Deusa Estelar escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 7
Intermezzo


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo, na realidade, compõe-se dos trechos "expurgados" do anterior a fim de cortar os excessos e reduzir o tamanho do mesmo (que, ainda assim, ficou "quilométrico" xD); e, assim como o prólogo, pode ler lido independentemente da sequência em que os demais se acham ordenados.



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"Porquanto, embora vivendo como seres humanos, não lutamos segundo os padrões deste mundo. Pois as armas de nossa guerra não são terrenas, mas poderosas em Deus para destruir fortalezas!"

2 Coríntios, 10: 3-4

"Não há limite para a estranheza. A mais provável forma de um E.T. será algo que nunca imaginamos."

Paul Davies, físico da antiga N.A.S.A.

 

(Gabinete da Comandante-em-Chefe da Frota Estelar, San Francisco, Terra, União Solar, 15 centiciclos atrás.)

O Tenente Ronaldo "Ronnie" Mourão era um imp, isto é, um sedop heteromorfo semivegetal nativo do planeta Imphaster, o primeiro a contar da estrela Zeta Tucanae, uma anã amarela de classe espectral F9,5 da sequência principal, a meros 8,6 parsecs de Sol. (Imphaster era um planeta semiárido da classe N2, uma "Superterra" extremamente densa com uma gravitação de 2,19 G e um clima tórrido semelhante ao de Vulcano.) Como todos os da sua espécie, "Ronnie" possuía simetria radial e media 2,20m de altura, assemelhando-se a um cruzamento entre um baobá em miniatura e um abajur, com o corpo bojudo para acumular grande volume de água revestido por uma couraça de "quitina vegetal" (mais dura que pau-ferro) coberta por um pigmento ceroso azul-esverdeado escuro, fotossintético, o que garantia seu autotrofismo (imps locomoviam-se livremente, mas ao mesmo tempo sintetizavam seu próprio alimento como as plantas). A extremidade superior da "árvore" ostentava uma ampla cúpula cônica em formato de guarda-sol, coriácea, de cor verde-claro, com os cinco olhos grandes, redondos e pretos em forma de flores tubulares cônicas (capazes de se abrir e fechar de modo similar ao obturador de uma câmera fotográfica antiga) que captavam desde o infravermelho até o ultravioleta, luz polarizada e a luz normal, além de vinte fendas estreitas que escondiam os outros órgãos dos sentidos (radiestésicos, eletromagnéticos e muônicos) distribuídos por todo o seu corpo, ao passo que na extremidade inferior, vinte túrgidos tentáculos vermelho-púrpuras extensíveis pentarramificados, dispostos em torno do tronco de forma radial, continham os pseudo-pés que, também, tinham função de raízes, retirando do solo os nutrientes necessários para sua sobrevivência.

Claro que "Ronaldo Mourão" não era o seu verdadeiro nome, pois este, na maior aproximação em equivalentes sônicos, soaria algo como "Fhóyhñhñm". Imps tinham uma linguagem articulada, chamada de tanno, mas a mesma consistia em sequências rápidas e variadas de vibrações e pulsos infrassônicos, subacústicos (radicalmente diferente da linguagem "musical" de assobios polifônicos da raça semivegetal alada e astericéfala, oriunda dos confins da Galáxia, que do Período Cambriano ao Pleistoceno reinara inconteste numa Antártida completamente livre de gelo, conforme a descrição primorosa do escritor/projetor extrafísico H. P. Lovecraft em sua alucinante obra-prima At the Mountains of Madness, 38 a.V.). Só o tradutor universal miniaturizado no distintivo-micrompo quântico da F.E.U. preso ao torso bojudo (como convinha a um membro heteromorfo da Frota Estelar, que não podia usar o ciberuniforme dos humanoides), equipado com um algoritmo de I.A. programado para captar e traduzir padrões de ondas cerebrais em línguas faladas e vice-versa permitia a "Ronnie" comunicar-se verbalmente com outrincons de outras raças.

Os imps reproduziam-se assexuadamente por esporulação e brotamento. E ainda dominavam a telecinese - para compensar a aparente desvantagem biológica de não disporem de membros superiores com que manusear e transformar o meio natural - , além da "clarividência viajora" e visão remota. Apesar de constituírem uma civilização não-tecnológica - nível B5 na Escala Palmer-Yoshida - até os primeiros contatos com a Humanidade Solar - em 165 d.V., por intermédio sobretudo do Capitão Darrel Sloane e sua tripulação espacial - , os imps nutriam um grande apreço e respeito pela astronomia. Tão logo tomaram ciência dos objetivos da Federação, legiões de imps ofereceram-se como auxiliares em troca da oportunidade de subir a bordo de uma nave estelar. Uma oferta irrecusável, visto serem os imps além de telecinetas, clarividentes viajores e visualizadores remotos que emitiam "tentáculos psi" ou pseudópodes mentálicos (de energia psiônica) a fim de enxergar a distâncias físicas consideráveis. Agora podiam ser encontrados até na Terra, onde eram notórios por suas brincadeiras telecinéticas - decorrentes de seu instinto lúdico, seu humor peculiar - , fazendo levitar pessoas e coisas com a força da mente em longas distâncias.

O Tenente Mourão, porém, não estava para brincadeiras - psicocinéticas ou outras. Pertencia ao oficialato do Corpo Psiônico da Frota Estelar, e (diversamente de muitos de seus irmãos de raça, que eram os responsáveis pelos laboratórios de astrometria das naves estelares) trabalhava para o Serviço de Inteligência e de Segurança da Frota, em Lisboa, na Região Europeia do Território Mundial Atlântico do Planeta Terra.

Ocorre, no entanto, que, por serem "vegetabloides" (em Imphaster não houve a divisão dos organismos multicelulares superiores nos "tradicionais" reinos Plantae ou Metaphyta e Animalia ou Metazoa), os imps possuíam um ritmo circadiano particular. Durante o dia permaneciam em absoluta imobilidade (inclusive com as fendas oculares fechadas), fazendo fotossíntese à luz dos raios ultravioletas (naturais ou artificiais) com suas raízes enterradas no solo, à maneira das plantas clorofiladas, movendo-se e circulando e interagindo com os seres humanos e outros "animais heterotróficos" apenas durante a noite. Por conseguinte, não era de surpreender que o Tenente Mourão ora se encontrasse em uma região do planeta Terra onde era noite: na Zona Residencial-Agrícola de Kazan da Região Concentrada Federada da Quiévia e Caucásia (tudo aquilo que outrora constituíra a Rússia Europeia, Ucrânia e Geórgia) do Território Setentrional.

Naquele momento, sua imagem holográfica em tamanho real estava posicionada no centro de uma luminosa circunferência formada por uma linha poligonal fechada de vinte lados, branco-azulada, que delimitava o perímetro de dez metros dos receptores holográficos instalados no piso de plasteel do escritório da Almirante Yasmine Swann, Comandante em Chefe da Frota Estelar, no Complexo do QG da Frota, localizado em San Francisco, na Região Noramericana do Território Setentrional. Simultaneamente, a holoimagem do/a Tenente Ssahila Rrammzluggl'il, o/a "fiel escudeiro/a" reptiloide e hermafrodita da Almirante Swann, também em tamanho real e 3-D, aparecia no centro de uma circunferência poligonal luminosa de dez lados e cinco metros de perímetro no mesmo recinto, embora o/a kumaschita se encontrasse fisicamente a 380.000 km de Terra, no Complexo Orbital Aleph Primo, uma das Colônias Espaciais localizadas no ponto de Lagrange L5, onde estavam igualmente instalados os hangares, oficinas, auditórios, triditórios, centros de treinamento, depósitos, alojamentos e outras instalações da Academia da Frota. (As holocomunicações instantâneas e simultâneas dentro do âmbito restritamente planetário ainda empregavam transmissão por feixes de múons e neutrinos - tendo substituído as toscas tecnologias de fibras ópticas, satélites e ondas de rádio e TV - , mas quando se tratava de expandir para o sistema Terra-Luna e as colônias lagrangeanas - para não falar em todo o Sistema Solar e toda a Galáxia - , o que exigia velocidades acima da luz, era imprescindível usar a rede subespacial ou as hiperondas.)

— Tudo o que é conversado nesta reunião é absolutamente confidencial - disse Ssahila na sua voz gutural e rouca, quase "borbulhante". A área da nuca, de pele nua e úmida, por onde respirava, tinha uma camada de cutícula fina, resistente e flexível, com a cor semelhante a uma pérola, que brilhava e pulsava suavemente. Seus olhos cor de cobre com pupilas subelípticas usavam lentes de contato de realidade aumentada capazes de controlar ambientes computadorizados (em 3-D) em situação remota. Trazia em torno do pescoço enrugado e escamoso uma corrente finíssima da qual pendia um  minúsculo livro artesanal que parecia ser feito de metal electrum: o Talma'an, com os ensinamentos do/a grande mestre/a da filosofia kumaschita e orientador/a evolutivo/a de sua raça, Shismar, também conhecido/a como Shizuma'at, Shizumaat ou Schizumat.

Swann estava sentada atrás de uma mesa em formato de bumerangue, feita de plasteel cinza-grafite metálico escuro, com painel de controle virtual, sobre a qual havia uma pilha de memocristais 5-D "eternos" totalizando várias centenas de exabytes de dados, um computron de mão (pouco menor que um maço de cigarros ou um pager do século I d.V.), fonoativado, dotado de avançado sistema holográfico de imagens em 3-D e conexões em rede via subespaço, e um projetor de campo esférico de trivídeo (que não passava de simples chapa metálica prateada redonda de 2mm de espessura, sobre a qual formar-se-ia a imagem holográfica em 3-D de tamanho reduzido), que sintonizara com suas lentes de contato computadorizadas de realidade aumentada.

Humana, kumaschita e imp revelavam a espantosa variedade de formas de vida e inteligência que o Criador pôs no Universo - porque o espírito é superior à forma.

— Então, Sinjoro/ino Mourão, o que tem para nós? - indagou a Almirante Swann, dirigindo-se ao holograma do imp. (Por serem os imps tão assexuados quanto Adam HaRishon, não fazia diferença para Mourão que Swann se lhe referisse como "ele" ou "ela" ou "elea".)

Acabara de receber relatórios subespaciais preocupantes dos capitães da Carpenter, da Ironside, da Cosmonaut Valeri Kubasov e da nave-gêmea da Majorum, a Suvartha, que davam conta de que Vassilissa, o único planeta classe M habitado no sistema Kepler-186, localizado a 151 parsecs de Sol, sofria uma onda de ataques de antivivos, "Antigos", que das profundezas do subespaço onde se entocavam emergiram na periferia do sistema estelar. Perguntou-se o que mais faltava acontecer.

Em resposta, o imp abriu uma fenda verticalmente à maneira de uma persiana, entre dois dos cinco olhos dispostos num círculo de 360º, no grande domo coriáceo azul-púrpura na parte superior do seu corpo bojudo verde-azulado-escuro, de frente para a Almirante da Frota. No fundo da abertura havia uma membrana semitranslúcida que logo começou a vibrar. Mas não criava quaisquer sons audíveis ao ouvido humano - o tradutor de voz falava por ele.

— Tenho informações novas. - Sua voz soou num esperanto fluente, simples e sem sotaque. Podia-se ver a membrana vocal que vibrava e latejava, "falando" em infrassom - abaixo de 20 Hz - que o tradutor universal do micrompo quântico convertia instantaneamente para o espectro da fala normal. - Boas. Más. Boas e más. Mais más do que boas. Mais boas do que más. Nem boas nem más.

O/a Tenente Ssahila, ou melhor, sua imagem holográfica, emitiu um coaxar abafado que Swann pressupôs ser o equivalente reptílico de uma risada. Com efeito, não era nada fácil, para criaturas racionais dotadas de simetria bilateral, como os humanos, caitianos, andorianos ou os/as kumaschitas, trabalhar ou sequer dialogar com outrincons dotados de simetria radial - com seres sapientes cujo psiquismo não se baseava simplesmente no jogo dos contrários binários "sim" ou "não", "verdadeiro" ou "falso", mas ia em várias direções simultaneamente, exprimindo proposições tais como: "verdadeiras" - "falsas" - "verdadeiras ou falsas" - verdadeiras e falsas" - "em vez de verdadeiras e falsas" - nem verdadeiras nem falsas", tudo isso ao mesmo tempo! (E, nesse caso, a recíproca era válida para o Tenente Mourão com seu cérebro de cinco lobos e órgãos dos sentidos diversamente distribuídos e mais numerosos e variados que os de seres tão limitados, tão paupérrimos de complexidade como Ssahila e Swann, que, no entanto, ocupavam posições hierarquicamente superiores na Frota Estelar da Federação - esforçar-se por imitar ou simular tais padrões de raciocínio "bitolados".)

Swann suspirou. - Por favor, Sinjoro/ino Mourão, seja direto e específico em suas informações. O que há de tão importante para ser dito agora que não possa esperar?

