na vida. O racha demorará algumas horas para começar, mas qualquer tempo ocioso fora de casa é melhor que ficar naquele inferno.

Abro o porta-luvas e tiro uma carteira de cigarro do compartimento levemente iluminado. Puxo um para me acalmar. Tenho que parar de fumar essa merda, mas o vício é maior que eu. Apenas seguro o papel enrolado por um bom tempo. Quando me dou por satisfeito, manobro o carro o mais rápido possível e saio do que deveria ser meu lar.

Lar.

Aquilo é tudo menos um lar para mim.

§§§

Chego ao lugar onde os rachas acontecem ilegalmente em Providence. É uma estrada velha na saída da cidade, onde há um armazém abandonado. Estaciono debaixo de um toldo e desço do carro. A luz amarelada do poste ofusca meus olhos por alguns segundos, e quando eles se adaptam, percebo que estou imerso em uma grande nuvem de fumaça que ocupa todo o terreno. Estou acostumado ao cheiro de cigarro, misturado a drogas e bebidas alcoólicas — o que mais tem nesses lugares.

O evento está cheio e a noite promete. Caminho através da multidão de adolescentes, muito deles podres de ricos. As garotas mostram o máximo de pele possível em roupas minúsculas, algumas cobertas de tatuagem e piercings. Os homens se vestem basicamente como eu. Noto que há gente da faculdade misturada à galera do colegial.

Encontro Thomas encostado no Honda, com Lesly e Shaunan sentadas em cada lado dele no capô. Elas são irmãs, mas não gêmeas. As duas têm cabelo loiro, mas Lesly possui mais curvas que Shaunan — esta, maior que a primeira. Eu tenho um caso com Lesly, mas ela acha que estamos dentro de um relacionamento sério. Aparentemente, não existe a palavra “conveniência” em seu dicionário. Thomas e Shaunan são apenas bons amigos.

— Ouvi dizer que a grana hoje é alta! — Thomas diz, assim que chego. Ele está com uma garrafa de gim na mão, eventualmente dando alguns goles. Pelo visto, não correrá hoje.

Lesly escorrega do capô com sua minissaia, por pouco não revela mais do que já mostra ao mundo. Ela segura meu braço de forma manhosa e dou-lhe um beijo sem cerimônias. A loira se derrete toda, como a perfeita vadia que é, e antes que enrosque as pernas em mim, afasto-a delicadamente.

— Não corro por dinheiro — eu digo e observo as pessoas ao meu redor. Lesly ainda tenta se esfregar no meu corpo descaradamente. Não é que não goste de suas investidas, mas ela pode ser bem grudenta quando quer.

— Devia pensar nisso, agora que pretende seguir uma vida independente...

Lanço-lhe um olhar gélido sobre o ombro.

— Viver de rachas? Está bem.

Vejo Douglas se aproximar, sozinho. Franzo a testa, pois ele não costuma vir nesses lugares sem ninguém. Apesar de estarmos na mesma turma, é evidente a preferência dos caras pela companhia dele. Douglas me dá um tapa amigável nas costas e aceno com a cabeça. Ele nem ao menos olha para o restante do grupo.

— Pronto pra comer poeira? — Douglas dá um trago em seu cigarro e então seus olhos caem em Shaunan. Ela retorce o nariz e desvia o rosto, com nojo.

— Não acho que seja possível isso acontecer, quando se é o vencedor — dou-lhe um sorriso presunçoso.

Ele pega a isca e rebate em deboche:

— Veremos.

Penso que ele irá se afastar e amolar o saco de outra pessoa, mas, ao invés disso, continua ao meu lado, fumando. Observo-o de perfil e noto que ele é alguns centímetros mais baixo que eu, embora seja mais forte. Há uma grande tatuagem de rena no braço escuro, escapando pela camiseta de couro. Ele tem o costume de raspar a cabeça devido à família militar por parte paterna. Douglas se gaba da patente de general do avô aposentado há anos; ainda que tenha fascínio na área, irá seguir a carreira política do pai.

Um dos anunciantes do evento informa que estão abertas as inscrições para os rachas desta noite. Douglas e eu nos encaminhamos para a fila que se forma na cabine. Enfio a mão no bolso traseiro da calça frouxa e tiro a carteira. Compro a cartela da última rodada, e Douglas faz questão de competir no meu grupo. Ele sempre faz. Jogo algumas notas de cem e garanto que ele se mantenha afastado de mim até a hora da competição.

Permaneço distante dos meus amigos, sentado no meio fio de uma área mal iluminada. Um dos caras ao meu lado me oferece um baseado, que recuso. Eu pareço um idiota cauteloso. O que posso fazer, afinal? É minha estadia na cidade que está em jogo. Quanto menos confusão eu me envolver, melhor para mim. Só faltam alguns meses para entrar na faculdade, e então poderei me livrar de vez de todo este inferno. Não faço nem ideia para onde Ethan pretende me enviar, e nem tenho interesse. Eu não irei precisar.

