À Ilha do Fundão escrita por Katsune-chan


Capítulo 1
Capítulo Único




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O trânsito das cidades brasileiras é terrível. Não é novidade demorar uma hora para chegar a qualquer lugar quando se poderia levar vinte minutos. Fica ainda pior em dias de chuva, como o de hoje.

Demorei a acordar. Toda vez que chove o quarto parece mais escuro, dando a impressão de que o dia ainda não clareou. O despertador tocou algumas vezes, mas o ignorei, pensando que estava maluco. Como poderia tentar me acordar no meio da madrugada? Voltei ao sono. Somente na sexta vez decidi pegar o relógio para desligar, quando por coincidência vi a hora: seis e meia. Tinha que correr para chegar a tempo da aula das sete.

Apressei-me para sair. Embora fraca, chovia o suficiente para se molhar. Esperei no ponto de ônibus segurando o meu guarda-chuva em meio a um festival de outros coloridos. Se estivéssemos na primavera, quem visse do alto poderia pensar que fossem flores em meio ao início do caos. Enquanto pensava na aula, ouvi uma mulher um pouco gordinha reclamar.

— Esse ônibus não chega! Tô aqui esperando já tem uma hora! — Bufava irritada.

— É assim mesmo... Calma que já deve vir. — Respondeu um senhor corcunda.

Chegou. Tive sorte dupla: graças a acordar tarde não precisei esperar muito tempo sob a chuva e o coletivo ainda tinha assentos vagos. Afinal, saía de Copacabana, na primeira parte do trajeto para a Ilha do Fundão.

Subi, junto da mulher, do senhor e de mais três pessoas. Mal a porta de entrada se fechou, o motorista arrancou tão violentamente que quase fui prensado contra a roleta pelas pessoas atrás de mim. Elas continuaram a me empurrar, tentando de forma atrapalhada voltar ao equilíbrio. Olhei para a trocadora. Parecia nervosa vendo aquela confusão ainda na porta, e também impaciente, talvez com a minha demora em alcançar a mochila para pegar o dinheiro. Logo o motorista fez uma curva rápida para a esquerda, o que nos obrigou a nos apoiarmos um no outro em trenzinho. A gordinha se segurou na minha mochila, cujas alças quase rasgaram. Findada a inércia, os cinco caíram no chão e ela me soltou. Enfim paguei a passagem e pude ocupar meu lugar no ônibus.

Seguimos. O grupo se sentou na frente e eu no corredor, perto da trocadora. O ônibus foi lotando à medida que avançamos e uma fila de passageiros em pé já começava a se formar. Em Botafogo, paramos para embarcar mais gente e subiu um homem desarrumado e bêbado, que devia ter virado a noite em um bar.

— Muiééé, me dá a passhagem aí... — Disse caindo sobre a roleta e lançando seu bafo no rosto da trocadora.

A pobre moça virou a face para sofrer menos com o mau cheiro e prontamente realizou a operação. O bêbado se empurrou pela roleta e (para o meu azar) parou ao meu lado. A mulher gordinha, que se sentava à minha direita do outro lado do corredor, começou a reclamar.

— Estou atrasada e ainda vou ter que aguentar isso... — Sussurrou.

— Quê que foi, gorrda? — O bêbado achou que fosse com ele.

— Quê?!

— Eu perguntchei quê que foi! Tá querendo comprar briga, muié? — Começou a socar o ar.

— Nem falei com você!

— Aah, falou! Essha gordinha me aama! — Inclinou-se e bafou no rosto dela.

— Só me faltava essa! Motorista, faça alguma coisa! — Tentava afastar o bêbado.

O motorista ignorou. Ou estava tentando se concentrar no caminho ou talvez só não quisesse confusão para o seu lado. Enquanto isso, a pseudobriga de casais começava a se acirrar.

— Trocadora, não é melhor tentar separá-los? Talvez se ele for lá para trás... — Perguntei. Ela se virou para mim com uma expressão assustada e bestializada, e depois para a discussão acalorada.

— E-ei, vocês. Voltem aos seus lugares, crianças!

Não deu resultado. Será que ela pensava estar no maternal?