Pensava nos ataques dos avatares antivivos mecanoides dos Primordiais no sistema Kepler-186, na Cosmoarca transdimensional estacionada no sistema Kepler-78, portadora de terríveis segredos transcendentais, e se impacientava.

Mais uma vez ela viu a membrana da abertura vocal virada para si (os imps possuíam quatro "bocas" ou fendas vocais em torno da parte de cima do tronco) vibrar rapidamente, emitindo ondas sonoras extremamente graves, com frequência abaixo dos 20 Hz, que não podiam ser captadas por ouvidos humanos, mas que o tradutor universal transladava para palavras inteligíveis no esperanto padrão solariano em tempo real.

— Você é quem manda, Almirante Swann - disse o sedop de Imphaster, meio planta, meio animal; enquanto, simultaneamente, comunicava-se infrassonicamente em longas distâncias com outros imps, por intermédio de duas das outras três fendas vocais, recebia informação relatada da Central de Segurança da Frota em Lisboa pelo comunicador de neutrinos, usava sua "visão de múons" para escanear o céu estrelado e a estrutura interna dos gigantescos cargueiros espaciais e aeromóveis que planavam no escudo antigravitacional acima da torre arcológica da Z.R.A., fazia voar em loopings uma dezena de servobôs agrários enredados em suas teias de energia psicocinética por pura diversão, e monitorava as trajetórias de algumas fortalezas orbitais da Força de Defesa Solar no Cinturão Principal de Asteroides, através de visualização remota, emitindo um "tentáculo" psíquico a partir do seu energossoma ou corpo etérico, graças ao qual obtinha uma visão "tubular" (tal como convinha a um ser de simetria radial).

— Na data estelar 92102.223 o serviço de escuta parapsíquica da Base Estelar Um detectou a presença de dois agentes psis - um telepata e um precogo - alienígenas infiltrados no Centro do Almirantado, mas não foi possível localizá-los em decorrência de seus padrões mentais codificados. O Quartel Central da Divisão de Segurança destacou dois antimutantes neumanos - um antitelepata e um antiprecogo - para neutralizar as habilidades psis dos agentes alienígenas, o que foi feito graças ao campo antipsiônico produzido por seus cérebros mutados. Vinte centiciclos após a chegada dos inerciais, o Setor de Operações Estratégicas interceptou uma mensagem curta codificada - dez microciclos de duração e um conjunto de signos indecifráveis - transmitida na faixa de ondas sness do subespaço. Foi possível triangular o sinal e descobriu-se que ele se originara do gabinete externo da Vice-Almirante Hassoun, no setor de Informações do Centro. Uma busca minuciosa da segurança revelou um nanotransmissor subespacial tárdion/táquion com alcance de 200 parsecs escondido em uma das antenas postiças no crânio do assistente kaferiano da Vice-Almirante Hassoun, o Comandante Tizsrig. Tizsrig, que além de ser o mutante precogo infiltrado no Centro do Almirantado, é também um transmorfo ghariano pertencente ao gênero sexual biologicamente neutro da raça, que alterou sua forma física para assumir a aparência de um insectoide kaferiano. O outro agente infiltrado, o telepata, apesar de neutralizado - pelo antitelepata - ainda não foi localizado.

No mesmo instante as lentes de contato digitais de Swann projetaram imagens das informações relatadas diretamente na pupila da almirante, e - literalmente - num piscar de olhos, nanoantenas de neutrinos embutidas a nível molecular enviaram os dados a serem processados para o computron de mão, com suas conexões subespaciais a uma rede encriptada da Inteligência da Frota (e desconectada da rede I.A. planetária).

Os gharianos eram uma raça transmórfica alienígena imensamente antiga (a ponto de ter esquecido qual era a sua aparência física original!) que habitava um disco de Alderson construído pelos Astroengenheiros para girar ao redor de um sol alaranjado de tipo espectral K2. Além de seus três gêneros sexuais, sendo dois "fixos" (masculino e feminino) e um "móvel" (neutro, mas capaz de assumir as características de um ou do outro sexo biológico), possuíam os gharianos a interessante capacidade biológica de alterar livremente sua estrutura corporal e copiar o aspecto exterior de qualquer ser vivo da Galáxia, desde que dentro de um certo limite de tamanho e massa corpórea. Por causa dessa habilidade inata, eventualmente complementada com cirurgia plástica instantânea para certos detalhes físicos impossíveis de serem imitados (pelos corporais, antenas), os sedops de Ghar Land tornaram-se ideais como espiões e infiltradores a serviço das potências galácticas - especialmente se fossem mutantes e antimutantes dotados de habilidades parapsíquicas, a próxima etapa da evolução da espécie - de todas as espécies sapientes na Galáxia.

— Isso é muito grave! - Swann exclamou em voz baixa. Nadjia Hassoun, uma terrana atlântica de tez cor de oliva e olhos negros nascida em Paris, Região Europeia, era a oficial de ligação da Frota Estelar ao Gabinete do Presidente da F.E.U. - e era sua amiga. Se inimigos da Federação conseguiram plantar um psi-espião, um precogo em um dos gabinetes de uma vice-almirante de Frota... para prever suas ações... Nem é bom pensar!

— Mas não é o fim da Galáxia - replicou Ssahila calmamente. No século VI d.V. tornara-se rotineiro, na F.E.U. e no restante da nações galácticas da Via Láctea, o emprego dos chamados "agentes cósmicos" paranormais - mutantes e antimutantes com talentos parapsíquicos e/ou paramecânicos - em espionagem e contraespionagem (conquanto fosse algo malvisto e desaprovado por outrincons extrafísicos que habitavam planos mais sutis de existência/consciência). - Afinal, não se passa um quadron sem que, em algum setor da Galáxia, um ou outro psi-espião quinta-coluna seja desmascarado, ou tenha seu talento anulado pela simples presença do antipsi oposto. Num certo sentido bastante real, mutantes e antimutantes, psis e antipsis participam da dinâmica do equilíbrio ecológico-cósmico entre predador e presa, do grande ciclo do equilíbrio da Vida.

Swann comprimiu os lábios cheios em uma linha rígida, desaprovando seu ajudante de ordens sedop (para quem, aliás, como hermafrodita autofecundante, os humanos e todas as espécies viventes com reprodução bissexuada ou biparental eram aleijões biológicos e espirituais). - Sinjoro/ino Ssahila, por mais que eu admire o estoicismo da raça kumaschita, o mesmo é totalmente inoportuno nessa situação de quebra de segurança nível A. E ainda por cima, em pleno QG da Frota Estelar!

Não era segredo de estado que a maior parte das Bases Estelares da Frota Estelar e de outras civilizações galácticas de igual poderio estavam equipadas com sofisticados sistemas de "alarmes de energia" vibratórios que podiam detectar a chegada de um campo energético sutil de alguma entidade incorpórea ou consciex, ou detectar e rastrear a consciência fora do corpo de observadores remotos. Seria preciso ser um verdadeiro "hacker mental" para driblar tais sistemas de alarme parapsíquicos.

— Por outro lado, faz sentido que o precogo/transmorfo "pós-ghariano" estivesse equipado com um nanotransmissor subespacial puramente tecnológico em vez de um nanopsicoirradiador, o que o transformaria em um telepata artificial - ponderou Ssahila, indiferente à áspera réplica de sua oficial superior. - Uma transmissão tecnotelepática, embora instantânea, não supera a distância de meio parsec, e teria sido interceptada pela equipe de telepatas de nossa contraespionagem no exato instante em que seus impulsos fossem psicoirradiados.

— Felizmente o dito cujo precogo/transmorfo de Ghar Land se esqueceu de que nossa contraespionagem também conta com um serviço de escuta de rádio subespacial que é dos melhores no Quadrante Alfa - disse Swann, e um laivo de satisfação perpassou pelo canto da boca da Almirante da Frota. Mas então declarou com firmeza: - Quero aquele espião telepata, seja qual for a sua raça ou planeta de origem, capturado e interrogado por nossos psis. Ele não pode deixar este planeta!

— Quer que eu esteja presente quando forem interrogá-lo? - perguntou Mourão. - Minhas energias telecinéticas psi-kappa bastam para fazer voar pelos ares um elefante ou um mamute marciano clonado. Capturado o telepata, eu poderia/posso/poderei fazê-lo empreender um sobrevoo vertiginoso cheio de loopings, spins e rasantes sobre a Ponte Golden Gate e a Baía de San Francisco durante quinze centiciclos. Deixá-lo cair em queda livre de 800 metros de altura e ampará-lo telecineticamente microciclos antes de atingir a água. Então ele/ela/elea estaria/estará mais suscetível a cooperar com o interrogatório de vocês.

— Fora de cogitação! - Swann rebateu severamente. - Tortura física e psicológica é terminantemente proibido pelas diretrizes da Frota Estelar. Se não tiver mais nada para falar...

— Neste exato momento, o precogo/transmorfo de Ghar Land está sendo interrogado pelos nossos melhores telepatas e hipnossugestores - prosseguiu Mourão com aparente entusiasmo. (Também pudera, estava se divertindo por fazer uma fileira de robôs agrícolas voar alto e rasante e realizar loopings no ar com suas poderosas habilidades telecinéticas, para espanto dos moradores da Z.R.A.) - Nossos psiônicos estão tentando romper o hipnobloco aplicado no cérebro do precog/transmorfo ghariano por seus superiores desconhecidos. Quando isso acontecer - o que não se dará no próximo décimo de microciclo - descobriremos quem o enviou a Terra, juntamente com o telepata sedop ora desaparecido, para bisbilhotar o Alto Almirantado da Frota Estelar. Havemos de expô-los e vencê-los! Pela Federação!

(Para Mourão e outros clarividentes viajores da raça dos imps, um efeito colateral da projeção parcial das parapercepções visuais da consciência, à distância do corpo físico, era uma capacidade limitada de ver ou perceber pelas vias parapsíquicas um décimo de microciclo no futuro.)

Swann não pôde deixar de sorrir mentalmente. "Ronnie" dava a impressão de encarar como uma alegre competição de captura à bandeira ou algo assim o jogo de psi-espiões entre a F.E.U. e os demais impérios/estados multiestelares. Por que não? Em seu planeta natal, os "duendes do Capitão Sloane", como foram inicialmente batizados os nativos de Imphaster, rivalizavam entre si, telecineticamente deslocando monólitos de rocha e, brincando, erguiam monumentos megalíticos, por vezes de grandes dimensões e complexidade, em uma única noite, da mesma maneira como crianças humanas faziam castelos de areia numa praia - e que por vezes eles demoliam em seguida, também usando de telecinese, tal qual uma criança desmanchava um monte de areia que acabara de formar. Ou de modo semelhante aos antigos monges budistas tibetanos, que criavam caleidoscópicas mandalas feitas de areia multicolorida com seus chak-pur, para depois, arbitrariamente, destruí-las, assim enfatizando a inconstância da vida intrafísica.

— E quanto ao telepata não identificado, Sinjoro/ino Mourão? - inquiriu Swann, pois temia, não sem alguma razão, que no curso de sua ação no Centro do Almirantado, o espião telepata tivesse auscultado informações relativas à presença da nau capitânia da Frota Estelar e da gigantesca nave-arca interuniversal feita de luz sólida no sistema Kepler-78. (Por medida de segurança, todos os membros dos altos escalões da F.E.U. e da Frota Estelar deviam usar uma barreira psíquica protetora que combinava tecnologia e estudos psíquicos, com 90% de eficácia, mas passível de ser penetrada por um telepata bastante poderoso; já o processo radical de estabilização mental era 100% eficaz, dando imunidade total e permanente contra telepatia ou hipnossugestão, porém somente um em cada dez mil humanos "naturais", da espécie Homo sapiens, possuía condições físicas e psíquicas para resistir à arriscada intervenção cirúrgica por meio da qual certos nervos cerebrais eram paralisados através de um choque energético, ao contrário dos bem mais resistentes nietzschianos e "genricos", super-humanos geneticamente enriquecidos, do ramo racial antelluriano.)

— Pois não. O campo de aura telepática desse ser foi aferido e mensurado pelo Tenente-Comandante Jedikiah Marsh, o sapiencior albino, que no momento é nosso melhor rastreador telepático - esclareceu o sedop psi-kappa, em contato simultâneo (via canal de neutrinos) com os cabeças da Divisão de Segurança parapsíquica. - Ele disse que registrou, no pico, 82,6 rhees - ou 150 kirbies, se você fizer a conversão - de campo psiônico, antes que o mesmo fosse anulado pelo campo antitelepático do neumano Michael "Mick" Mendoza, um de nossos inerciais mais bem treinados. Mendoza é um antimutante psiônico, filho de pais telepatas da espécie humana mutante Homo superioris.

Mais uma vez, as imagens e dados digitais relatados foram transmitidos pelas lentes de contato de realidade virtual diretamente nos olhos de Swann.

