Meus dias sombrios escrita por Clarice


Capítulo 14
Capítulo treze


Notas iniciais do capítulo

E o ritmo continua!
Boa Leitura!



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Capítulo treze

Era só amor. Os filmes não tinham importância. A comida chinesa que a gente pediu não tinha importância. Nem o clima frio, ou o sorvete que roubei da geladeira de madrugada. O que importava era apenas que estávamos ali. Era isso o que importava.

–O ursinho ficou no meu carro, você acabou esquecendo. -Ela me lembrou, enquanto estávamos deitadas no sofá. Ele se estendia para um sofá-cama. -É assim que valoriza os presentes que te dou?

–Eu tinha tantas coisas melhores com o que me ocupar naquele momento. Ou não tinha? -Respondi, ela riu.

–Justo o suficiente. Em todo caso eu o guardei e lavei. E coloquei um pouco do meu perfume. -Se levantou, estávamos com os braços dados e as mãos unidas, olhando para a tela e não interpretando as imagens. A televisão estava no mudo. -Já volto. -O cobertor enorme cobria o sofá inteiro, preto de bolinhas brancas. Como estava confortável ali debaixo. Era uma espécie de paraíso particular.

–Que horas são? -Perguntei. Era domingo, eu chutava. A gente não saía na rua havia tanto tempo. Eu poderia viver o resto da minha vida ali. Era como se o tempo não existisse, não importasse. Era como se o tempo fosse outro.

–Você realmente se importa? -Ela me perguntou, enquanto trazia o urso. Era azul claro e era pequeno, eu segurava com as duas mãos a sua barriga macia.

–Na verdade não. Ele ficou uma graça depois de limpo. -aproximei-o do nariz. -E está tão cheiroso. É quase como se fosse um pedacinho teu.

–A intenção era justamente essa. -Ela disse e me abraçou de lado, me beijou na orelha no pescoço e na bochecha.

–Vem cá, como foi a sua infância? Me diga alguma coisa. Como foi o seu primeiro beijo? -Eu queria tanto conhecê-la. Queria entrar em sua alma e fechar a porta comigo dentro.

–Minha infância foi um pouco chata. Eu vivia doente, era frágil ou sei lá. Sempre me machucava. Não era boa em esportes. Era tão magricela! -Riu da memória. Achei o momento tão precioso. -Meu primeiro beijo foi com minha prima, que sempre passava as férias lá em casa. Eu morei grande parte da minha infância num lugar que parecia um sítio, mas que não tinha bicho. Era tanto mato, o terreno parecia infinito. Tinha árvore de tudo que pode imaginar. A casa era enorme, e tinha muita criança naquela rua de chão batido. Tinha uma piscina nos fundos da casa, e as férias inteiras a gente passava lá. Mas a gente se mudou quando eu tinha uns dez anos, fomos pra mais perto da cidade. Daí eu comecei a ficar mais tempo dentro de casa do que fora. Sentia muita falta daquela casa enorme e de toda aquela liberdade e silêncio. A cidade era o extremo oposto. -Ela estava tão pensativa. -Mas acabei me adaptando. Acabei achando o meu lugar. Mas voltando ao primeiro beijo. Minha prima devia ter uns doze, treze anos. Ela era bem mais velha do que eu, mas infinitamente mais inocente. -A gente riu tanto. -Ela usava aparelho e vivia com o cabelo trançado. Ninguém a achava bonita.

–Que horror, Vanessa.

–É a verdade. -E continuava rindo. -Ela se casou faz uns cinco anos, já. Não mantemos mais contato.

–Você sempre foi assim a vida toda?

–Sobre ser gay? Acho que sim. De alguma forma. Meus pais eram tão tranquilos... Nunca fizeram grandes planos pra mim. Demoraram tanto para conseguir uma gestação que fosse até o final, que me amariam de qualquer jeito.

–Nossa. -Eu nunca imaginaria nada daquilo. Ela rapidamente mudou de assunto, mas ainda estava muito próxima a mim.

–Vai chegar uma hora em que precisaremos ter aquela conversa chata. -Parecia bem mais séria, de uma hora pra outra.

–E precisa ser agora?

