Meus dias sombrios escrita por Clarice


Capítulo 7
Capítulo seis


Notas iniciais do capítulo

Esse é maiorzinho!
Boa Leitura!



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Capítulo seis

Era quinta-feira, e eu já estava guardando discretamente numa mala da mão as coisas que eu levaria no carro para a casa de mamãe. Mas ainda não tinha dito nada ao Matheus. Na verdade a gente estava se falando bem pouco. E isso me intrigava, me deixava chateada. Sexta seria um feriado, então eu e Camila tínhamos marcado de viajar mais ou menos depois da hora do almoço. Eu já até tinha ligado para minha mãe, e meu irmão estava louco para me ver. Aquela viagem seria como um fôlego de vida. Eu coloquei o celular para despertar meia hora mais cedo, para pegar meu marido ainda em casa. Quando despertou eu levantei de pronto, pois era como se durante o sonho, eu já estivesse me preparando para aquilo. Quando levantei ele estava no chuveiro. Veio para o quarto com uma toalha na cintura. Achei-o tão lindo. Com aqueles cabelos grisalhos úmidos, querendo cair na testa e ele os afastando com uma mão. O peito com aqueles pelinhos, o corpo rijo e firme. E os olhos obstinados que ele tinha. Era bem mais alto que eu, devia ter um metro e oitenta e cinco. Viu que eu estava acordada:

–Caiu da cama? -Perguntou. Fiquei feliz pela voz bem-humorada.

–Bom dia meu amor! -Eu disse fazendo festa. -Eu acordei cedo porque queria te falar uma coisa. -Ele se virou enquanto colocava as calças.

–O que foi?

–Você é tão lindo. -Eu disse, e ri, ele riu também e veio me dar um beijo. Depois voltou ao armário para pegar uma camisa. -Eu e Camila vamos passar o fim de semana com mamãe. -Falei.

–E nossa viagem? -Perguntou enquanto pegava o jaleco e dobrava para por na mochila. Já o tinha passado.

–Eu acho que não estamos no clima, agora. -Respirei fundo. -Você vai ter a casa só para você. Pode trazer o pessoal e se divertir. Pensei que fosse gostar.

–Não, -Ele disse logo. -É que, como não disse nada, eu fui tentando aceitar a ideia de ir à Serra. Até peguei aquela folga que estava enforcada há três meses. -Ele tinha ficado chateado, eu devia ter dito no dia que marquei com Camila. Me senti péssima.

–Quer que eu desista?

–Não, claro que não. -Ele disse, vindo se sentar na cama para calçar os sapatos. -Você não vê sua mãe faz um tempão. Vai ser bom, ainda mais para a Camila que agora quase não sai mais de casa. Vou ver se chamo o Diego e o pessoal para fazermos alguma coisa. Pode ser divertido passarmos esse tempo longe, já vai amanhã?

–Depois do almoço. -Falei temerosa.

–Ahn, certo. -Ele ficou um pouco desconcertado. -Vou mandar mensagem para eles hoje mesmo. Amanhã vou trabalhar, mas sábado e domingo estou livre. Você volta segunda?

–Não, ficaria muito em cima da hora. Devo chegar em casa domingo de madrugada.

–Ah, certo. Você tem o número do Fabrício? -Ele me perguntou me olhando, porque sabia que eu ia ficar orgulhosa de ele tentar ser amigo do marido de minha melhor amiga. Eu sorri, é claro.

–Sim, tenho. Ele deve estar se sentindo aliviado de passar esse tempo sem ouvir as reclamações em monólogo de Camila. -Aquela conversa estava tão leve. Eu enviei o número para o celular do Matheus. Tomamos café juntos, ainda conversando sobre pormenores. Eu acabei vendendo nosso pacote na Serra para um casalzinho recém-casado que eu conhecia. Nem perdido dinheiro a gente tinha. De repente tudo pareceu bem.

A consequência de ter acordado uma hora mais cedo só bateu na hora do almoço, que eu sentia um sono terrível e acabei dormindo sem almoçar. Quem me acordou foi a Natália:

–Lu?