— Há quem prefira a denominação "Homo novus", já que Homo superioris soa um tanto ou quanto racista - Ssahila observou, em tom neutro. A almirante não lhe prestou atenção; tinha o pensamento voltado para o relato preocupante do imp.

Yasmine Swann tinha consciência do que aquilo significava. Afinal, ela própria possuía uma mistura de telepatia instintiva - ou "intuição telepática" sobre o estado da mente de outras pessoas, se elas mentiam ou se eram de confiança - e um começo de telepatia mental - pois só conseguia receber mensagens, quando as condições fossem excepcionalmente favoráveis - , muito fraco para que ela sequer fosse considerada uma semimutante. Só depois de um treinamento intensivo na Frota Estelar - com o apoio de telepatas experimentados - Swann pudera colocar-se em condições de usar a habilidade. Por isso, a simples ideia de ter um poderoso telepata alienígena e potencialmente hostil circulando incógnito no Centro do Almirantado a deixava tão alarmada, a despeito de o campo antipsiônico de Mendoza anular localmente os efeitos psi-gamma do mesmo. Com uma aura telepática de tamanha magnitude, não seria nada surpreendente que o esper alienígena pudesse com muita facilidade atravessar escudos mentais psicotrônicos e se comunicar telepaticamente, instantaneamente, através de distâncias interestelares de até 200 parsecs. Significa que antes de ser psionicamente anulado pelo campo inibidor do antitelepata, o psi-espião à solta com toda probabilidade acessou informações sobre ASENA e a missão da Majorum no sistema Kepler-78, e possivelmente as repassou para os seus superiores ignotos, fora do Sistema Solar.

— Lógico que nossa rede de telepatas da contraespionagem o teria apanhado se tentasse irradiar mensagens telepáticas para fora do planeta Terra - disse o imp, deduzindo os pensamentos que transitavam na cabeça de Swann. (Ao que parecia, cansara-se de brincar com os servobôs agrários, fazendo-os levitar e voar; por isso, dirigiu-os telecineticamente de volta para o chão e os fez pousar na área agrícola, em meio às grandes estufas tubulares concêntricas que circundavam a torre arcológica composta de módulos verticais inteligentes no centro geométrico da Z.R.A. coberta por uma abóbada energética e gerenciada por um Controlador do Clima ultrassofisticado.)

— E tem toda razão, Sinjoro/ino Mourão, obrigada - disse Swann laconicamente. - Dispensado.

Quando o holograma do sedop heteromorfo sumiu, Swann dirigiu-se a Ssahila: - Para quando vai ser o nascimento do bebê, Sinjoro/ino Ssahila?

Ao ouvir a pergunta, a expressão fisionômica do holograma de Ssahila mudou e "elea" pareceu se derreter de felicidade. Seus lábios grossos de sapo foram se abrindo num sorriso amplo que deixava ver as largas placas ósseas que fazia as vezes de dentes em seus maxilares. - Haisshi'iqae, meu bebê, o ducentésimo sexagésimo sexto na linhagem dos/as Ssahila, vai nascer, isto é, sair da câmara de gestação daqui a exatos cem centiciclos - declarou orgulhosamente o/a kumaschita, em um coaxar suave entremeado por um leve som borbulhante. - Na minha estirpe familiar não há senão cinco nomes que se alternam, num ciclo contínuo de gerações: Ytt'kaaz, Tukkut'zzog, Ssasseka'kig, Rrammzluggl'il e Haisshi'iqae. Eu sou Rrammzluggl'il. Antes de mim foi Ssasseka'kig, meu progenitor. Antes de Ssasseka'kig foi Tukkut'zzog, progenitor "delea". Antes de Tukkut'zzog foi Ytt'kaaz, e antes "delea", Haisshi'iqae. Portanto, o nome do meu rebento será Haisshi'iqae. Quando chegar a vez de Haisshi'iqae ter o seu próprio rebento, "elea" dar-lhe-á o nome de Ytt'kaaz. E o ciclo recomeçará, como antes.

Razões para se orgulhar não lhe faltavam. Para um/a kumaschita, macho e fêmea ao mesmo tempo, dar origem a uma prole não era uma questão de opção, mas uma "imposição" da biologia; todos os seres de sua raça, em algum momento de sua vida, espontaneamente produziam óvulos fertilizados, embriões, que no momento próprio eram transferidos para serem gestados em úteros artificiais controlados por robôs. (Nos dias que corriam, só poucos/as fundamentalistas religiosos/as dracs insistiam em gerar o/a filho/a no próprio ventre até a hora do parto, evitando "esquemas mecanicistas" do tipo incubadora cibernética.) Ao chegar o tempo de o/a jovem kumaschita ser aceito/a no Santo Kalam - o seu bar/bat mitzvah, para usar um equivalente humano - , seu/sua progenitor/a devia fazê-lo/a comparecer perante o Conselho Sagrado, no mundo-matriz, e então recitar cantando toda a sua linha de ascendência familiar e os feitos de cada membro desde a fundação da mesma. Kumaschitas eram suas linhagens, suas vorrl'gk, em corpo, mente e espírito; e cada nova vida intrafísica gerada constituía um precioso elo de ligação genética e espiritual entre ancestrais e descendentes encarnados em uma contínua e ininterrupta corrente de vida que se estendia por milênios, em uma roda cíclica de transmigração de consciências que girava eternamente, sem começo nem fim. Daí o cuidado extremoso que um/a "pai/mãe" kumaschita dedicava a sua prole, do embrião à criança. Porém, mais importantes que os cinco ou sete "nomes geracionais" que se repetiam a cada cinco ou sete gerações em uma linhagem familiar, eram as obras e os feitos realizados por cada kumaschita portador deste ou daquele nome ao longo da seriéxis ou período de vida intrafísica, dignos de serem celebrados.

— Meus parabéns por isso, Sinjoro/ino Ssahila - disse Swann, que era mãe de dois meninos e uma menina (graças ao aumento da expectativa de vida humana e o advento dos bancos de embriões para adoção e dos casamentos temporários, não era incomum as pessoas terem filhos depois dos 90 anos), com um sorriso sincero e educado em seu rosto cor de chocolate claro. - Não deixe de me enviar hologramas 3-D do bebê, antes e depois de sair do útero artificial robotizado.

— Mas claro, almirante.

— E, por favor, esteja de volta o mais brevemente possível. Inteligências virtuais e assistentes holográficos podem ser extremamente eficientes como ajudantes de ordens, mas cá entre nós, sinto falta dos seus pensenes positivos, Sinjoro/ino Ssahila.

— Sim, almirante. A senhora muito me honra.

Dispensada, tenente.

Ato contínuo, o hololink foi interrompido e a imagem tridimensional do reptiloide hermafrodita desapareceu. Yasmine Swann, Almirante de Frota, C-em-C da Frota Estelar da F.E.U. na Via Láctea, estava aparentemente sozinha em seu gabinete no complexo administrativo do Comando da Frota, localizado na cosmopolita e trepidante San Francisco do século VI depois do Voo - ou século XXV A.D.T.T. no antigo calendário cristão. Levantou-se da mesa e foi até a ampla janela panorâmica feita de alumínio transparente (mais resistente que safira) com uma vista deslumbrante para as águas azuis-turquesa da Baía de San Francisco - onde golfinhos e baleias-jubartes, reconhecidos oficialmente como outrincons e cidadãos da União Solar e da F.E.U., nadavam felizes e despreocupados - , tendo a leste a Ponte Golden Gate, recondicionada e "modernizada" no século III d.V. com suspensores magnéticos para maglevs, e as construções geometricamente perfeitas do campus da Academia da Frota, do outro lado da baía, no extremo sul, sobrevoadas por aeromóveis antigravitacionais. Uma cidade ultratecnológica, reconstruída de translúcido glassteel ou "vidro metálico" em que o design ultramoderno das altas torres simétricas se harmonizava com os encantos das construções de interesse histórico. Não havia o menor sinal das vergonhosas mazelas do passado de barbárie mecanizada e industrialismo predatório, como a poluição ambiental, a desigualdade socioeconômica e a má distribuição de renda, juntamente com os seus corolários: miserabilidade, pobreza e criminalidade - e com elas os odiosos fantasmas da guerra e da fome, banidos para todo o sempre. (Já iam longe os tempos tenebrosos da velha ordem econômica capitalista, quando a economia ainda se baseava no dinheiro. Na Nova Era Espacial as pessoas trabalhavam para melhorar a si mesmas e ao restante da Humanidade.)

Ela olhou para o céu azul da janela, como que visualizando com os olhos da imaginação o  impressionante Cinturão Orbital artificial que há mais de dois séculos circundava o equador de Terra, a uma altura de 36 mil quilômetros, ligado à superfície do planeta por quatro torres de elevadores espaciais e habitado por cem milhões de almas vivas. Lá onde se reuniam pessoalmente, em carne e osso e/ou metal e plástico (e não virtualmente, ou em holograma) o Presidente e demais membros do Conselho da Federação e do Fórum Estelar. Swann comprimiu de leve os lábios. Conseguia imaginar o rebuliço provocado pela revelação oficial da existência - no "quintal cósmico" da F.E.U. - de ASENA, uma I.A.A. que controlava uma arca-nave transdimensional mais poderosa do que a Frota Estelar e a Armada Klingon juntas; e estremecia só de pensar que, em algum lugar no espaço interestelar, alienígenas desconhecidos e até inamistosos já poderiam estar de posse dessa informação, antes que ela fosse comunicada ao Plenário da Federação, por causa de uma brecha na segurança parapsíquica. Estaria a rede de contrainteligência antipsi do Estado-Maior da Frota - a melhor da Galáxia - comprometida por agentes psis e antipsis inimigos infiltrados em suas próprias fileiras?

Suspirou, monologando: - Talvez eu devesse encomendar algumas centenas de dúzias de capacetes klingons com tela mental protetora... do tipo que serve para mesclar as ondas emitidas pelo córtex cerebral, dando-lhes forma aleatória, tornando impossível ler os pensamentos da gente... e distribuí-los entre os funcionários de todos os escalões do Centro do Almirantado... e depois de tudo ir nadar com as baleias-jubartes na Baía.

Repentinamente, porém, Swann sentiu que não estava sozinha. Sua percepção extrassensorial intuitiva lhe sinalizava que alguém se encontrava atrás dela, observando suas mãos entrelaçadas nas costas.

— Por que não seguir seus próprios conselhos? - ressoou nos fundos da sala uma voz roufenha e grave, mas em um tom bem-humorado. - Por que carregar nos ombros todo o peso da Galáxia, criança da Terra?

Swann repuxou os lábios num sorriso fechado, mas não se virou imediatamente. Disse: - É, respondendo à sua pergunta retórica, talvez eu faça tudo aquilo que citei... Quando a atual crise galáctica for superada. De qualquer maneira, fico contente que esteja aqui, Rav.

Virou-se calmamente para encarar seu interlocutor, embora já soubesse de quem se tratava. Aliás, desde o momento em que o campo bioplasmático, bioenergético do mesmo - que se estendia a quase 5km! - entrara no raio de detecção dos telepatas e localizadores de plantão no Comando da Frota Estelar; e, de mais a mais, também conhecia na perfeição aquela voz.

No canto leste da sala do escritório, Aung Kan Ki Miao, Guardião do Caminho, estava sentado no chão em posição de lótus. Sua estatura - em pé - não ultrapassava 1,20m e sua pele, nas partes onde estava exposta, era negra, mais negra do que o azeviche, coberta de pintas reluzentes que pareciam miríades de minúsculos diamantes. A cabeçorra redonda e completamente calva tinha orelhas alongadas coladas ao crânio, nariz chato com três narinas em forma de fendas verticais e um triângulo de três olhos fluorescentes, heterocromáticos - amarelo-limão, azul-violeta e vermelho-rubi - que giravam com rapidez e agilidade dentro das órbitas, indo em todas as direções, e facultavam-lhe uma visão do Universo que abrangia quase todas as faixas do espectro eletromagnético, o que resultava em três imagens superpostas: uma na faixa da luz visível até o ultravioleta, outra captando os raios X e gama, e a terceira o infravermelho e as micro-ondas. Este sedop inumano vestia-se com uma túnica azul-índigo e estava envolto em um manto amarelo-açafrão que o cobria da cabeça aos quadris. Pendurado em um cordão em seu pescoço, o símbolo geométrico esotérico da "Flor da Vida" - composta pela inscrição de treze círculos sobrepostos, uniformemente espaçados, com uma simetria sêxtupla como um hexágono, definindo a estrutura da própria realidade física, desde os átomos até as galáxias - em latão dourado, no qual sobressaía o esquema cabalístico das dez sephiroth que formavam a "Árvore da Vida" ou Etz Chaim e seus respectivos nomes em hebraico - o alfabeto cujas 22 letras são como que o "DNA espiritual e Cósmico" do Universo, forças energéticas que originaram toda a Criação e se manifestam em nosso mundo físico como formas e vibrações passíveis de serem visualizadas e vocalizadas. À percepção parapsíquica de um clarividente natural, a aura de bioenergias que rodeava seu soma ou corpo físico apresentar-se-ia qual imenso campo áurico amarelo-alaranjado - vibrando em tons de amarelo-dourado tão puros e brilhantes como a água quando reflete a luz do sol - violeta muito claro ou lilás, acompanhados de estrias verde-claro, e uma espécie de névoa brilhante e branca, ou prateada cristalina, mais dominante no coronochacra. (Já as cores ultravioletas de seu ovoide áurico só poderiam ser vistas com o auxílio de um energovisor multiespectral.)