Penso no cigarro e lembro que ele está a vários metros de distância, e não tenho a mínima intenção de levantar de onde estou. Este será meu primeiro teste para largar a praga. E pensar que o vício começou por causa dos meus pais; dizem que fumar ajuda a acalmar, mas logo percebi que o acalmar ao qual se referem, é ao próprio desejo de alimentar o vício. Uma roubada.

Thomas e as irmãs loiras se materializam em minha frente e dali não saem até a hora da última competição. Meu amigo já está trancando as pernas, e noto que Shaunan fumou uma. Lesly, para meu azar, está completamente sóbria e em cima de mim novamente.

Se amor é uma coisa grudenta assim, tenho sorte de ficar longe dessa droga.

A noite segue sem maiores problemas. A maior cilada que podemos ter é a polícia baixar por aqui, mas estamos com sorte. Os rachas que se seguem antes do meu são tranquilos, os vencedores de sempre ganhando, poucos competidores novos. Tirando uma briga aqui e outra ali, como é de costume, não há nenhuma bala perdida por aí. Pelo visto, estamos com o saldo positivo. Quando os anunciantes convocam o último grupo, eu me levanto afoito.

— Um beijo para dar sorte, meu amor — Lesly diz com ternura fingida e me dá mais um dos seus beijos melados. Eu aceito de prontidão desta vez, embora seu perfume enjoativo me faça ficar mais nervoso do que estou.

Eu sempre tenho a certeza que vou ganhar, uma vez que conheço meus adversários. Talvez Douglas seja o único obstáculo em meu grupo, mas eu posso contar nos dedos quantas vezes ele venceu de mim. Ainda sim, o nervosismo é inevitável.

— Vai lá, cara, boa sorte — Thomas deseja, tentando dar um tapa em minha costas, mas acaba tropeçando e dá de cara com a parede. Franzo o nariz recebendo sua dor. Depois de me assegurar de que ele ficará bem, vou até o Mitsubishi. Nós dois já ganhamos mais partidas do que posso contar.

Entro no carro e contenho o impulso de me debruçar no banco e puxar um cigarro. Ao invés disso, dou partida no veículo e sigo até a pista onde ocorrerá a corrida. Como praxe, cinco carros competirão por vez o ponto a ponto, em um percurso que contornará o armazém abandonado, pegará o final da rodovia que leva à saída da cidade, e então virará no retorno e chegaremos pelo lado contrário de onde começamos. Para nossa sorte, a pista não está escorregadia. Lesly será minha mascote. Espero ela entrar no carona, e, de relance, vejo Douglas no Mustang ao meu lado. Ele parece distraído com a mulata que é sua mascote, mas tenho quase certeza que sabe quem está ao seu lado. Ele sempre sabe.

Os cinco competidores ligam os motores e aguardam pela largada em linha reta na pista. Barulhos ruidosos e afiados cortam a noite, além de gritos eufóricos da torcida espalhada atrás dos carros. O cheiro de gasolina queimada inunda meu nariz e aspiro-o nostálgico, como se fosse a última vez que faço isso. Dou uma olhada em Douglas e ele também me fita, sombrio. Ele está agindo mais estranho que o normal hoje. Talvez esteja mais empenhado que nunca.

Ouve-se o tiro.

Damos a largada.

O som dos motores rasga o ar, e meu pé afunda no acelerador. As marchas passam rapidamente, e logo deixo dois competidores para trás. O primeiro trecho é curvilíneo, o que garante a vantagem da posição inicial para um de nós. Douglas consegue liderar o primeiro lugar e corto um Volkswagen para assumir o segundo. Três carros estão atrás de mim, e a corrida praticamente cai para os líderes do ranking. Terminamos a curva e Lesly grita cada vez mais alto no banco, ora ou outra põe a cabeça para fora da janela que nem uma louca. Não ligo. Seus gritos de incentivo só fazem minha adrenalina aumentar mais ainda.

O Volkswagen atrás de mim está insistente. Sei de quem é o carro, mas não parece ser o seu dono que está dirigindo. Na pista reta da rodovia, avanço para cima dele, de modo que o jogo contra a calçada, e o embosco em uma árvore. Para minha sorte, ele perde a velocidade para não colidir diretamente com o empecilho, o que nos dá alguns metros de distância. Acelero mais ainda ao notar o quão longe Douglas já está de mim, e logo o velocímetro passa dos 130 km/h. Consigo alcançá-lo no retorno, quando, por pouco, ele perde a entrada e tem que recuar. Entretanto, freio bruscamente para evitar que colidamos; apenas um pode entrar no retorno por vez, e ele ganha vantagem novamente.

