Questão de Tempo escrita por Sailor Marco


Capítulo 1
Não se pode atravessar o Inferno com fome




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Nem andar descalço na grama estava ajudando Daniel a melhorar seu humor.

Bem... não depois do que lhe fora anunciado.

Ele trazia seu par de tênis em uma das mãos, se perguntando em que exato momento do dia sua vida havia se transformado naquele grande pedaço de merda em que ele se encontrava agora. Um suspiro cansado escapou de sua boca, e Lana, que vinha atrás dele, deu um tapa em sua cabeça após apressar o passo para poder acompanhá-lo.

– Vamos lá, Dandan. - ela choramingou, jogando todo seu peso contra o garoto. - Vai ser divertido.

– Acampar? - Ele ergueu uma sobrancelha - não tenho dúvidas de que acampar será divertido. Mas você sabe...

Daniel tentou terminar a frase, mas sua frustração o impediu, transformando as palavras que se formavam em sua garganta em um gemido de desgosto. Lana estava prestes a rir, mas sabia que isso só iria atrapalhar seu humor, então crispou os lábios, e fora da vista dele respirou fundo antes de continuar a falar.

– É por causa da Luce? - ela perguntou, dando um passo atrás, em todos os sentidos possíveis da expressão.

Era por causa de Luce? Uma carranca tomou o rosto de Dani.

Aquilo já era quase que uma lei: ele, Lana, Luce e Guilherme sempre eram os voluntários do colegial para monitorar as crianças pequenas no acampamento em que a escola os levava todo ano. Os alunos voluntários ganhavam nota de participação e uns pontos extras no boletim no final do ano, o que Daniel julgava um super prêmio, já que tudo o que ele devia fazer para ganhar isso era tomar cuidado para que nenhuma criança acabasse morrendo, ou perdendo algum dente no decorrer dos dias.

Mas nem Luce nem Guilherme poderiam estar presentes naquela temporada.

Maldita gripe.

Os dois eram gêmeos, e conviviam o dia inteiro - ou seja - quando Guilherme acabou pegando a famosa Gripe do Semestre de Inverno, que parecia surgir em todo ano, perto das férias de julho, Luce acabou pegando também. E no final das contas, nenhum dos dois estava com disposição para levantar da cama.

Muito menos para cuidar de quinze crianças por três semanas.

“É por causa da Luce?” a frase ecoou de novo entre seus ouvidos, e a carranca em seu rosto se aprofundou.

Ele adorava a nota extra, mas não era por causa disso que sempre se voluntariava. Dani também adorava as crianças, e adorava mais do que tudo passar três semanas acampando com seus três melhores amigos… Mas, ele não podia negar que no fundo de sua mente, passar três semanas ao lado de Luce - a linda, morena, inteligente, e perfeita Luce - sempre lhe parecia uma oportunidade irrecusável.

É por causa da Luce?

– Não é por causa da Luce. - Daniel soltou, chacoalhando a cabeça, se perdendo no meio de seus próprios pensamentos.

A escola recolhia quatro alunos de cada ano do colegial.

Quatro do primeiro, quatro do segundo e quatro do terceiro. Mas Dani e seus amigos iam como monitores desde o nono ano, por motivos de… Ah… isso já é outra história. Mas o que devemos destacar agora é que; com a ausência de dois alunos do segundo ano como voluntários para monitorar aquela temporada, a escola foi obrigada a escolher dois alunos como substitutos.

Agora vamos pensar nesse fato com a cabeça de diretores de uma escola cansada de alunos quebrando as regras.

Existem pessoas melhores do que rebeldes que não aprendem sua lição, e castigo melhor do que pirralhos de oito e nove anos em tempo integral para se juntar em uma equação perfeita, que resolve dois problemas de uma vez só? É claro que eles iriam pegar dois alunos em detenção para cumprir tal tarefa! Assim eles poderiam punir os alunos e ainda arranjar alguém para cobrir a lacuna deixada pelos irmãos da gripe.

– Ok. Por mim tudo bem - Foi o que Daniel disse naquele dia.