De fato, quase não havia quem não conhecesse o "rabi" alienígena em todo o Quadrante Alfa. Aung era o que no passado se chamaria de um Alto Iniciado - no Caminho da Metamagia e nos Caminhos do Tempo e do Espaço - e o codificador da metarreligião pacifista e universalista conhecida como "O CAMINHO", estilo de vida espiritual que combinava conhecimento místico, consciência espiritual, uma mente benevolente e um estilo de vida de cura e felicidade. Ninguém conhecia sua raça e seu planeta natal, muito menos sua idade cronológica ou biológica. Ou sequer se era macho ou fêmea ou hermafrodita. Dizia-se que não nascera neste continuum espaço-tempo, mas que aqui chegara há mais de 500 stanrevs, vindo de um outro domínio dimensional, de um Multiverso estranho e completamente diferente. Podia, independentemente de quaisquer recursos técnicos, distorcer as ondas de luz ao seu redor ou alterar sua frequência vibratória, tornando-se invisível e intangível, entrar no plano extrafísico (ou "plano astral", para usar um termo obsoleto) com o próprio corpo físico mediante alteração da fase frequencial da matéria e dos átomos da mesma; teleportar-se no espaço através da quarta ou quinta dimensão, transmaterializar e teleportar objetos e seres vivos pelo hiperespaço; teleportar-se no tempo, tanto para o futuro quanto para o passado; distorcer e manipular o fluxo do tempo, acelerando, retardando ou parando o mesmo. Podia controlar e comunicar-se empaticamente com animais, ou até criar construtos ("tulpas") na forma de animais apenas com a força da mente, fazendo os morfopensenes (ou "formas-pensamento", num jargão antiquado) adquirirem substância física no plano existencial da materialização normal. Dominava com perfeição o uso dos parassentidos, como a visão remota, a clarividência, clariaudiência, teletemporação, exopersonificação, exoprojeção consciente e multilocação física. Tantos poderes e habilidades psi-kappa, psi-gamma e psi-theta reunidos no invólucro corporal aparentemente frágil de um pequeno e mirrado humanoide alienígena de crânio volumoso e redondo com três olhos e pele preta salpicada de pontos brilhantes, que andava enrolado num manto amarelo!

Um supermutante, um sábio, um mestre espiritual, um epicentro consciencial!

Aung Kan Ki Miao pôs-se de pé e saudou Swann conforme o costume dos "Povos do Caminho": - Shalom, minha filha - disse ele amistosamente, juntando as mãos diminutas de sete dedos com garras prateadas e inclinando a cabeça. - Abençoada seja!

Swann retribuiu a saudação com um aceno de cabeça. - Não nos vemos desde o incidente com a "ubersonda" Gestora em Qo'noS, Rav. De onde vem você?

— De Jerusalém, Capital Mundial da Fé, num salto de teleportação - foi a resposta imediata. - Ou, se preferir, num pulinho.

Swann riu-se por dentro. Para Aung, que conseguia teleportar-se a distâncias de até cinquenta mil quilômetros num décimo de microciclo, usar sua energia psi-kappa para transpor a distância entre Jerusalém e San Francisco - 11.946,16 km - não representava qualquer problema. (Por comparação, o mesmo percurso feito a bordo de um dos ultravelocíssimos trens iônicos magnéticos em túneis de vácuo - chegando a uma velocidade de pouco mais de 24.150 km/h, em medidas terranas! - responsáveis pelo transporte subterrâneo intercontinental levava cerca de quarenta e cinco centiciclos ou vinte e cinco minutos.)

Disse, com uma ponta de malícia: - Nosso sistema de teletransporte público não é nada ruim, Rav. Você poderia poupar sua energia psiônica, só para variar, e utilizar a dos teletransportadores de matéria.

A boca larga de lábios grossos amarelados de Aung (um indício de que o sangue que lhe corria pelas veias e artérias tinha cor amarela, por ser à base de chumbo ao invés de ferro) abriu-se no que parecia ser um sorriso, ostentando dentes largos e arredondados de brilho prateado.

— Criança - disse ele - a arte da teleportação é incomparavelmente mais sutil e elegante do que o processo maquinal de copiar e replicar em outra localização o conjunto de moléculas que forma um corpo e, em simultâneo, apagar da existência o corpo original.

— Está bem. - Swann fez um gesto contemporizador. - Então, como vão indo as coisas no Estado Autocéfalo Israelense? E o que é que a Frota Estelar pode fazer pelo Guardião do Caminho?

No sexto século da Era Espacial - e em razão do advento da informatização e da comunicação lateral intensiva, da emigração em larga escala para outros planetas e satélites do Sistema Solar e da construção do Anel Orbital séculos antes - as velhas grandes cidades perderam seu caráter centralizador. Jerusalém, uma das últimas grandes cidades sobre a superfície de Terra com funções de capitais mundiais (juntamente com Siderápolis, San Francisco e Lucerna), era considerada o centro religioso do planeta, um centro principal de aprendizagem do Caminho. E Israel, uma das duas Zonas Especiais do Estado Mundial Terrestre (sendo a outra o setor da capital planetária), tinha status similar ao da antiga Santa Sé, ou Vaticano, da era pré-espacial.

Para ser exato, a grande maioria da população de Terra e dos demais planetas da União Solar - como consequência da evolução científica e consciencial desta sociedade - não era seguidora de nenhuma religião formal, nem acreditava em um Deus pessoal com as características antropomórficas dos deuses mitológicos das grandes religiões do passado (que, agora se sabia, não passavam de sedops ou manodins posando de deuses para influenciar em proveito próprio os primitivos habitantes do planeta Terra). Por outro lado, ainda existiam muitos terranos e solarianos - tanto humanos quanto extra-humanos - que abraçavam a crença em uma Inteligência Criadora - que poderia ser chamada DEUS - ou seguiam algum outro tipo de prática espiritual; e entre estes os adeptos do Caminho, uma amálgama de várias correntes místicas cristãs gnósticas, judaico-cabalísticas, sufis, iogues, zen-budistas e taoístas que ensinava sobre o Divino, ou o Ser Divino, a onipresente força sustentadora do amor, harmonia, equilíbrio e paz, ou a força da vida senciente do próprio Universo. Em suma, um Deus panenteísta ou pandeísta que é a Fonte Única e o "Lugar" do Universo, e do qual não passamos todos faíscas, fagulhas ou centelhas individualizadas.

Aung começou a caminhar pelo gabinete em direção a Swann (que, como em outras vezes, notou o odor de amêndoas doces ou benzaldeído que o epicon alienígena recendia) e respondeu: - Relativamente à primeira pergunta, regozijo-me em dizer que Israel recebeu a primeira leva de refugiados humanos egressos da realidade paralela da Terra-108, autorizados pela Administração Solar e pelo Conselho Federal Terrestre a permanecer neste planeta, nesta idílica realidade da Terra-832 do Multiverso. Quanto à segunda pergunta, talvez devesse ser reformulada para: "O que é que este humilde Guardião do Caminho pode fazer pela Frota Estelar?"

Swann franziu a testa. - O que você quer dizer com isso?

Aung fitou diretamente a almirante humana. Seus três olhos iridescentes como ágatas ou opalas, com pupilas puntiformes, pareciam dotados de luz própria (e Yasmine se perguntou que aparência teria perante órgãos visuais adaptados para luz visível, calor, micro-ondas, ultravioleta e até raios X).

Seu tom era calmo, mas incisivo. - Sistema Kepler-78. Uma gigantesca nave globular com trinta quilômetros de diâmetro, construída de pura luz prateada sólida e supercomandada pela consciência artificial mais poderosa jamais criada, vinda de fora deste Universo. De algum lugar e tempo para lá das infinitas profundidades das névoas cinzentas de probabilidade quântica.

Swann piscou surpresa. - Como sabe disso?

"Será que Aung também é telepata?"

Mas o chacham alienígena adivinhou o que ia pela sua cabeça. Disse: - Fique tranquila, criança. Não é meu dom entrar nas mentes de outrem, mas sim separar o espírito, ou melhor, o ego do corpo denso e desdobrar-me em corpos astral, mental inferior e superior ou causal - respectivamente correspondentes às sephiroth Yesod, Hod e Netzach - , assim podendo locomover-me com a velocidade do pensamento para qualquer ponto deste planeta, deste sistema solar, desta galáxia ou deste Universo... ou de outros universos. E, com efeito, foi o que fiz, ao sentir uma consciência de inconcebível, portentosa magnitude através da imensidade do espaço cósmico - irradiando como um vasto farol psíquico da órbita do sistema da estrela Kepler-78 - durante minha permanência em Jerusalém para participar de um sínodo de irmãos rabinos, adeptos do Caminho do Jardim. - Fez uma curta pausa e acrescentou sem emoção: - Muitos são os caminhos para entrar em harmonia com o Divino, sendo alguns mais árduos, com a arduosidade de uma subida a pé de uma montanha íngreme, e outros, mais amenos, algo semelhantes a adentrar e percorrer um grande arboreto.

— Entendo. Está dizendo que realizou uma exoprojeção consciente de psicossoma ou mentalsoma para o sistema estelar Kepler-78, porque seus poderes ultraperceptivos o puseram em contato com a mente de ASENA, a consciência sintética que controla a Cosmoarca, que é como chamamos a nave globular superdimensionada. E isso através de quase 215 parsecs.

— Assim o foi. A assinatura vibracional energética de tal entidade biomecânica não dá margem a dúvidas quanto à sua origem primal de além deste espaço-tempo curvo e angular que não passa de um simples átomo na infinita cadeia de átomos-universos que formam o Multiverso Local.

— Isso eu já sei. Me diga algo que eu ainda não saiba.

— Ah! Está experimentando este velho Guardião do Caminho? - Os três olhos dispostos em forma de um triângulo brilharam astutamente. - Pois ouça-me, Sinjorino Almirante Swann, da Frota Estelar da Via Láctea, ouça-me bem! ASENA exigiu a minha presença em corpo físico, e não apenas em minha forma astral, ou manásica, lá no sistema da estrela que vocês chamam de Kepler-78. ASENA assim o quer, antes ou por ocasião do retorno do ser humano abduzido chamado Karl Dharz da jornada de provação iniciática pelo interior de "seu corpo", provação essa para se mostrar digno d'Aquela que em vida suspensa espera sonhando no compartimento mais recôndito de "seu corpo". Esta, e não outra, é a razão pela qual nos encontramos frente a frente neste aqui e agora, minha cara Comandante em Chefe da Frota Estelar.

Swann arregalou os olhos e deixou o queixo cair. - Espere um centiciclo aí, Rav! Você entabulou uma conversa telepática com ASENA, uma I.A.A. que deliberadamente ignorou todas as tentativas de contato por parte da tripulação de uma nave estelar, a U.F.S. Majorum, aliás, por parte de qualquer ser inteligente dotado de vida orgânica? E que apenas se comunicou com o avatar ou construto de matéria programável de uma Inteligência Solar na forma humanoide, usando uma androide telepata como médium?

— Eu, Aung, Senhor das Feras, Metamago e Mestre de Todos os Elementos, não sou mais que um estranho em sempiterno exílio neste mega-arquipélago cósmico a que chamamos "Universo-832" - o anão alienígena falou solenemente. - ASENA e eu somos parecidos nesse ponto. Cada um de nós é uma ave emigrada que veio de longe, uma rã saltadora oriunda de uma outra lagoa tão além desta, tão além dos negros golfos do vazio que permeia os universos do Multiverso Local que nenhum ponto de contato é possível entre a natureza daqui e de lá. Da capacidade de transitar entre as dimensões e planos de existência é que decorre como consequência uma consciência cósmica - que é o que nos conecta. É o que a sua ciência chama de multidimensionalidade. A conexão, através da Consciência Cósmica, foi o que permitiu que seres tão radicalmente diferentes como eu e ASENA permutássemos ideias puras, ideias em bloco, num plano puramente espiritual. O espírito é o verdadeiro senhor da natureza, como se costumava dizer em meu mundo natal, na realidade paralela do Universo-5776 do Multiverso.

— Pensei que tinha dito que não era telepata.