–Já é domingo. Amanhã será segunda e nosso paraíso acaba. -Ela respirou fundo me abraçando com toda ternura e carinho do mundo. -Odeio ser a adulta da situação.

–Pois é, mas alguém precisa fazer isso. -Respondi, me ajeitando. Ambas nos erguemos e sentamos, nos posicionamos para ficar uma de frente para a outra. -Vou falar com o meu marido e resolver tudo. Não posso continuar mentindo. Eu te ligo quando tudo tiver acabado.

–Resolver tudo significa que vai largá-lo ou me largar?

–Eu nunca te largaria. Só preciso perguntar se você acha que está preparada para algo que dure mais do que seis meses. -E rimos.

–Eu tenho certeza de que estou. -Me respondeu, retomando o ar sério e desenvolto. -Na verdade eu preciso disso. Minha vida nunca foi estável, sabe?

–Eu imagino. E a minha nunca foi tão instável. É terrível a sensação. -De repente toda aquela tristeza voltou a mim eu a abracei subitamente, meus olhos se enchiam e esvaziavam. Eu não podia controlar.-Deus, porquanto tempo ainda vou chorar?

–Até as coisas voltarem ao normal, a gente precisa de tempo para deixar as feridas cicatrizarem. Eu prometo te ajudar nisso.

–Acha que estamos indo rápido demais? -Perguntei, temerosa.

–Acho que estamos indo no nosso ritmo. -Afastei o abraço, pois queria ver o seu rosto. -Sua cara está ótima. Parece tão descansada.

–Eu duvido disso. -Respondi querendo rir.

–Não, é sério. Você está mil vezes melhor do que quando chegou aqui. Mil vezes melhor.

–Que bom, você precisa saber como é o meu rosto quando eu estou de bom humor também. Senão vai acabar se esquecendo do porque gosta de mim.

–Que besteira.

Ficamos juntas o domingo inteiro, mas a segunda veio sem avisar. Tocando alto em meus ouvidos, aquele som que ecoava. Meu despertador dizendo que acabou a folga. Peguei meu celular e liguei ao Matheus, disse que eu iria voltar a casa a noite e que precisávamos conversar. Não deixei tempo para ele falar nada. Tudo o que me diria, teria de dizer olhando em meus olhos, e vice-versa. Eu poderia pressentir minha dor de cabeça e tremedeira no instante em que terminei aquela ligação. Aquilo não acabaria bem, nem pacificamente. Mas eu acreditava estar com a energia necessária para acabar logo com tudo aquilo. Fui trabalhar normalmente. Meu gerente tinha me dito, logo que soube que eu estava na empresa, que meu marido tinha passado na sexta para dizer que ele estava no encargo de tudo, como se tivesse falando por mim. Eu desmenti completamente. Eu queria mais era trabalhar. Se eu parasse naquele ponto, todo o meu trabalho de um ano teria sido em vão. Aquilo era mais uma das coisas que eu precisava resolver com meu marido.

Ele estava controlando a minha vida, ou melhor, tentando controlar a minha vida. Eu não era filha dele e nem nada que o valha. Não estava louca, poderia fazer minhas escolhas e ele não tinha o direito de mandar em nada por mim. Eu sentia falta do meu carro, e das minhas coisas. Sentia falta dele também, mas havia uma névoa de mágoa entre nós. Era tão espessa que eu mal conseguia vê-lo do outro lado. Me perguntava se ele não tinha dificuldades em me ver também. De repente me senti tão outra, como se eu tivesse mudado radicalmente em pouco tempo. Não era possível verificar se as mudanças eram positivas ou negativas. Mas que eu era outra, tinha certeza. A Luísa de duas semanas atrás nunca pensaria na possibilidade de se separar do Matheus.