… Mas tudo só ficou bem naquele dia mesmo.

Com o tempo ele foi se dar conta de quem eram os alunos que sempre ficavam de detenção e com maior probabilidade de acabarem indo substituir seus amigos. Mas, ao perceber a seriedade de tal situação, Dani usou toda a sua mentalidade e atividade cerebral para bloquear a possibilidade daquilo acontecer e sorriu durante as ultimas semanas de aula, ignorando todas as péssimas hipóteses que martelavam seu cérebro constantemente.

Mas o veredicto que ele tanto temia fora anunciado naquela manhã, na reunião dos monitores.

Victor.

– Tem certeza que não é por causa da Luce? - Lana franziu o cenho, como se algo não estivesse fazendo sentido e teve que apertar o passo novamente para acompanhar um Daniel meio abatido.

– Você não tá entendendo, Lana? - Daniel parou de repente, quase derrubando a garota que havia finalmente o alcançado. - eu vou ter que dividir a cabine com o Victor.

Lana ficou alguns segundos em silencio, encarando o chão.

– E o que tem de tão ruim nisso?

Dani soltou uma risadinha sem humor.

– O que tem de tão ruim nisso? É sério isso? - Daniel levantou as mãos pro céu, em um gesto dramático demais. - Parece que você nem esteve na escola esses últimos oito anos. Victor é o demônio. Nem vou parar pra analisar o nosso histórico.

– Você fala como se só ele fosse o único mal. Eu me lembro muito bem de você atacando de volta.

– Porque ele sempre começava.

– Ok, Daniel.

Ele e Victor estudaram juntos desde sempre, e depois de anos discutindo e se atacando sem motivos, nem se deram o trabalho de tentar virar amigos. Tal inimizade foi crescendo e evoluindo até o segundo ano do ensino médio, naquele momento, onde os dois seriam obrigados a…

DROGA.

Daniel nem queria pensar naquilo, mas a cena se repetia em sua mente sem deixar brechas. Ele apertou o passo com Lana ao seu lado e decidiu que botaria os tênis depois.

No Q.G. -- Quartel General, como eles chamavam a casa principal do sítio, onde ficava o centro de administração e os diretores do acampamento --, Levi, o cara baixinho e medonho que tomava conta dos monitores mais jovens, havia pregado a lista de companheiros de quarto no quadro de avisos. Em situações normais Dani nem precisaria checar o papel para saber que sua dupla seria Luce, mas agora haviam criado a estúpida regra de que não poderiam haver dois monitores de um mesmo sexo dividindo o mesmo chalé.

Essa regra já devia existir desde o começo dos tempos, mas... Ah. Aquilo era um dos menores problemas para Levi e Hanji, no momento.

Desde que haviam chegado no sítio, os olhos de Dani corriam inquietos por todos os lugares, e se repousava em todas as cabeças por pelo menos um segundo, para ver se conseguia obter algum sinal daquele maldito cabelo preto que poderia ser sua discórdia, mas ele não o havia visto em nenhum lugar. Não era como se ele quisesse ver o idiota ali, mas sua ausência havia frustrado Dani. Afinal, após considerar a possibilidade de Victor frequentar o acampamento, Dani já estava se preparando para sentir raiva e todo aquele esquema pré-determinado de ódio... mas Victor não estava em nenhum lugar para ele poder descontar sua raiva.

Com passos hesitantes Dani caminhou até o quadro de avisos e com o dedo indicador procurou o seu nome. Lá estava: Daniel

E Victor logo ao lado do seu.

É... não havia como evitar o inevitável.

Dani ouviu alguém dar passos pesados e parar atrás dele, provavelmente vendo o mesmo papel que ele.

– Mas. que. CU!– a pessoa amaldiçoou.

E falando no demônio, lá estava ele.

Quando Daniel virou-se com a expressão branca, deu de cara com Victor que analisava o quadro de avisos, provavelmente queimando seu nome com os olhos.

Victor demorou alguns segundos para perceber que era Daniel que estava ali e nem se deu o trabalho de segurar um "Vai se fuder". Socou o braço de Daniel com força demais e saiu andando, provavelmente o culpando por terem caído juntos.