— Realmente não enquanto revestido deste invólucro de carne e sangue e ossos, e por ele provisoriamente contido. Até você, porém, criança terrana, sabe que durante a projeção astral nosso ego - o átomo embrião, a centelha Divina em nós - não está preso à matéria, e por isso a transferência telepática de ideias em bloco entre um ego Divino ou neshamah temporariamente projetado fora do corpo denso, mas ainda revestido do seu corpo fluídico, e outras formas de consciência alienígenas é possível. Creio que seus cientistas conscienciológicos chamam a isso "paratelepatia". Para tanto, os adeptos e os grandes iniciados recorrem à invocação mental do Arcano IX - que corresponde à letra hebraica teth - dentro de si.

— A sua consciência projetada não chegou a penetrar no interior da Cosmoarca...

— Nada nem ninguém consegue transpor as barreiras e penetrar no corpo físico de ASENA, por detrás das várias camadas de suas muralhas cintilantes de campos energéticos multidimensionais, sem sua permissão, se não for por sua vontade.

— E por que razão ASENA quer você no sistema Kepler-78?

— Não foi clarificada a razão para tal exigência. O que ASENA deixou bem claro em meu espírito é que, se eu lá não estiver antes ou por ocasião do regresso de Karl Dharz, o prejuízo será vosso. Da raça humana. De vossa Federação Estelar. Deveras que uma entidade cósmica poderosa o bastante para provocar um tsunami no plano astral deste planeta não pode ser menosprezada.

— E, para tanto, para chegar ao sistema de Kepler-78, você precisa de uma nave estelar.

— Não posso teleportar-me através dos abismos do espaço interestelar. Abrir um portal para outras dimensões paralelas a esta, como dwipas e varshas, ainda que esteja em meu poder, de jeito nenhum me permitiria irromper para fora do Sistema Solar ou, sequer, do orbe terrano, com todos os meus corpos, do físico ao átmico. Utilizar o estado de Jinas para fazer vibrar este corpo físico até a quinta dimensão, neste caso, está fora de cogitação.

Swann inspirou profundamente e soltou devagar. - Eu preciso tomar algo - disse ela, como se falasse para si mesma, e caminhou lentamente até o sintetizador de alimentos na parede. Voltou-se e indagou: - Rav, posso oferecer-lhe uma bebida?

— Uma xícara de chá verde quente seria bem-vinda - respondeu o inumano.

Diante da máquina (fonoativada), Swann falou: - Duas xícaras, uma de chá verde Gyokuro, a 50º C, e outra, de chá de cassis e baunilha, a 65º C.

Em três microciclos um par de xícaras de porcelana casca de ovo materializou-se num breve tremeluzir sobre o balcão do console, cheias de chá quente fumegante, conforme o pedido feito ao computador por Swann, por meio de projetores de campos espaço-gravitacionais-tridimensionais capazes de transformar a matéria-prima em nível atômico para replicar toda e qualquer comida e bebida cadastrada no banco de dados (uma evolução dos antigos ressequenciadores de proteínas do século III d.V.). Aquela, sem dúvida, era mais uma "tecnologia indistinguível de magia" - bem de acordo com a Terceira Lei de Clarke - e que, acima de tudo, contribuíra para erradicar miséria, fome e subnutrição na nova economia cibernética-planificada pós-capitalista e pós-industrial da Federação Estelar!

Yasmine apanhou a xícara de chá de cassis e baunilha, e no mesmo instante a xícara de chá verde, sem que ninguém a tocasse, flutuou no ar como que tangida por mãos fantasmagóricas e invisíveis até o impassível Aung, que pegou-a calmamente. Após agradecer à anfitriã, o Mestre recitou uma berachah, ou bênção, a fim de trazer à luz a "faísca" de energia divina que constitui a essência espiritual de todas as coisas (inclusive dos alimentos), e em seguida bebericou o chá.

Swann arqueou de leve as sobrancelhas. - Telecinésia, Rav?

Os lábios amarelos de Aung emolduraram um discreto sorriso prateado. - Está aludindo ao emprego da força do pensamento para deslocar objetos e levitar o próprio corpo. - Era uma declaração e não uma pergunta. - O que sua ciência psiônica conhece por telecinésia ou psicocinese outra coisa não é senão uma poderosíssima força astral em torvelinho - "Fatum" ou "Nahash", criada pelo Arcano XV, que é a letra Samech - que anula o efeito da gravidade em um corpo, e que os iniciados espirituais aprendem a controlar por meio da invocação mental do Arcano XVI, da letra hebraica ayn, cuja força reside no olhar. Como se vê, tudo gira em torno das 22 letras do alfabeto hebraico e dos 22 Arcanos Maiores do Tarot que, por sua vez, correspondem às 22 conexões ou vias de acesso entre as dez sephiroth que formam o diagrama da Árvore da Vida, assim compondo os 32 Caminhos de Sabedoria. Isto - ele apontou para o medalhão dourado em seu pescoço, com a mandala cabalística da Árvore da Vida que é a representação pictográfica do arquétipo do Homem Cósmico - é nada menos que o melhor veículo para a tarefa incalculadamente difícil do autoconhecimento e do autodomínio em vários estágios daquilo que mundanamente se chama psiquismo e parapsiquismo.

— A Frota Estelar também estuda os poderes da mente há mais de dois séculos - retorquiu Swann, levando a xícara aos lábios. - Devido ao grande número de meta-humanos, mutantes e antimutantes - como os neumanos e os sapienciores - coexistindo neste planeta com o Homo sapiens, sem falar das raças sedopianas superdotadas que integram ou mantêm relações com a Federação, é claro que o Birô de Ciências da Frota tem o maior interesse em investigar e estudar o parapsiquismo de humanos e extra-humanos. Mas o faz de um modo rigorosamente científico... e não místico ou iniciático.

— PADD-corders não são a chave para acessar os mundos internos... o Eu Superior... os mundos de Luz superiores - Aung contrapôs suavemente, bebendo seu chá. - Não causa surpresa, pois, o silêncio da parte de ASENA, uma entidade cósmica que alcançou a sexta e a sétima dimensão de consciência.

— Eu aceito que existem coisas no Universo que não podem ser analisadas pelos PADD-corders - Swann retrucou ligeiramente contrariada. - Quanto a ASENA...

Neste exato momento, sua ajudante de ordens virtual I.A., Tomoko, chamou-a pela interface neural direta:

— Almirante? - soou a suave voz feminina sintetizada, de garota, em seu crânio. - Último informe subespacial da Suvartha no sistema Kepler-186. Quer que retransmita? Ou resuma?

— Negativo. Armazene - subvocalizou para Tomoko, cuja ciberimagem no mundo virtual (acessável por indutor psicobernético) era a de uma japonesinha loira graciosa de olhos futae, na faixa dos vinte anos terranos. - O que mais?

— Cibertransmissão da Divisão Psi da Agência de Inteligência da Frota Estelar. Assunto: interrogatório hipnotelepático do precogo/transmorfo infiltrado no Centro do Almirantado, desmascarado e capturado na data estelar 92102.223. Posso passar?

— Ponha em standby.

— Outra cibertransmissão chegando da Divisão Psi da Agência de Inteligência da Frota. Sinjorino! Agarraram o telepata infiltrado no Centro do Almirantado juntamente com o precogo/transmorfo, mas desaparecido logo após a captura deste!

— Ponha tudo em standby. E confirme com o ciberassistente do Chefe de Operações da Frota Estelar a holorreunião de emergência de todo o staff do Alto Comando da Frota, na data estelar 92102.458. Prioridade máxima.

— Sim, almirante. - A ciberimagem virtual de Tomoko, visível apenas para Swann por causa de seu ciberimplante neural, desapareceu instantaneamente.

"Inteligências artificiais virtuais, humpf!", Swann resmungou em pensamento. (O fato de ter pouca simpatia pela inteligência paralela que interconectava o mundo real e o mundo virtual não a impedia de empregá-la rotineiramente.)

Aung, depois de sorver mais um gole de chá, falou com a sua habitual calma e firmeza. - Yasmine, ouça-me. Eu cá não estou para arrogar-me o direito de julgar você ou a sua Frota Estelar, senão para ajudá-los a ajudar a Federação. O que nos leva de volta a ASENA implacavelmente convocando-me, em corpo denso, para o sistema Kepler-78 onde está sendo decidido o futuro da Galáxia. Torna-se, pois, imperioso que eu assim o faça!

Swann pigarreou e tomou um gole de sua própria xícara. - Rav... É bom que saiba que nos próximos cem centiciclos a existência da Cosmoarca será revelada ao Conselho da Federação e ao Fórum Estelar. Isto causará uma controvérsia galáctica, a maior desde a descoberta da fenda espacial para a Galáxia do Triângulo. Em razão da tensão política resultante, e por minha própria sugestão, será decretada uma quarentena em torno de Kepler-78, aliás, do setor estelar 246, com o estabelecimento de um perímetro de segurança formado por nossas naves. E avisos de "ENTRADA PROIBIDA" em tamanho astronômico.

— À óbvia exceção de suas poderosas astronaves - contrapôs Aung.

A almirante, surpresa, encarou o sábio alienígena. - Está me dizendo que quer pegar carona em uma nave da Frota Estelar que tomará parte no bloqueio ao sistema Kepler-78?

— Por que outra razão viria o Guardião do Caminho perante a Comandante em Chefe da Frota Estelar?

Swann franziu o cenho por um instante, ponderando, e em seguida disse: - Você planejou tudo desde o início, não foi? Usou sua capacidade parapsíquica de enviar a consciência para o futuro, em uma viagem no tempo de curto alcance, e anteviu que teríamos esta conversa. Já sabia de antemão que eu mencionaria a quarentena da Frota. Meus parabéns por sua sagacidade, Rav.

— Caríssima criança - retorquiu-lhe o epicon - existem muitos futuros possíveis. Infinitas possibilidades abrindo-se para aqueles que não se acham nem em um estado de confusão nem em um estado de clareza. Eu, Aung, sou um instrumento do Divino, não mais que isso. A decisão é só sua, Yasmine Swann. Porque seu é o livre-arbítrio. Mas suponha, apenas suponha, que os criadores de ASENA estejam interessados em evitar o fim prematuro deste "grande experimento cósmico" que é a Federação Estelar. E, que por outro lado, outras forças ou seres suprassensoriais - os carcereiros da nossa realidade, os "Gestores" - estejam tentando barrar-lhes o caminho. Qual a sua escolha?

— Pois muito bem - concordou Swann. - Podemos atender a vontade de ASENA. Assumirei toda a responsabilidade perante o Conselho e o Presidente Laukenickas, bem como perante o Fórum Estelar na minha qualidade de Comandante em Chefe da Frota.

E esvaziou sua xícara de chá.

Por sua vez, Aung sorveu o último gole de chá verde que ainda restava na xícara que, de imediato, flutuou telecineticamente de suas mãos (conforme sua vontade) e foi levitando até Swann, que a pegou com a mão livre e, logo a seguir, dirigiu-se para o sintetizador de alimentos e depositou as duas xícaras vazias sobre o mesmo balcão de onde as retirara.

— Reciclar! - ordenou. E o par de xícaras casca de ovo foi desmaterializado - revertido ao seu estado original de matéria-prima bruta - do mesmo modo que fora materializado. (Nada de desperdícios numa economia planetária baseada em recursos e no prossumo cogestivo que substituiu o dinheiro pelo crédito eletrônico virtual, dando a todos o mais alto padrão de vida, não como salário, mas sim como participação natural e inalienável!)

— E agora, caríssima criança, sou muito grato por sua atenção, mas devo deixá-la - Aung falou de supetão. - Farei uma visita à aprazível Ilha de Los Angeles. Para conversar com os elementais da água, golfinhos, tartarugas-marinhas, tubarões-brancos, arraias-mantas, lulas-gigantes e outros seres aquáticos que frequentam a magnífica biodiversidade do Recife de Hermosa. Ainda recordo os mundanos esplendores da velha "Cidade dos Anjos", de antes de serem para todo o sempre tragados pelas borbulhantes águas azul-cobalto do Oceano Pacífico, quando vossa Mãe-Terra tremeu e rugiu.

Rav...

— Lembre-se, ó filha da raça dourada deste planeta! O homem - todos nós - somos vítimas e carrascos de nós mesmos, herdeiros de nossos próprios atos, conforme a Lei de causa e efeito. O mesmo vale para as coletividades. Seja abençoada!

Ao dizer estas palavras com os braços cruzados em "X" no peito, Aung desmaterializou-se e sumiu no ar - presumivelmente se teleportando através da quinta dimensão para transpor a distância de 616 quilômetros entre San Francisco e a Ilha de Los Angeles (com a Z.R.A. de Nova Los Angeles), seccionada fisicamente da costa oeste da Califórnia por ocasião do "Grande Terremoto" de 79 d.V. que causara o afundamento da maior parte da antiga cidade de Los Angeles. (As ruínas submersas tornaram-se a base de formação do Grande Recife Artificial de Hermosa, lar de milhares de espécies marinhas.)