–Oi? -Faltavam dez minutos para terminar o horário de almoço.

–Você... Eu queria saber se você quer sair para tomar um café, não sei. Conversar. -Eu fiquei confusa com aquele pedido.

–Quando?

–Não sei, amanhã, ou no fim de semana... -Ela estava embaraçada.

–Não vai dar, desculpa. Vou viajar e só volto domingo de madrugada.

–Está, está certo... -Hesitou um pouco. -Mas se algum dia quiser fazer algo do tipo, tem o meu número, certo?

–Tudo bem. -Ela foi embora e eu ainda tentava entender o significado daquilo.

Suspirei, não dava para fazer nada com aqueles cinco minutos que me restavam. Acabei me empanturrando de biscoitos a tarde inteira, entre trabalhar e parar para o café. Me senti terrível por aquilo. Quando deu seis se meia, eu já estava juntando minhas coisas para sair, porque estava muito ansiosa, com dor de cabeça, e sem saco para me forçar àquelas horas-extras. Coloquei o CD do Whitesnake para tocar no carro, e recebi uma mensagem enquanto dirigia. Só fui olhar quando parei no sinal. Era de Vanessa. "Se não tem me procurado é porque está tudo bem com o marido, não é? " Eu respondi prontamente. "Na verdade não." Eu sentia quase como se fôssemos íntimas. Nos conhecêssemos desde a escola primária. "Hoje podemos bater um papo se quiser. E amanhã é feriado, então nem vai ter que se preocupar, caso queira beber um pouco a mais." Meu primeiro ímpeto foi dizer não. Mas Eu sabia que hoje o Matheus ia demorar, e eu já tinha feito as malas, e ansiosa como estava não ia ter o que fazer dentro de casa, e ainda me sentiria oprimida por aquele apartamento. Acabei aceitando impulsivamente, e marcamos de nos ver em um local não-gay. Era um bar também, mas mais vazio. A encontrei lá, logo ao fundo.

Vanessa não era exatamente o tipo de mulher que se destaca na multidão. Na verdade era quase comum, a beleza dela. Vestia-se de maneira feminina e simples. Usava um batom quase vermelho, tinha o cabelo ruivo até o meio das costas que era meio pesado e liso. Tinha olhos castanho-escuros, e era magra. Tinha muitas pintas e sardas, mas não era tão terrivelmente branca quanto as ruivas que eu já tinha visto. Parecia uma ruiva de verão ou sei lá, que gosta de pegar sol e mudar de cor. Tinha cara de no máximo vinte e quatro anos, o que me fazia sentir velha. Eu me sentei, a mesa era para dois.

–Não estou a fim de me embriagar hoje. -Comecei. -Tudo bem com você? -Já a havia cumprimentado com um beijo na bochecha e aquele meio abraço de colocar o braço em torno do ombro da pessoa. Ela tinha um cheiro bom de recém-lavado.

–Estou ótima. -Apressou-se em me responder. -Eu também nunca tenho a intenção de me embriagar.

–Mora aqui por perto? -Perguntei, enquanto reparava a decoração do bar. Não era especial, localizadora ou específica. A parte interna era coberta por azulejos azuis velhos, e o balcão estava com uns jovens sentados. O lugar era simples, sua gente é que o fazia parecer mais ou menos pomposo.

–Na verdade moro. Uns três quarteirões, no máximo. Por isso gosto de vir aqui. -E riu. Eu também.

–Não precisa se preocupar com ir para casa, caso beba muito. -Ela concordou enquanto ainda ria. -Amanhã vou viajar para a casa de minha mãe, não a vejo faz tanto tempo.

–Eu também não vejo minha mãe faz muito tempo. -Ela soou tão austera, era quase como uma senhora muito vivida.

–Engraçado, eu sinto como se te conhecesse, mas sei muito pouco sobre você. -Eu disse.

–Pois é, na outra noite eu não falei muito. Gosto de não falar muito.