— É que hoje é meu primeiro dia de trabalho aqui e só sei apartar brigas menores... — Ela se justificou.

A maioria dos outros passageiros sequer se incomodava. O senhor corcunda, que estava ao lado da moça gordinha, tentava acalmar os dois, mas não era ouvido. Os que estavam ao redor se limitavam a olhar e a desviar de um ou outro movimento errante do bêbado. Tinha alguns rindo da situação enquanto outros gravavam a cena em seus celulares sem a autorização dos atores. A atriz percebeu uma dessas gravações e bateu no celular, que caiu para fora do veículo através da janela meio aberta.

— Faz mal não. Ainda não paguei a segunda parcela. — O dono debochou e foi se distrair com a água da chuva.

Lá fora começou a chover forte e fazia algum tempo que o trânsito andava lento. Na parada seguinte subiu tanta gente que já existiam três filas dentro do coletivo, e a trocadora apenas continuava:

— Ainda cabe mais! É só ficar encolhido no chão!

Talvez daqui a pouco fôssemos ter que escalar as paredes. Fiquei me perguntando se os novos passageiros realmente iam para a Zona Norte, ou se apenas embarcaram no primeiro ônibus que viram para se abrigar da chuva. As pessoas entraram empurrando o bêbado, o que teria sido a salvação da gordinha se ele não desviasse girando no mesmo lugar.

Nesse vai e vem de amores, conseguimos finalmente chegar ao Túnel Santa Bárbara. Estávamos todos tão espremidos — com alguns inclusive sentados no chão antes da catraca — que não consegui mais acompanhar a discussão. Até que ouvi a mulher gritar quando saímos do túnel.

— Ele passou a mão na minha bunda! — Começou a dar tapas no sujeito.

— Issho aí não fui eu nãão. — Respondeu tentando se esquivar.

Sobraram tapas até para os que estavam próximos. O motorista explodiu.

— Calem a boca os dois!

— Mas que grosseria! Eu sou a vítima aqui e ainda me tratam assim?!

— Se acalma, se acalma. — Falou mais firmemente a trocadora. Acho que começou a pegar o jeito.

— Pode sair do ônibus! — Levantou-se o motorista. Por sorte, estávamos parados com o engarrafamento.

— Eu não vou sair do ônibus. Quem tem que sair é ele! — Disse a moça, apontando para o bêbado.

— Não fiz nada dchi errado e vou ficar aqui. — Respondeu o bêbado, sentando no chão e em cima do pé dos passageiros ao redor.

— Calma... Vocês têm é que ficar zeeen... — Inspirou suavemente o senhor corcunda, mas logo o ignoraram.

— Pode ir saindo do meu ônibus! — Berrou o motorista.

Um coro começou a se formar na frente com “Pede pra sair”. Eles deviam estar apenas se divertindo com a situação. Até alguns dos que estavam na parte de trás do coletivo acompanharam a cena, provavelmente sem saber o que acontecia.

— Aaah! — A moça começou a ficar vermelha e depois roxa de raiva. — Já chega! Vou embora e vou meter um processo nos dois e na companhia!

O trânsito voltou a fluir. O motorista fez outra curva rápida, passando por uma enorme poça, encharcando os pedestres que esperavam no sinal, e invadiu a calçada para a senhorita descer no conforto. Nessa manobra radical, ainda conseguiu bater no poste.

— Pode descer. — O motorista abriu a porta traseira.

A mulher se levantou, quando viu o bêbado sentado, impedindo a passagem, além das três filas.

— Não tem como passar. Abre a porta da frente.

— Isso eu não posso fazer, senão os superiores vêm me punir depois.

— Aah, então pra isso você é punido?!

A mulher gordinha desistiu e decidiu sair pela porta traseira. Pulou o bêbado e saiu se espremendo o quanto podia pelo corredor até finalmente alcançar a saída. A demora no procedimento foi tamanha a ponto de formar uma fila de ônibus e um engarrafamento no cruzamento atrás de nós. Ainda parada na porta, quando ela abriu o guarda-chuva e olhou para a calçada, optou por voltar atrás. Onde o motorista estacionou estava alagado até o joelho.