— Você é que é feliz - disse Swann, com um pálido sorriso, para o vazio onde microciclos antes havia o extraordinário ser transcósmico chamado Aung Kan Ki Miao. Um multimutante milenário, originário de outro multiverso, que era o exemplo vivo das culminâncias a que podia chegar um psiquismo altamente desenvolvido e disciplinado; que prefigurava um futuro longínquo em que o Homem - entendido num sentido puramente espiritual, que abrangia todas as formas de vida sapientes do Multiverso - , com um Q.I. de 10000, haveria de prescindir da grande maioria das máquinas que o serviram nos estágios evolutivos anteriores. O próprio Aung advogava que, ao utilizar como símbolo de meditação o diagrama da Árvore da Vida - uma "tecnologia" mental e espiritual - , o aspirante à iniciação conectava ponto a ponto sua própria alma individual com a Alma do Mundo - o Ser, a Inteligência Universal onipresente - , dessa forma acessando uma energia tremenda para a alma individual e dotando-a de poderes paranaturais. Seria verdade?

Swann meneou a cabeça afastando tais pensamentos de sua mente, voltou para sua mesa e ativou o trivídeo com um comando de voz. Quase que instantaneamente, a tela holográfica esférica exibiu a imagem tridimensional do rosto de um homem moreno cor de oliva, nariz adunco e cabelos negros cortados bem curtos. - Sim, almirante?

— Tenente Mazouz, ponha-me em contato com a Tenente-Coronel Gokaze, do Corpo dos Fuzileiros Estelares, no Complexo Orbital Aleph Primo - ordenou Swann.

— Sim senhora - respondeu imediatamente o Tenente Abdellatif Mazouz, um terrano europeu nascido em Marselha. - Estou acessando a interface ciberneural da Tenente-Coronel Gokaze.

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A Tenente-Coronel Masaya Gokaze girou o corpo na armação giroscópica formada por dois anéis concêntricos, ativando por comando mental o visor holográfico enquanto sua mininave da classe Merkavah era lançada da Doca Espacial em órbita de Terra. A nave esferododecaédrica de hipercristal - fruto de uma ciência inteiramente alienígena que estava 20 ou 30 séculos à frente da ciência da Federação - cortou veloz o negro e frio vácuo espacial como um míssil cinético, tendo como alvo o inimigo monstruoso que emergira verticalmente do subespaço a cerca de 50 quilômetros de distância dali, e que ora irrompia por entre as nuvens de destroços espaciais flutuando no lugar em que centiciclos antes estiveram naves da Federação.

"Ser Antigo... antivivo... à frente", informou o elo mental da Merkavah com sua piloto. "Destruiu uma nave cargueira de transporte tellarita e dizimou metade da frota de caças da Força de Defesa Solar."

A cabine do piloto era uma bolha transparente de "vidro virtual" indestrutível (tecnologia Cética, que funcionava analogamente a uma luz estroboscópica, existindo de nanociclo a nanociclo, e de todo impenetrável a não ser para seu usuário codificado), instalada no centro da Merkavah como uma pérola cristalina com iluminação interior, preenchida com uma invisível nuvem de femtomáquinas que facilitava a sincronização dos impulsos nervosos de Gokaze com a consciência elemental da Merkavah. Os controles holográficos virtuais lhe permitiam uma visão panorâmica de 270º do exterior da nave psicotrônica, com a Lua terrana, Luna, suspensa no negrume do espaço como um fantasma cinza-prateado - exibindo em sua face visível as escuras planícies secas que os astrônomos de eras primitivas tomaram por mares e as miríades de crateras imutáveis por bilhões de anos - , os restos da nave cargueira tellarita e dos caças do Diretório de Defesa... e o inimigo Antigo em todo o seu horror cósmico.

Masaya Gokaze já vira e enfrentara muitos antivivos em combates no espaço. Mas todos eles não passavam de nanicos em comparação com o verdadeiro Leviatã que assomou ameaçadoramente como uma sombra púrpura escura, movendo-se contra o fundo negro estrelado. Sua forma lembrava a de um mosassauro gigante, ou um cruzamento de liopleurodon com arraia-torpedo desprovido de olhos e revestido de uma couraça metálica roxo-azulada escura que refletia muito pouco o brilho do Sol e a luz das estrelas. Gokaze calculou seu comprimento em trezentos e cinquenta metros - ou seja, 50% maior do que uma fragata estelar classe Saladin ou Surya, do século IV d.V. - da extremidade do focinho afilado (cheio de terminações capazes de detectar os mais ínfimos impulsos elétricos, magnéticos e gravitacionais) à extremidade da comprida cauda serpentiforme. Ostentava dois jogos de quatro pontudas barbatanas ou aletas, um indício de sua capacidade de manobrar habilmente dentro de atmosferas planetárias.

"É um nível 5. Nunca haviam se arriscado a sair do subespaço tão perto do planeta-sede da União Solar e da Federação Estelar Unida", telepatizou a Merkavah.

— Bem-vinda aos novos tempos, querida - Masaya resmungou baixinho.

A Tenente-Coronel Masaya Gokaze, piloto e líder de esquadrão dos Fuzileiros Estelares, era uma pensenauta, ou seja, uma mutante psiônica da extinta raça lemuriana. Podia controlar espaçonaves e outros veículos de tecnologia avançada por meio de suas energias mentais, seus pensenes. Porém, para utilizar sua capacidade psi ela, como qualquer pensenauta, necessitava de um cibertraje de plug-in e fones de interface para conectar seu cérebro à nave ou veículo em questão; e uma vez plugada, ela conseguia "desligar-se" do próprio corpo e assumir a identidade do veículo que pilotava, o que fazia suas reações serem infinitamente mais rápidas do que as de alguém não-plugado que apenas operava controles manuais. Pensenautas eram uma casta muito seleta e infelizmente ainda rara na Galáxia.

No caso específico de uma Merkavah de fabricação Cética - uma nave "viva", telepática e semissenciente feita de uma liga de hipercristais com uma constante de variação oscilante pentadimensional, capaz de tomar suas próprias decisões quando necessário - , esta só reconhecia como seu piloto o pensenauta com o qual tivesse formado uma ligação psíquica, em um processo de imprinting - grosso modo, assim como um cachorro reconhece quem o trata - , o que se fazia por intermédio do uso de um capacete-indutor especial de cristal, para auxiliar na ligação mental, e pelo toque das palmas das mãos sobre as "silhuetas" dos painéis cerebrais nos braços da cibercadeira de comando na bolha de vidro virtual que era o plexo-cerebral-central de controle da Merkavah, onde os dons psíquicos do pensenauta se expandiam fazendo com que suas vibrações sensórias e ordens mentais interagissem com a nave/criatura cristalina como se ambos formassem uma única entidade.

Outras quatro Merkavah entraram no campo de visão ampliada de Gokaze. Todos pensenautas como ela, recrutados e treinados por ela (quando ainda era major). Eram a Capitão Angra Reginleif Hiei, a Tenente Kara Haruna e os Sargentos de Voo Tony Kanava e Keith Lumumba: os melhores dos melhores, dotados da habilidade de sincronizar suas mentes com os circuitos telepáticos daquelas espaçonaves cristalinas e controlá-las como se fossem seus próprios corpos. Juntos como um esquadrão espacial de combate, esses quatro jovens pilotos paradotados já haviam abatido um total de mais de 500 antivivos nível 2 e 140 de nível 4.

— Líder Akasha para esquadrão! Preparar formação de ataque! - ordenou Gokaze através do sistema de comunicação por múons.

Foi quando o gigantesco construto Antigo abriu sua bocarra imensamente larga, com três fileiras de dentes adamantinos de dois metros de comprimento que cintilavam em azul safirino ao longo de toda a borda das poderosas mandíbulas metálicas. Por uma fração de microciclo os olhos castanhos achocolatados de Gokaze visualizaram a massa de energia branco-azulada no interior daquela dantesca garganta cavernosa inundada de claridade cegante - que nem uma espécie de buraco branco em formação.

"Manobra evasiva! Escudos ao máximo!", Masaya pensenou para seu Merkavah, que desviou-se a tempo. O mesmo fizeram seus companheiros de esquadrilha.

Subitamente uma torrente de energia e plasma azulado fulgurante irrompeu num jato da bocarra do Leviatã sideral e precipitou-se sobre as cinco mininaves a 99% da velocidade da luz, mas errou o alvo. O sopro incandescente do ataque plasmático-energético apenas roçou no escudo hiperenergético 5-D da Merkavah de Gokaze.

Foi quando o órgão em formato de pequeno cristal vermelho-azulado situado na superfície dorsal do Antigo disparou um feixe de raios ultraenergéticos - uma arma de grande poder destrutivo - que atingiu em cheio a diminuta nave de cristal pilotada por Gokaze. Mas o escudo protetor de cinco dimensões - invisível sob condições normais, tornando-se visível ao se chocar violentamente contra alguma coisa, na forma de ondas de linhas roxas concêntricas octogonais - , potencializado pela sincronização mental da pensenauta com sua Merkavah, resistiu sem problemas.

"Inimigo está dando volta e se afasta de nós", informou o computador cristalino da Merkavah de Gokaze. A pensenauta lemuriana sabia o que isto significava: o gigante Leviatã cósmico em retirada preparava-se para imergir novamente na relativa segurança do subespaço - entre a 4ª e a 5ª dimensão - , escondendo-se "abaixo" do continuum espaço-tempo normal, fechando-se tal como um caramujo na concha, à espera de uma nova oportunidade para atacar. Malditos antivivos!

— Preparar para reagrupar! - ordenou Gokaze a seus pilotos pelo intercom. - Iniciar Formação Delta 5. E não errem! Não podemos, em hipótese alguma, permitir que o Antigo volte a mergulhar no subespaço. - E, por comando mental para o controle de tiro de sua nave: "Travar mira no alvo."

Os holovisores se expandiram ao seu redor instantaneamente, transformando-se numa grade de mira computadorizada que enquadrava a imagem do Antigo na holotela.

"Alvo travado!", informou o elo mental com o computador.

Gokaze curvou os lábios macios num sorriso feroz.

"Fogo!", pensenou a militar. No mesmo instante a arma de raios conversores disparou. Todas as cinco naves Merkavah dispararam, ao mesmo tempo, suas baterias de canhões de raios energéticos superdimensionais, superluminais, contra o ciclópico monstro antivivo. Ogivas de tricobalto foram desmaterializadas, irradiadas em forma de espirais de hiperenergia e rematerializadas dentro das entranhas da besta-fera mecânica, no exato momento em que esta abria uma fenda de passagem subespacial para evadir-se. Tudo isto aconteceu num lapso de tempo insignificante. Um microciclo e meio depois que Gokaze emitiu seu comando mental de abrir fogo, o titânico avatar espacial de um outrincon Primordial extracósmico explodiu, transformou-se numa enorme e cegante bola de gases incandescentes ao mergulhar no subespaço.

"Onda de choque subespacial vinda de três-três-sete, marco zero", avisou o elo mental de Gokaze com sua Merkavah. No instante seguinte a nave foi envolvida pela onda de choque resultante da explosão. Somente a perícia de pensenauta de Masaya, graças à sua fusão mental com a nave de hipercristal, a impedia de ser arrastada pela frente de choque. O veículo espacial esferododecaédrico de um só lugar rodou e deu uma guinada para estibordo, depois voltou ao centro e a seu equilíbrio.

— Menos um antivivo na Galáxia, ótimo! - Gokaze exclamou baixinho, com um ar de satisfação. À sua frente, como uma gigantesca opala azul-branca leitosa contra o fundo de veludo negro do espaço, o planeta Terra, ostentando como que uma pulseira de platina em redor do equador - a Cidade Anelar - , uma Lua cinza-prata, fosca e pálida, quase quatro vezes menor que seu planeta-mãe, e, bem mais perto, em primeiro plano via-se a colossal e majestosa Doca Espacial. - Computador, encerrar simulação.

A este comando verbal, a bolha transparente do cockpit, sua própria nave e as outras quatro unidades, os destroços de metal retorcido e carbonizado, Terra e Luna e a Doca Espacial desvaneceram-se como uma miragem. O negrume do vácuo espacial deu lugar ao negro luzidio "gradeado" de linhas brancas das paredes, piso e teto de tritânio e plasteel da câmara cúbica de um dos holodeques da Estação de Treinamento no Complexo Orbital Aleph Primo, no ponto de Lagrange L5, a cerca de 400.000 km de distância de Terra e de Luna.