Mas tudo bem. Daniel também o estava culpando.

E ele foi embora com sua jaqueta tão preta quanto seu cabelo repicado. Victor não era punk. Nem rock. Nem anarquista. Victor era só... estúpido. Tão estúpido quanto sua jaqueta, e suas botas militares, e a cor estúpidamente estranha de seus olhos, que não eram nem castanho, nem amarelo. Eram só estúpidos.

Lana entrou na frente de Daniel e o recolocou em foco, percebendo que ele estava fuzilando a porta por muito tempo depois de Victor ter desaparecido por ela.

– Sabe - disse Lana - Xingar ele mentalmente não vai mudar o fato de que vocês vão ter que aprender a conviver.

– Contanto que estupidez não seja contagiosa.

– Mas se for acho que você já pegou.

Dani ficou alguns segundos tentando entender o que ela estava querendo dizer e virou-se para ela, com as sobrancelhas erguidas.

– Poxa - ele choramingou, sem perceber que estava choramingando. - Me desculpe. Mas você sabe que é inevitavel.

– Tente.

– O que?

– Pelo menos diga que vai tentar.

– Tentar o que?

– Pelas crianças, vai.

– Ahn...?

– Promete.

– Ah - Ele finalmente pareceu se tocar sobre o que ela estava falando - Lana!

– Daniel! Promete vai! Esse acampamento ainda é a coisa mais importante que a escola já me proporcionou e não vou deixar que você estrague isso.

– ... se alguém for estragar isso vai ser o Victor.

– Promete - Ela socou o mesmo braço que Victor havia socado e por raiva ou frustração ele acabou concordando e prometeu que tentaria não mata-lo.

Por causa das crianças.


***

Naquela noite o pessoal da equipe do acampamento estava na cantina para jantar e Daniel não conseguia pensar em comer, enquanto Lana se entupia de comida, sentada a sua frente.

– Vai, Dani. - disse ela, tentando cutucar um pedaço de batata com o garfo - Eu aposto que o Victor deve ser legal. A gente só precisa tentar.

– Eu não quero tentar. Já tentei por quase sete anos.

– Tentou tanto quanto ele, né?

– Como assim?

– O tanto que você já tentou se aproximar dele foi o quanto ele tentou se aproximar de você. Ou seja, nada - ela começou a mastigar as batatas e continuou antes de engolir tudo - Vocês só ficavam se xingando. Quer ver que é só você dar uma chance?

Daniel revirou os olhos e deitou a cabeça na mesa, concluindo que assim talvez a amiga parasse de tentar convence-lo de que Victor poderia ser uma pessoa boa. Até que o silencio repentino que ele havia conquistado foi interrompido pelo barulho de uma porta batendo. Ele se levantou rapidamente, e como todos, virou-se na direção da porta, onde Victor estava parado com uma casaco meio rosa que não refletia em nada sua personalidade, e o cabelo curto bagunçado como se tivesse acabado de acordar.

– Desculpa, gente - ele sorriu.

Victor sorriu.

Aquilo era mesmo o sorriso de Victor, e os dentes de Victor. Algo que Daniel nunca havia visto em sua vida, e se houvesse visto, foi há tempo suficiente para ele ter esquecido. Algo que ele julgava, no mínimo impossível, para alguém apático e indiferente como Victor.

– Eu realmente não sabia que essa porta era tão leve - aquilo era o sorriso de um humano! O sorriso de alguém capaz de cuidar de crianças!

E então todos voltaram a conversar, desinteressados no garoto que estava parado na porta, sorrindo como se fosse um anjo.

– Ele é um idiota, né? - disse Daniel.

Lana ficou em silêncio, mas em sua cabeça ele sabia que Luce e Guilherme concordariam. "Com certeza", "Completo idiota" eles diriam, enquanto terminariam de comer, fuzilando Victor com a mesma intensidade de ódio com que ele fazia.

– Mas viu só? - Lana o espetou com o garfo, em vez de concordar - Eu disse que talvez ele podia ser legal.

– Não caio nessa.