–Me conta a sua história. Me sinto vulnerável por nosso conhecimento não ser mútuo. -Comentei. Ela sorriu e acabou pedindo aquela cerveja. E pediu uma pra mim que era para eu experimentar, eu comentei que estava com fome e acabamos pedindo uns petiscos também.

–Está certo. -Eu já estava comendo. E tinha achado a cerveja horrível no primeiro gole. Mas no segundo era menos terrível, e foi melhorando gradativamente. -Eu acabei de sair de um relacionamento de seis meses, o que foi o mais longo de toda a minha vida. -Ela atalhou. -A verdade é que eu não sei mais procurar por pessoas. -Suspirou, cansada. -Sabe, naquele dia eu fui falar com você porque parecia uma presa num mundo de bichos selvagens e loucos. -Eu não havia entendido bem, mas ela ria.

–Como assim?

–Muita gente estava te olhando. Assim, bem vestida, bonita. Parecia triste com alguma coisa. Eu conheço meu tipo de gente.

–Então estava me protegendo? -Ela concordou com a cabeça e começou a rir. -Ou estava marcando território? -Atalhei, e então rimos, mas eu não tirei os olhos dela, era como se, mesmo eu sem entender direito o que aquilo significava, se tivesse alguma inocência para perder, eu perderia naquele instante. Ela ficou sem graça e para não falar nada enfiou a cara no copo. -Eu parecia tão inocente a ponto de...?

–Se deixar levar? -Ela perguntou, erguendo os olhos pra mim de novo. -Claro. Existem muitas como você, Luísa.

–Me sinto estranha.

–Eu também me sentiria, no seu lugar. -E começou a rir de novo. Meu celular estava tocando. Merda, era o Matheus. Olhei o relógio, dez e meia. E eu ainda estava com bafo de cerveja. Merda, merda, merda. E eu repetia a palavra em pensamento. Corri para a porta do bar com o celular na mão. Seria ainda pior se ele ouvisse o som de muitas vozes conversando em torno de mim.

–Alô, amor?

–Lu? onde você está?

–Eu acabei esticando com o pessoal do trabalho. -Inventei na hora. Eu sabia que a mentira era terrível em um casamento. Mas nem cogitei a possibilidade de dizer que eu estava com minha mais nova amiga lésbica psicóloga que eu tinha feito num bar gay.

–Eu pensei que iria querer passar comigo nossa última noite juntos, bem, até segunda. -Ele falou, meio chateado. Estava na cara que ficou me esperando e agora se sentia um idiota completo. Me senti péssima.

–Ah, amor, me desculpa. Eu sabia que você iria chegar tarde, então achei que não tivesse problema.

–Na verdade não tem, eu estou bancando o chato. -Disse. -Só não beba muito, certo? -Ele pediu.

–Certo! -Respondi energicamente. -Se você quiser eu volto para casa agora, posso me despedir do pessoal... Já vai dar onze horas mesmo.

–Mas amanhã é feriado, o pessoal deve querer beber até uma da manhã ou mais tarde. Não quero estragar sua festa. Baixei um filme, eu e o gato podemos ver juntos. -Aquilo só ia pesando ainda mais em cima do meu monte de culpa.

–Eu vou voltar cedo. -Sibilei. Também não queria que ele pensasse que estragou minha alegria. Apesar de querer muito que eu esteja lá. -Quando o filme acabar eu já vou estar chegando em casa, e dormiremos abraçados. -Terminei.

–Certo. Eu te amo.

–Também te amo. -E desliguei o telefone. Voltei para a mesa me sentindo uma cafajeste.

–Desculpa Vanessa, meu marido ligou. Sou uma péssima esposa, ele devia estar me esperando.

–Vai voltar pra casa? Quer que te peça um taxi? -Ela já ia se levantando.

–Não, não. -Respirei fundo. -Vamos esperar uns dez minutos. Ou meia-hora. Senão ele vai se sentir um estraga prazeres.

–Tudo bem. Sobre o quê quer conversar? -Ela perguntou.

–Não sei. Conhece alguma Natália? -Me vi dizendo.