Treinar, treinar e treinar! Esse era o único pensamento no cérebro de Gokaze, que conhecia como ninguém o perigo que os antivivos representavam para a Galáxia. Tratavam-se de inimigos temíveis para os quais os limites do espaço normal nada significavam, surgindo repentinamente do nada, das camadas mais profundas do subespaço, onde se ocultavam antes e após cada ataque. Seus disparos de raios de pósitrons de alta-energia varavam facilmente campos de força convencionais e até o pentaescudo padrão da F.E.U., mas não o campo metatrônico de uma nave Merkavah. Esta era uma das principais razões de as doze bionaves de cristal - as quais foram construídas há milênios por uma civilização superior, presumivelmente os Céticos, e deixadas estrategicamente em instalações subterrâneas em Luna e Marte como um legado à humanidade terrana e sua progênie terro-solariana - serem consideradas as únicas armas eficazes contra os Antigos. Todavia, as tentativas de engenharia reversa esbarravam em dificuldades intransponíveis devido à hiperradiação de quinta dimensão da estrutura cristalina; e a fabricação de femtomáquinas (milhares de vezes menores que nanomáquinas) estava além das capacidades tecnológicas da Humanidade Solar.

— Holotransmissão do Quartel-General da Frota Estelar em standby - anunciou seu assistente virtual em tom urgente, cuja "voz" soou em seu cérebro, por intermédio de seu ciberimplante de inteligência paralela. - Almirante Swann quer falar com você.

— Computador, arco - ordenou Gokaze, e imediatamente surgiu o portal em arco que se abria de dentro do holodeque com a finalidade de criar uma interface com o computador central da estação. Em seguida subvocalizou para seu ciberassistente (com a imagem virtual de um delfi, um golfinho geneticamente alterado): - Conecte e projete.

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Desta vez, demorou quase oito centiciclos antes que aparecesse no centro da circunferência decagonal luminescente a imagem tridimensional holográfica de uma mulher humana ou humanoide muito bonita que aparentava vinte e nove anos e possuía pele morena, marrom-aveludada, um rosto em forma de coração marcado pelos grandes olhos castanhos futae, com uma leve dobra mongólica, lábios cheios e carnudos, e cabelos violeta-escuros, lisos e médios, que acusavam sua origem lemuriana (da primeira humanidade planetária). Ela trajava o ciberuniforme cinza-grafite e verde dos Fuzileiros Estelares, um dos braços armados da F.E.U., que tinham em Andoria, no Sistema Asterion, a sua Academia.

— Em que posso ser útil, Almirante Swann? - indagou Gokaze, que tinha regressado recentemente da Estação Espacial Profunda Babilono, uma imensa astrobase que servia como centro de operações da F.E.U. e da Frota Estelar na Galáxia do Triângulo. Na data estelar 90044.734, a então Major Masaya Gokaze, controlando (por comando mental) sua pequena nave da classe Merkavah como se fosse seu próprio corpo, lograra destruir sete antivivos nível 4 (na forma de estrelas-do-mar espaciais que mediam de 50 a 100 metros de diâmetro, em tons metálicos de laranja e azul-turquesa, com um grande olho iridescente no centro e extremidades preênseis) em combate espacial nas cercanias da nuvem de poeira circunstelar rodeando a estrela KIC 8462852, à distância de 460 parsecs da União Solar, e que era tudo o que restava de um planeta gigante joviano classe S destroçado há mais de dois mil stanrevs.

— Coronel Gokaze, você e seu Esquadrão Arcanjo fiquem de prontidão pelos próximos cem centiciclos - instruiu Swann. - É extremamente provável que venham a ser convocados para integrar uma força-tarefa da Frota Estelar encarregada de isolar em quarentena o sistema Kepler-78. Em comparação com as suas últimas missões na Via Láctea e na Galáxia do Triângulo, esta será... como é mesmo a expressão arcaica que o Tenente-Comandante Lewz gosta tanto de usar? - O rosto oval de tez marrom-clara abriu-se num sorriso franco. - Ah, sim! "Sopa no mel", embora eu não consiga entender por que alguém colocaria mel em qualquer tipo de sopa. Aquela gente de quinhentos stanrevs atrás tinha costumes um tanto quanto peculiares.

Gokaze (em holograma) fez uma expressão de mofa e finalmente disse: - Mas o que poderíamos esperar de bárbaros ignorantes que ainda usavam dinheiro, comiam carne de animais mortos e se estripavam mutuamente por coisas idiotas como religião?

Antes que Swann pudesse responder, uma terceira voz fez-se ouvir na sala, chamando a atenção das duas mulheres (a holopresente e a fisicamente presente). Uma voz masculina macia e incrivelmente agradável, falando um norclassic tão castiço que quase soava como inglês do século I antes do Voo.

— E como era mesmo aquele antigo adágio do vosso século I antes ou depois do Voo? Oh, sim! "É o roto falando do esfarrapado", se não me falha minha memória prodigiosamente infinita.

Gokaze e Swann viram diante de seus olhos estupefatos, como que surgida do nada, materializada repentinamente no meio do escritório, uma confortável poltrona articulada forrada de pseudocouro lilás; e, sentado na mesma, um homem alto, magro e esguio, de pele ebânea ou marrom-escura (era um afroterrano), que usava o uniforme cibernético da Frota Estelar e exibia as insígnias de tenente-comandante. Uma cabeleira negra curta e bem aparada encarapinhava-se na cabeça dolicocéfala, com uma testa alta e ampla; embaixo dos olhos castanho-médios bem abertos via-se um nariz largo e achatado. Entre os lábios grossos que sorriam brilhavam duas fileiras de dentes alvíssimos. Tinha as pernas cruzadas, ao passo que as mãos repousavam sobre os braços da poltrona que adaptava-se automaticamente aos contornos de seu corpo.

Swann reconheceu a figura do Tenente-Comandante Lee Mandelovick, um jovem e promissor oficial da Frota Estelar nascido em Siderápolis, Setor da Capital Mundial de Terra (no Planalto Central Brasileiro). Mas ela sabia que não poderia ser ele porque o Tenente-Comandante Mandelovick dera baixa da Frota Estelar em 91803.6 e entrara para o serviço diplomático. E, ademais, ninguém, nem mesmo um mutante molecular ou psiônico dotado com o dom da teleportação lograria invadir o Centro do Almirantado - e, por conseguinte, o gabinete de Swann - sem disparar uns dezesseis tipos diferentes de alarme parapsíquico. E Lee Mandelovick, ela bem o sabia, não era nenhum mutante, mas um simples ser humano pertencente à velha e boa espécie do Homo sapiens sapiens, que não possuía quaisquer poderes paranormais.

— Olá, Q - disse Swann em tom frio. Para a C-em-C da Frota, não havia dúvidas de que quem se encontrava diante dela e da holoprojeção da Tenente-Coronel Gokaze era um Qi Mu*ur, ou, popularmente, um "Q", um outrincon de poderes quase ilimitados, membro de uma raça de alienígenas eternos e superpoderosos pertencentes a um espaço de ordem superior, de cinco ou seis dimensões, e que era geralmente conhecido como Hipercontinuum Q. Swann tinha plena consciência de que o que via à sua frente não passava de um simulacro de aparência humana... apenas para sua conveniência. Se o Q assim o quisesse, poderia transfigurar-se em qualquer coisa, e transformar-se em quase qualquer forma física - um imp, um felinoide kzin, um z'horx com três três cérebros e quatro genitálias, ou uma colônia ciberviral eciônida - , não estando sujeito às limitações do continuum espaço-tempo quadridimensional onde existimos. Caso fosse possível a Swann perceber um Q em sua forma verdadeira, extradimensional, "ele" ou "aquilo" pareceria mais uma vasta estrutura arquitetural composta de energia/inteligência e sentimento do que um organismo vivo, tal como conhecemos na biologia. (E quem senão uma assim chamada "entidade onipotente" Q seria capaz de driblar as paradefesas do Quartel-General da Frota?)

— O que está insinuando? Que somos os mesmos bárbaros de quinhentos stanrevs atrás? - Gokaze inquiriu agressivamente. Já tivera suas experiências com Qi Mu*ur, ou Q, assim como muitos oficiais da Federação, e delas não guardava boas lembranças. (Estranhamente, todos os outrincons daquela espécie transdimensional chamavam-se uns aos outros de "Q", embora fossem terrivelmente individuais e personalistas!) - Pensei que isso fosse assunto superado depois dos eventos no sistema Denebiano, em 395 d.V.

— E vocês está redondamente certa, Última Filha de Lemúria - retorquiu o Q na forma de Mandelovick, falando um esperanto impecável e juntando as pontas dos dedos das mãos. - Por outro lado, é mais que óbvio que seres supremos como os que habitam o Hipercontinuum Q, tendo atingido a superioridade intelectual e moral absoluta, estão para a espécie humana como a espécie humana está para esses animais anelídeos, vermiformes, que vivem a cavar buracos em vossos jardins. Um abismo de incontáveis éons...

— Lá vem mais uma vez a típica arrogância dos Q - disparou Swann. - Mas afinal, o que quer aqui, Sinjoro Todo-Poderoso? Não somos mais que vermes bípedes!

O Q suspirou e revirou os olhos. - Humanos! Sempre tão melindrosos quando se trata de reconhecer o seu lugar na escala evolutiva cósmica. - Mas então o longo rosto oval de feições escuras assumiu um ar sério e grave. - Esta não é uma visita social. Como até você pode deduzir, Grande Mãe Morena, a ruptura no tecido do espaço-tempo causada pela entrada forçada da nave-arca interdimensional ekoplexiana neste Universo, mais exatamente no sistema estelar a que chamam Kepler-78, não passou despercebida no Hipercontinuum Q.

— Considerando o patamar tão inimaginavelmente avançado de sua ciência, A25, Tipo VI na Escala Kardashev-Galántai, o contrário é que me surpreenderia - Swann replicou em um tom malicioso. Já não era nenhum segredo que as grandes barreiras de energia negativa em torno do halo e do núcleo galáctico foram criadas pelos superseres cósmicos do Hipercontinuum Q, dezenas de milhões de stanrevs atrás, como parte de um megaesquema de segurança e defesa da Galáxia contra o retorno dos Transfinitos, ou até da Sombra Negra (uma terrífica entidade "necroenergética" gerada a partir das locas dos Primordiais visando obliterar de vez a Luz Astral - e com ela toda a vida biológica - deste lado do Multiverso); e que a esse megaesquema vinculavam-se as dez centrosferas controladas em rede pela matrisfera (a "chave" para reprogramar todas as outras nove) deixada em poder dos Guardiões Namósic pelos Éticos oriundos de uma linha temporal futura que se haviam aliado aos ultrafísicos Q.

O olhar de Gokaze fitou alternadamente um e outro. - Então é isso que tem no sistema Kepler-78? Algum tipo de nave interdimensional de um universo alienígena?

— Sua almirante pretendia contar-lhe tudo que sabe a respeito da Cosmoarca, e talvez até a respeito de uma certa "bela adormecida" com genes de canídeo em uma câmara de estase - o Q explicou com uma dose de ironia e fazendo um gesto de descaso com a mão. (Aí estava um superser, um outrincon que poderia facilmente destruir o Sistema Solar numa questão de microciclos - e de várias maneiras diferentes, com dois ou três pensenes!) - Acontece que o que ela sabe não vai além do que ouviu do pequeno monge trioculado, Aung Kan Ki Miao, e da avatar sideral de 18 Scorpii, Aine-Grian-Raymi, que aliás não revelaram tudo que sabem sobre o assunto. Ou ignoram a verdade em toda sua extensão.

— Naturalmente - Swann assentiu, impassível, mas sem deixar de transparecer, por sua vez, sua particular ironia. - Afinal de contas, nenhum deles é um Q, beirando a onisciência.

— E esbanjando arrogância - observou Gokaze, incisiva.

O Q travestido de humano (por sua habilidade em manipular e controlar sua própria "matéria" corporal constituída de ondas e campos energéticos, adotando formas mais e menos tangíveis) permitiu-se um meio sorriso condescendente. Estes pobres seres primitivos, limitados a uma existência miserável em dimensões finitas de espaço e tempo, eram incapazes de imaginar até que ponto a consciência dele se espraiava além de sua pequenez e mediocridade à maneira de tentáculos mentálicos até os rincões mais remotos de universos jamais sonhados por suas mentes embotadas.

Inclusive o Universo Skyler!

Mesmo naquela forma humana tosca, imperfeita, que não passava de simples construto tridimensional, um membro de baixa hierarquia do Hipercontinuum Q possuía sentidos e percepções infinitamente mais extensos e intensos do que as de um reles ser humano, podendo captar a totalidade do espectro eletromagnético, dos raios gama às ondas de rádio, visualizar átomos e partículas subatômicas da classe dos léptons como nuvens de probabilidade quântica. Podia "ver" e ouvir as ondas gravitacionais, sentir o "cheiro" da matéria escura e da energia escura que compunham 95% do Universo.

Swann aproximou-se do alienígena ultraterrestre e encarou-o de um modo quase desafiador. (Como veio a saber mais tarde, tratava-se dum "adolescente" dessa raça, com a idade de um e meio milhão de stanrevs, ou quase um milhão de anos terranos.)

— Só o fato de ter vindo aqui para falar da Cosmoarca me leva a deduzir que a mera presença da mesma e, por que não dizer, a possibilidade de que caia nas mãos de "primitivos" como nós, é algo que preocupa seus superiores no Hipercontinuum Q. Não é verdade? Estou certa ou errada?