– Pra mim ele não parece estar fingindo. E o sorriso dele é bem bonito. Você também devia tentar sorrir mais vezes.

Daniel concordou mentalmente que era um sorriso bem bonito, e que fazia jus a cor estúpida dos olhos, mas aquilo não vinha ao caso.

– Ele só esta fazendo isso pra impressionar a staff. - Daniel bateu o punho na mesa com força demais, e antes de continuar olhou em volta para ver se ninguém (Victor) estava ouvindo o que ele estava dizendo - Pagando de adolescente bonzinho para se sair melhor do que eu.

– Você acha mesmo que a maior preocupação do cara no momento é ser melhor que você? O cara ta pouco se fudendo. Ele quer nota. E pelo visto quer ganhar de um modo justo, tratando todos bem e sendo um monitor agradável.

– Ok. Continue nessa, mas eu não acredito.

Enquanto Lana passava os próximos minutos terminando de comer e fazendo comentários sobre coisas aleatórias, Daniel acompanhava Victor com o olhar. Ele pega uma bandeja, um prato, se serve do jantar e pega mais batatas do que uma pessoa normal. Vai andando com uma versão menor de seu sorriso até a mesa onde sua amiga da detenção está sentada e começa a conversar com ela, sem parar de sorrir por um segundo.

Para ser sincero Daniel até havia considerado a ideia de ser gentil com Victor. Na verdade aquele era o plano inicial. Enquanto o filho da puta seria um cuzão, ele seria o monitor legal que tenta fazer amizade com o filho da puta cuzão mas não consegue porque ele é um filho da puta cuzão. E então Daniel continuaria tendo uma desculpa para dizer que Victor era um filho da puta cuzão.

Mas se Victor não agisse como um filho da puta cuzão, como ele faria?

Com ele sendo legal, não havia espaço para Daniel ser o simpático, e isso o deixou com mais raiva do que antes.

– Estúpido. - Daniel murmurou sem perceber.

Lana levantou os olhos, indiferente.

– Dá um tempo, Dani. Eu te conheço. - Ela voltou os olhos para a comida. -Aposto que tá com o plano de simpático versus filho da puta cuzão, mas por causa do Victor agindo assim quem vai acabar sendo o filho da puta cuzão é você.

Daniel não respondeu.

– E isso te deixa com medo - Lana esperou alguns segundos e concluiu - e isso te deixa com raiva... E te deixa putão... e cuzã...

– Já entendi, Lana - Daniel a cortou - Obrigado. Mas não se anima muito não que quem vai ter que dividir o quarto com a armária ali é você.

Com a cabeça Daniel indicou a mesa de Victor, e Lana parou alguns segundos para reparar na garota sentada em frente ao garoto. Ela tinha provavelmente alguns centímetros a mais que Daniel e muitos quilos de delineador preto contrastando com o cabelo loiro crespo. Vanessa. Elas já haviam se trombado nos corredores algumas vezes e feito umas atividades em dupla. Mas isso não significava que Lana não temia de Vanessa.

Mas no final das contas Lana não se importava muito. Adoraria fazer amizade com Vanessa se ela estivesse disposta (dando medo ou não), e não perdeu a chance de cutucar Daniel.

– Pelo menos ela deve ser mais legal que Victor.

– Vai enfiar esse garfo de batata na bunda, vai.

– Filho da puta cuzãaaaaaaaaaao.

– Desculpa. Foi sem querer. - Daniel chacoalhou a cabeça, impossibilitado de acreditar em si mesmo.

– Olha quem ta virando um cuzãaaaao. - Lana cantarolou enquanto se levantava para por a bandeja na esteira de limpeza.

– Desculpaaaaaaaaaaa. - Daniel bateu a testa na mesa. - Culpa dele.

– Ok. Agora vê se come alguma coisa.

"Não se pode atravessar o inferno de barriga vazia"

E quando Lana disse inferno, a imagem de Victor sorrindo apareceu para Daniel.


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Notas finais do capítulo

Eu nunca achei que fosse possível escrever tantos "cuzão" em um capítulo só.



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