De repente me vi perguntando como era a Luísa de um ano e meio atrás. Aquilo me oprimia de tal forma que tentei deixar pra lá. Foquei no trabalho, e a noite passei no psicólogo. Era um homem simpático de meia idade. Era magro e não muito alto. Parecia uma pessoa tão tranquila. Eu não tenho certeza do que dizer sobre nossa primeira consulta. Eu tinha muita coisa para falar mas não me senti confortável. Foi tudo muito ameno e eu não via a hora de ir embora dali. Gostaria de ter certeza de que ele havia percebido que comigo as coisas teriam de ser em outro ritmo, mas que eu estava consciente de que precisava de ajuda. Ele seria o empurrão que eu precisava para sair daquela confusão em que se encontrava minha vida e os meus sentimentos. Voltava para casa e eram quase dez horas da noite. Matheus estava sentado no sofá. Televisão desligada. Ele trazia os braços cruzados, e ainda estava vestido como se tivesse acabado de chegar em casa. Eu não quis entender o que aquilo significava.

–Você está com um rosto ótimo. Bem melhor, só está parecendo cansada. -Ele me recebeu de uma maneira bem mais receptiva do que o que eu tinha imaginado. -Está linda.

–Obrigada. -Me sentei ao lado dele. -Eu estou apaixonada por outra pessoa, Matheus. E era lá que eu estava no fim de semana inteiro enquanto fugia de você. Eu quero minhas chaves de volta.

–Você me traiu? Você disse que era incapaz.

–Mas parece que eu mudei. Me desculpa, não planejei te trair. Isso soa tão sujo agora... Eu apenas... -A verdade é que nessas horas não há coisa certa a se dizer. Ou modo indolor.

–Você não pode se separar de mim, eu te ajudei quando perdeu nosso filho, e precisa de minha ajuda agora também. Você tem de parar de ver essa pessoa. Tudo vai ficar bem. -Ele segurava minhas mãos e me olhava nos olhos tão seriamente que eu me sentia assustada.

–Você tem de parar de tentar controlar a minha vida! Você é o meu marido, mas não é o meu dono! -Reclamei. -Você não tinha que ter ido na empresa dizer ao Alexandre que eu não voltaria porque estava de licença!

–Eu só estou tentando te ajudar! -Sua voz era lamuriosa, aquilo seria bem mais difícil do que eu tinha imaginado. -Você não faz ideia do quanto eu a amo. Você não me ama mais?

–Eu sempre vou te amar, você foi muito importante em minha vida, mas...

–Eu fui? Não sou mais?!

–Matheus, me deixa terminar. Eu sinto muito que tudo isso tenha acontecido. Mas nada é culpa sua, nada disso é culpa sua. Você não é responsável por tudo o que acontece comigo. Nem pelo filho que eu perdi, nem pelo assalto, e nem agora, por eu ter me apaixonado por Vanessa.

–Você o quê? -Seus olhos eram absurdamente incrédulos, sua voz mal saiu; - É aquela... Meu deus, Luísa, você vai me trocar por uma mulher?! Você nem mesmo a conhece! Eu te conheço. Estou casado com você. Eu te amo, nos conhecemos há três anos, somos casados a dois e meio. Isso é uma insanidade, você não percebe?

–Não há nada de insano aqui. Não há. Como vou continuar casada com você depois de tudo isso?

–Eu não me importo. Tudo vai acabar bem. Isso não chega nem perto do que passamos da outra vez, Luísa. Você não se lembra. Mas eu cuidei de tudo.

–Não quero que faça nada. -Eu estava confusa demais, aquela conversa parecia não ter nem pé nem cabeça. Mas era clara a força que ele fazia para não sair berrando. Para se manter manso, para que eu continuasse ali. Ele não queria me dar motivos para eu ir embora.

–Deixa eu te perguntar uma coisa, Luísa. -Ele me olhava seriamente.

–Vá em frente e pergunte.

–Você pode ficar aqui hoje? Amanhã eu te deixo ir embora. -Eu uni as sobrancelhas confusa.

–Acho que posso. Mas isso não significa que eu vá... -Ele me interrompeu:

–Está certo, está tudo certo.

–Tudo bem. Vou tomar um banho. -Me levantei. Ele continuou ali sentado. Minha cabeça estava cheia, eu só queria dormir um pouco. Mandei uma mensagem para Vanessa dizendo que no dia seguinte a procuraria, ela respondeu que estaria esperando. Coloquei a camisola e apaguei.


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Notas finais do capítulo

Au Revoir!



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