O rosto cor de ébano escuro do pseudo-Mandelovick parecia rígido e impassível como uma máscara nagoniana. ("Por que copiar justamente a imagem de Lee?", Swann se perguntava em seu íntimo, sem, no entanto, obter resposta.)

— Nada mal para o seu grau de inteligência - disse ele com indiferença. - Você não está totalmente errada, mas não está totalmente certa.

— Deixe de rodeios e vá logo ao ponto, por favor - disse ela num tom imperioso, como se estivesse falando com um simples subtenente ou alferes, e não com um outin de uma raça de gigantes mentais, senhores de todas as dimensões, capazes de, com apenas o uso de seu poder mental, converter energia em matéria e vice-versa, criar sistemas solares inteiros, criar galáxias inteiras, mover estrelas e planetas através de gigantescos buracos de minhoca artificiais, criar linhas do tempo alternativas e mudar a constante gravitacional universal, além de se teleportarem por todo o Universo sem a necessidade de astronaves e teletransportadores, portais dimensionais ou stargates.

O Q levantou-se da poltrona articulada e moveu sua mão em direção à mesma, que instantaneamente desintegrou-se num clarão opaco e frio.

— Mas é claro, almirante - disse ele. - Antes, porém... - Gesticulou com a mão direita em direção ao holograma de Gokaze e este desapareceu instantaneamente. Ao mesmo tempo, a própria Masaya Gokaze em carne e osso materializou-se num clarão de luz branca, bem diante de Swann. O belo rosto da fuzileira da Frota Estelar estava confuso e perplexo, seus olhos arregalados moviam-se de um lado para outro.

— Bem-vinda, coronel - disse Swann com um sorriso sem jeito.

— Almirante! O que significa...? - Gokaze começou a protestar, mas Swann levantou ambas as mãos com as palmas para ela.

— Não olhe para mim, foi iniciativa dele. - Com a cabeça, Swann indicou a figura esguia do Tenente-Comandante Mandelovick, ou melhor, do Q que o personificava.

— Holocomunicações são frias e impessoais - disse ele, aproximando-se das duas mulheres humanas. - E aposto que não fazem ideia de quantas vezes algum espaçonauta com barba por fazer e roupa amassada recorre ao artifício do holograma 3-D para mudar sua aparência física e suas roupas, surgindo à vista do oficial superior bem barbeado e envergando um uniforme imaculadamente limpo.

Gokaze lançou-lhe um olhar ferino. - Quem foi que disse aquela sábia frase "Quem viu um Q, viu todos"? - ela redarguiu em tom suavemente irônico. - Ah, sim. Acho que fui eu mesma.

— Considero seu comentário extremamente preconceituoso, Coronel Gokaze - replicou o alienígena, fazendo pose de ofendido (puro "joguinho" de cena). - Onde está sua cosmoética de membro da Frota Estelar?

— Isso não se trata de preconceito, é pós-conceito - a lemuriana retrucou com tranquilidade. - E agora, que tal esclarecer o porque de uma nave-arca originária de outro universo no espaço da Federação incomodar a turma do Hipercontinuum Q, os "superdeuses" da Galáxia?

— Sim, sim - ele respondeu com certa brusquidão. De repente, seu semblante se iluminou. - Ora, mas onde estão os meus modos? Posso oferecer-lhes um drinque por conta da casa, my fair ladies?

E sem esperar alguma resposta o Q estalou os dedos silenciosamente. No mesmo instante compridos cálices de cristal cheios de uma bebida cor de âmbar, límpida e brilhante, apareceram num pequeno flash de luz nas mãos de Gokaze, de Swann e do próprio Q.

— Hmmm... Tuerto - constatou Gokaze, ao molhar os lábios na bebida.

— Apreciam uma boa bagaceira cabotina envelhecida dez stanrevs em barris de carvalho? - indagou Q, enquanto bebericava seu drinque. - Ou preferem Chech'tluth, ou warnog klingon?

— Não, não, não, tudo bem - Swann apressou-se em responder. - Estamos gratas e apreciamos sua gentileza, não é, coronel?

— Indubitavelmente, almirante - concordou Gokaze, tomando mais um gole de sua aguardente bagaceira. - Pessoalmente, sempre gostei de tuertos.

"Parecem fazer com a mente o que nós fazemos com nossas máquinas... nossos sintetizadores e transmissores de matéria", ela pensou por um instante.

— Exatamente, coronel. Nos planos dimensionais superiores do Cosmos, "pensenar" e "criar" são sinônimos. Pensenar é criar - explicou o Q, que lia as mentes das duas mulheres com a mesma facilidade com que um ser humano leria um holotexto. - Algum dia a vossa espécie também terá o poder de transformar energia em matéria dando-lhe a forma que quiser, unicamente usando o poder de suas mentes. Isto é, se sobreviver aos próximos milênios e éons. A evolução, vocês sabem, é um processo implacavelmente cruel de eliminação e joeiramento, ao qual poucos sobrevivem. Assim aconteceu com os meus antecessores biológicos diretos, durante a última rotação da Galáxia em torno de seu eixo.

Swann e Gokaze surpreenderam-se ao ouvir aquilo. Os Q nunca falavam sobre seus próprios ancestrais biológicos "pré-Q", como se existissem desde sempre como deuses (quase) onipotentes em seu ilimitado e transdimensional Hipercontinuum. Por outro lado, era ponto pacífico que se sentiam tanto intrigados quanto ameaçados pelo potencial evolutivo da raça humana e das raças humanoides pós-edhenianas (daí a razão de submeterem-nas a duros e sucessivos testes), que poderiam "ascender" e abandonar os corpos físicos - passando a viver eternamente como outrincons compostas apenas de mente e energia em um plano mais elevado de pleno conhecimento e poder - mais rapidamente do que fizeram seus remotos antepassados pré-ascendidos.

— Vocês, primatas humanos, não compreendem que são como um bando de crianças recém-chegadas a uma ordem imensamente velha e inconcebivelmente sábia - explicou o manodim de formato (temporariamente) humaniforme. - Mas, infelizmente, nós, os Q não estamos sozinhos em nossa transdimensionalidade. Existem outros seres ascendidos que abandonaram a forma física e se tornaram entidades de pura energia. Quando há interesses em conflito, não há tréguas. Guerra é um termo simplório demais para servir de descrição. E eis que lá vem aquela nave-arca ridícula de fora do Multiverso transportando nada menos que a arma suprema que pode levar a destruição ao Hipercontinuum Q, dissimulada sob a forma mais inocente possível. Entendam isso! Estamos diante da maior ameaça à existência de todas as raças de seres ascendidos, superinteligências e congêneres desde a chamada "Guerra do Abismo".

Yasmine Swann respirava pesadamente. Ela notou também a respiração pesada de Masaya. Ambas não cabiam em si de espanto e perplexidade. Uma hiperarma com poder suficiente para destruir uma raça de superseres que poderia muito bem aniquilar toda a Galáxia (com seus 200-300 bilhões de sóis) em dois tempos! Era uma revelação de gelar o sangue e arrepiar os pelos da nuca.

— Tentem não surtar - disse-lhes o Q (não sem um laivo de ironia na voz), que continuava a monitorar-lhes os pensamentos. - Meus superiores no Hipercontinuum Q não gostaram nem um pouco, mas foram proibidos de interferir no continuum espaço-tempo quadridimensional habitado por vocês. E é aí que entram vocês, da Frota Estelar.

— E o que espera que façamos? - Swann indagou secamente.

— Os dados sobre a hiperarma estão gravados em um banco de dados móvel que se encontra a bordo da Cosmoarca, sob a guarda da I.A.A. que se autointitula ASENA. Queremos que sejam apagados. Em hipótese nenhuma deverão permanecer em poder de outrincons primitivos evolucionários do tempo e do espaço.

— Ou seja, nós - Swann disse sarcasticamente. Q apenas anuiu com a cabeça.

— Este banco de dados móvel, o que é e como identificá-lo? - indagou Gokaze.

— Não é o que e sim quem— respondeu o Q, e seus lábios ensaiaram um pequeno e malicioso sorriso. Ele lançou um olhar para Swann. - É a Loba.

— A Loba! - Swann repetiu, estupefata. Sua mente rememorou o que ouvira da parte de Lewz, de Raymi e até mesmo a breve alusão de Aung, em referência a essa figura misteriosa. "Então, ela é o cadeado... e Dharz é a chave."

— Apenas façam o que tem de ser feito - disse o Q. - Depois podem ficar com ela e fazerem o que bem entenderem do espólio dos Astroengenheiros. Não nos incomodamos se isto vai ajudá-los a subir um pouco mais na espiral da evolução. Aliás, eu vou lhes fazer uma confidência: a espécie de vocês tem sido meu objeto de estudos favorito desde que o primeiro Homo sapiens foi engendrado por manipulação genética pelos anunnakis, cerca de 200 mil de seus anos atrás, na grande massa de terra continental que chamam de África.

— E corremos com eles do nosso planeta - replicou Gokaze suavemente, mas com clara ênfase.

O meio sorriso fechado do Q ainda lhe repuxou as comissuras dos lábios. - E por último, porém não menos importante... - Mas então seu semblante ficou sério, seus olhos castanhos luminosos (que pareciam concentrar toda a energia do Cosmos) fixaram-nas duas mulheres solarianas e, quando falou, sua voz mal parecia a de um ser humano, adquirindo uma qualidade quase mística, transterrena, de força impessoal. - EU NÃO ESTIVE AQUI.

E ao serem pronunciadas estas palavras, a entidade alienígena ultraterrestre desapareceu em um rápido e intenso flash de luz branca, o mesmo se dando com os cálices vazios nas mãos de Swann e Gokaze. Estas entreolharam-se confusas sem atinar com tamanha situação bizarra.

— Coronel Gokaze - Swann começou - o que está fazendo aqui... em pessoa, digo, em carne e osso? E como chegou tão rápido sem usar o teletransportador?

— Acredite-me, almirante, estou me fazendo essa mesma pergunta - respondeu a última sobrevivente da civilização lemuriana (ou mukuliana), que estava sentindo-se tão insegura de si mesma quanto sua comandante-em chefe. - Só me recordo de estar em um dos holodeques para treinamento do Complexo Orbital, receber sua holotrans... e suas instruções pelo holocomunicador a respeito da nova missão, em Kepler-78... e nossos comentários acerca dos hábitos e costumes bárbaros dos homens de quinhentos stanrevs atrás. De resto, porém... - Sacudiu a cabeça e abriu os braços, em sinal de incompreensão. - E, de repente... eis-me aqui!

No século I d.V., a isto chamava-se - nos arquivos ufológicos daquela época - "lapso de tempo" ou "tempo perdido".

Swann anuiu em silêncio, e ambas trocaram um olhar de mútua compreensão de que ALGUMA COISA apagara suas lembranças dos últimos quinze centiciclos!

Exceto uma.

— A hiperarma... o banco de dados móvel... a Loba! - Masaya exclamou em voz baixa.

— Sim - Swann assentiu em concordância. - A hiperarma e o banco de dados móvel que é a Loba.


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Notas finais do capítulo

Num sentido estrito, "intermezzo" (em italiano) ou "interlúdio" (em português) é um pequeno trecho de música instrumental (ou mesmo uma peça instrumental autônoma) que se destina a preencher o espaço entre 2 atos ou cenas de uma composição maior; num sentido mais lato, é o intervalo ou lapso ("interregno" em latim) entre alguma coisa e outra coisa. Este é supostamente o mais longo intermezzo jamais escrito ou composto (p/o menos, não tenho conhecimento de algum outro de igual ou maior extensão), embora não intencionalmente; o que ocorreu foi que não resisti à tentação de enfiar e condensar num mesmo "interlúdio" todas as cenas e ideias deletadas dos capítulos anteriores, ou que neles não puderam ser incluídas justamente por razões de espaço e duração. O resultado é este "mais longo intermezzo etc", mas, com toda sinceridade, me senti satisfeito por tê-lo postado. Havia, de minha parte, a necessidade de aprofundar um pouco mais, p/ex., a caracterização (humana) da Almirante Swann, no sentido de mostrá-la como alguém mais do que uma mera burocrata distante do planeta Terra, bem como a inclusão dos elementos místicos e iniciáticos que o monge ou "rabi" alienígena Aung tão bem corporificou (na opinião de um meu amigo cabalista que leu este texto), da tenente-coronel fuzileira de origem lemuriana e, por que não, a introdução de alienígenas verdadeiramente bizarros como o imp e o Q. Agora, posso voltar a focar a devida atenção ao "mainstream" (corrente principal) do enredo, no próximo capítulo, ou seja, o que de fato aconteceu (ou está acontecendo) com Karl Dharz, e o que - ou QUEM - ele encontrará a bordo da Cosmoarca. Até lá!



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