–Não. -Ela franziu a testa. -Acho que não. Por quê?

–Era com ela que eu tinha me encontrado.

–A estagiária... -Não era uma pergunta.

–Pois é. Ela que me disse que estava naquele bar. Nossa, isso tudo é tão estranho e novo para mim, digo. Ir àquele lugar, saber que ela tem uma namorada. Conhecer você, pessoas como você. -Ela franziu a testa outra vez, como se eu a estivesse tratando como uma alienígena. E estava.

–É... -Foi só o que Vanessa soube dizer.

–E como terminou, digo, esse seu relacionamento? -Eu tentei matar aquele silêncio tenebroso que eu mesma havia criado.

–Terminou da pior maneira. A gente brigou feio, saiu no tapa. Ela me bloqueou de todas as formas possíveis. O porteiro do prédio faz cara feia pra mim. E tudo aquilo o que você já deve imaginar. -Ela encarava o copo suando como se estivesse revendo a relação inteira e a briga. -Mas a verdade é que eu não a odeio. Nem um pouquinho.

–Que horrível. Meus relacionamentos sempre terminaram de maneira tão sensata. O que você fez?

–Eu a traí. -E me olhou nos olhos. -E pode acreditar que eu não tenho orgulho nenhum de ter feito isso.

–Eu acredito em você;

–Foi com uma paciente que estava muito deprimida, e que acabou se apaixonando por mim, sabe. Tem gente que não sabe separar, ela achava que ao invés de fazer o meu trabalho, eu estava fazendo porque gostava dela. Me pegou depois de eu ter brigado feio com a Clara. Sabe, eu e ela éramos um casal muito instável, talvez porque éramos muito intensas em tudo. No amor e no ódio. Daí eu estava tão chateada e embriagada. A paciente me achou num bar e me levou para a casa dela, cuidou de mim. Eu só tive noção do que tinha feito na manhã seguinte. Contei para Clara, porque sempre jogamos limpo uma com a outra. E então começamos a brigar.

–Nossa. -Eu estava mesmo surpresa. -Nunca ouvi nada parecido.

–É, a coisa ficou feia. Foi difícil me desvencilhar da Monique, digo, a paciente. Fazê-la compreender, e tal. E dizer que eu não poderia mais ser a psicóloga dela. E pedir para ela não me processar. Mas com a Clara... Já era. Ouvi de uns amigos incomum que ela está indo para a Espanha. Tem família lá e ela é muito inteligente, sabe? Vai fazer alguma pós-graduação em tecnologia ou algo do tipo. Espero que ela seja feliz.

–É... Tomara que seja. Mas e você?

–Eu não sei de mim. -Ela riu sem graça. -Acho que desisti do amor por uns tempos.

–Eu nunca fui capaz de desistir do amor. -Eu disse.

–Taí uma coisa que eu não imaginaria você dizendo.

–Porquê?

–Não sei. Soou muito mais corajosa do que eu. Acho que temos de aprender uma com a outra. -Eu fiquei muito sem graça com o elogio. Olhando para o relógio notei que era uma e vinte da manhã. Pedi mil desculpas e disse que precisava ir logo.

Cheguei em casa e Matheus estava dormindo. O gato, na cama, se esticava todo. Como que ocupando o meu lugar. Me senti péssima, inútil e além de tudo uma esposa terrível. Tomei um banho e fui para a cama, tentei ocupar pouco espaço e logo peguei no sono. Acordei às oito. Matheus já havia ido trabalhar há muito tempo. E o gato, nem sinal. E eu só o veria de novo na segunda. Provavelmente quando eu chegasse no domingo ele não estaria em casa. Minha vontade era pedir pra alguém me dar um tapa na cara. Um bem dado, que deixasse marca. Por mais que eu não tivesse me embebedado, sentia uma dor de cabeça nauseante. Aquele gosto na boca. Não vomitei. Fui beber água, tomar um remédio. Minhas mãos querendo tremer. Meu estômago se revirando para lá e para cá. Eu estava sem fome.


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Notas finais do capítulo

Au Revoir!



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