— Cê tá de sacanagem comigo! Tá alagado!

— Ih, não reparei... — Disse o motorista. Não sei se era verdade ou mentira.

Mesmo assim, a mulher se preparou para descer, até que uma forte ventania arrancou o guarda-chuva das mãos dela, batendo na cabeça de um homem que andava de bicicleta em uma parte não alagada da calçada. Por causa disso, pedalou desgovernadamente até cair de cara em uma poça enlameada. Podia-se ouvi-lo xingando e dizendo que ia processar a dona daquele guarda-chuva. Com isso, o feitiço voltou para a feiticeira e a moça voltou envergonhada para o seu lugar. Até o motorista achou melhor prosseguir viagem, enquanto tinha trânsito livre.

Depois disso, todos ficaram em silêncio e voltamos a andar em ritmo stop-and-go por causa do gargalo que recebe os veículos da Ponte Rio-Niterói. Enquanto esperava enfastiado, peguei meu celular para me distrair. Já eram quase oito horas... Para não me deprimir com a aula que poderia estar perdendo, fui ver as minhas redes sociais e me deparei com a notícia: “Apertem os cintos! Vi o BOPE indo para a Maré!”.

— Será que vai ter tiroteio na linha vermelha?

Fiz mal em deixar essa escapar. A gordinha começou a gritar e o pânico se espalhou pelo ônibus até causar histeria coletiva. Até a trocadora insistiu para não passar pela Via Expressa.

— É só boato! Calma nesse ônibus, caramba! — Bufou o motorista. Devia estar no limite do estresse.

Ninguém sequer ligou para os pedidos do motorista. Até o bêbado, que estava quieto em seu canto, também começou a chiar por mais um dia de vida. A barulheira foi tamanha, que o motorista decidiu sair repentinamente da rota no primeiro espaço que deu, quase batendo em um motociclista desavisado. Em vez de ir para a Linha Vermelha, continuou na Avenida Brasil, desviou em alta velocidade para o caminho que levava à Avenida Bento Ribeiro Dantas e seguiu pela Linha Amarela até entrar finalmente na Ilha do Fundão. Fez uma volta maior, demorando ainda mais para chegar à universidade.

Quase chorei de alegria por minha aventura estar terminando, mas ia comemorar cedo demais. Fizemos um rápido tour, se comparado ao restante do trajeto, dando três voltas em torno da ilha sem sequer passar pelos prédios principais da universidade. Finalmente o motorista passou pelos institutos e muitos dos passageiros desceram, entre eles a mulher gordinha e o senhor corcunda. Ouvi o bêbado, ainda sentado no chão, dizer que continuaria para Penha. Deixei o ônibus, abri o guarda-chuva para me proteger da chuva forte e fui para o meu prédio. Quando cheguei ao corredor, vi minha sala vazia.

— Como assim vazio?! Não me diga que cancelaram as aulas por causa da chuva!

Mal disse, apareceu uma alma viva: um colega de outro período.

— Pedro, o que faz aqui?

— Ué? Se você está aqui, então não cancelaram a aula. — Concluí comigo mesmo.

— A minha não, mas a sua professora não tinha dito que ia para uma conferência e por isso sua turma não teria aula?

Minha expressão, que de alegria havia mudado para a de espanto, agora se transformou em desânimo.

— E lá vou eu de novo...


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Notas finais do capítulo

Olá a todos!

Apenas algumas observações: "bestializados" é uma referência ao livro "Os Bestializados" de José Murilo de Carvalho, que trabalha a reação popular ao nascimento da República, mostrando como ela estava bestializada, atônita, diante do processo. Já o termo econômico "stop-and-go" refere-se à emissão de moeda em intervalos de tempo curtos (emite, para, e assim sucessivamente) e foi usado aqui em alusão ao movimento dos veículos no congestionamento (anda, para...). Por fim, a ideia de usar crase no título veio quando me lembrei de "À Paz Perpétua" de Kant, só que em vez de as personagens irem para essa paz, elas estava seguindo para o oposto.

Espero que tenham se divertido!