Pelo retrovisor, vejo que um Acura se aproxima de mim. Apesar de o veículo ser mais rápido que o meu, o motorista não tem as habilidades necessárias para o ponto a ponto.

O retorno é mais uma daquelas curvas malditas. Se eu continuar em desvantagem, na próxima pista reta eu perderei de vez o primeiro lugar. Resolvo arriscar. Saio da pista e pego a área gramada ao lado, o que rapidamente me faz descer alguns pontos do velocímetro. Piso com mais força no acelerador e sinto os pneus deslizarem na folhagem úmida. Meus obstáculos neste atalho são as árvores, mas tenho experiência com desvios, além de me servir como camuflagem; Douglas não consegue mais saber minha posição através do retrovisor.

Quando saio do atalho, o asfalto come o pneu na última curva que me deixa na liderança. O carro dá um cavalo de pau na pista, e depois de um silvo, pego a linha reta deixando os demais competidores comendo poeira, como diria Douglas.

Alargo o sorriso depois de dar uma última espiada no retrovisor. A vitória é minha, mais uma vez. Lesly se joga sobre mim, tentando me beijar, mas não me importo. Atravesso a linha de chegada em meio a gritos alegres da galera agitada e fogos. Desço do carro de braços erguidos e com o gostinho da vitória. Algumas pessoas vêm me abraçar e me parabenizar pela conquista, e tento achar Thomas em meio a tantas cabeças. O restante dos competidores chega. Volto ao carro e dirijo para atrás do armazém, a fim de pegar o dinheiro do prêmio e cair fora.

Desço do carro e noto um Mustang parar ao meu lado. Esta área é mais escura e deserta, embora três grandões estejam mais a frente cuidando da segurança da grana. Douglas sai do veículo e bate a porta no ato. Algo brilha em sua mão direita e meu coração para. Sinto meu sorriso orgulhoso despencar dos lábios e tudo o que faço é erguer as mãos e tentar acalmá-lo. Isso aconteceria qualquer dia desses. Só não esperava que fosse hoje.

— Abaixe a arma, cara. Foi apenas uma corrida.

Ele solta um riso de escárnio.

Mais uma, você quis dizer. Mais uma que perco pra um verme como você. Um cara que a mãe é uma vagabunda e o pai um caça dotes. Perder pra um abutre desestruturado, um páreo na sociedade... Você não devia andar com a gente, Jason. Você não é bom o suficiente para o nosso grupo.

Tento controlar a respiração, mas é difícil. Se eu pular em cima dele, a próxima coisa que irei sentir será meu pulmão sendo perfurado por uma bala. Preciso manter a calma.

— E então, eu descubro uma informação valiosíssima — ele continua, o tom doentio. — Só mais uma confusão e você vai embora. Apenas uma.

Suas palavras me atingem como um soco no estômago. Minha expressão desmorona e ele sorri, satisfeito por causar tais reações em mim. Quero espancá-lo até a morte, mas antes que consiga, o morto serei eu. Não há ninguém perto de mim. Ninguém é idiota o suficiente para se aproximar de um maníaco armado.

Escuto o som de sirenes se aproximarem, e o sorriso no rosto de Douglas se alarga. As pessoas começam a correr e gritar, rapidamente entram em seus carros e dão o fora dali. Nem eu, nem Douglas, nos mexemos. Engulo em seco.

— Você será preso — eu digo e omito o restante da frase. Você será preso caso me mate.

— Acho que não, playboy.

O som fino e maçante de um tiro rompe o ar. Um zumbido que anuncia a morte. Os policiais estão mais próximos, mas não consigo me mover. O tiro acerta algo, e o alvo cai no chão em um estrondo. Douglas rapidamente guarda a arma no casaco e corre o mais rápido que pode da cena do crime. Escuto a porta do Mustang bater mais uma vez, e, então, ele foge. Olho para trás lentamente e vejo um corpo estirado no chão próximo a mim. Tenho a chance de fugir. Não fui baleado. Dá tempo.

Mas eu não posso.

Ajoelho-me ao lado do cara loiro gemendo de dor. Seu rosto comprido e bronzeado de outrora está pálido como giz. Quero tocá-lo e dizer que tudo vai ficar bem. A vida não pode ser mais miserável do que é conosco. Merecemos um final feliz só por aguentar tanta merda.

Seguro sua mão gelada e peço, confiante:

— Não se mexa, amigo.

Thomas fecha os olhos e depois de outro gemido, desmaia.


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Notas finais do capítulo

Seu comentário é um poderoso combustível para que eu continue escrevendo minhas histórias. Seria realmente legal se você compartilhasse o que achou do conto comigo ou se teve alguma dúvida. Irei postar a segunda parte dele dependendo do retorno da primeira. Para obter mais informações, acesse o tumblr oficial de Enigma: http://oenigmadosschneider.tumblr.com/.
Beijos, e até mais!



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