Dando Voltas no Ponteiro escrita por Kívia Fernanda


Capítulo 19
Capítulo XVIII – UMA PEÇA MAIS COMPLICADA


Notas iniciais do capítulo

E de novo, perdão pelo atraso do capítulo anterior. Como vocês podem ter notado o tempo não estava acontecendo do jeito que era pra ser no capítulo anterior. Estava faltando a peça-chave, tendo em vista que a peça em questão é a Lily. Não quero apressar as coisas nesse capítulo, pois senão, já estaria perto do fim da história. E tem muitas coisas que vocês precisam entender antes que eu escreva “Fim”. Nesse capítulo quero mostrar como funciona a mente de Lily, a mente de alguém que foi culpada pela morte do amado. Aproveitem a leitura!



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Quando Lily acordou, eu e Cory já estávamos com as malas prontas há horas. Ela usava uma blusa vermelha minha e um short jeans, meu também. Ela calçou um All Star que eu tinha trazido e do nada ela parecia uma versão mais alta e mais magra minha. Cory ainda falava com ela com muita cautela e serenidade, como se estivesse falando com alguém com sérios problemas mentais. Bem... Eu não o culpo.

– Então... Brasil não é? Ouvi vocês conversarem enquanto eu estava dormindo. – ela falou, ajeitando a blusa.

– Sim. Não pretendemos ir de imediato, estamos sem dinheiro e estamos muito cansados.

– É... 23 horas e 30 minutos de voo daqui até o Brasil. – Cory se pronunciou e olhou para mim – Não estou lá tão ansioso.

A risada de Lily paralisou o grego. Quando vi seu rosto enrubescer, tive de ler seus pensamentos. Não posso deixar o destino de Cory mudar por causa de uma garota australiana. Talvez ele só tenha uma queda por sotaques. Britânico e australiano não são tão distintos.

Fiquei aliviada quando ouvi seu subconsciente dizer “Que fofa, ela pode rir. Sabe quem tem uma risada linda também? A Kat. Kat é tão incrível...”. Sorri e eles me olharam, confusos. Respondi como quem não quer nada:

– Podemos passar mais uns dias aqui na Austrália. E então Lily pode me contar mais sobre ela.

Ela me olhou assustada, encolhendo os ombros.

– Eu já disse tudo o que tinha para dizer... Não é o suficiente?

Ouvi um vento rasgar bem do meu lado. Lembrei que essa garota matou o namorado sem querer. Tenho que tomar mais cuidado com as minhas palavras.

– Não é isso. Precisamos saber se é você quem estamos procurando para o nosso exército.

– Não pareço poderosa o bastante para você então? – ela arqueou as sobrancelhas. Comecei a sentir um frio horrível nos pulmões e por instinto, minhas mãos começaram a formigar.

Formigar? Olhei para baixo e uma névoa negra estava se acumulando na palma da minha mão até a ponta dos dedos, envolvendo minha mão toda com algum truque que eu ainda não havia revelado. Caso o frio continuasse, eu teria que descobrir para quê aquilo servia.

– Que tal todos irmos tomar um chá bem britânico para nos acalmar? – Cory apareceu no meio, nervoso.

– Um chá? Não acho que seja uma boa ideia. – Lily rosnou.

Ela levantou as mãos e eu comecei a ficar sufocada. Apertei a mão esquerda no pescoço enquanto a direita estava apontando para Lily, pronta para me surpreender com o que aquela névoa podia fazer.

Então o chão debaixo dos meus pés começou a tremer e de repente fui jogada contra a parede devido ao aparecimento inesperado de uma árvore gigante crescendo em pelo menos 250 km/h.

Acordei na cama do hotel, meio zonza e procurando por Cory que foi o causador daquilo tudo. Mas quando olhei para minha esquerda, vi Lily dormindo. Seu nariz estava arrebentado e a boca estava cortada. E há quem diga que o Elemento Terra não tem muito que se fazer.

Mas mesmo com aqueles machucados, Lily era bonita ao dormir. Parecia um anjo que caiu do céu, literalmente. É incrível como alguém pode ser destruído tão rápido. Sinto por ela carregar essa culpa. Estava me levantando quando uma dor horrível me atingiu. Eu não posso ter quebrado nenhum osso, não aguento mais hospitais, pensei. Só quero encontrar os meus Elementos e terminar de formar um exército. É a única coisa que consigo pensar.

Caio de volta na cama e outra dor contrai meus músculos. Grito em agonia e vejo Cory correndo até o pé da cama, desviando de sua enorme árvore vestindo um avental com estampa de frutas e luvas de proteção rosinha, com uma bandeja de biscoitos caseiros. Ele me perguntava aonde eu sentia dor, enquanto colocava a bandeja no criado mudo ao meu lado. Eu estava sentindo mais dor ainda devido à crise de risos que estava tendo com aquela visão linda.

– Pode parar? Estou tentando ser um bom amigo aqui. – disse Cory, pondo as mãos na cintura.

– Sim, eu sei. Só não posso te levar a sério tão cedo. – e então ri mais um pouco, me fazendo ter mais dor – Ai.

Pude sentir Lily se mexendo ao meu lado. Ela estava acordando. Me virei para olhá-la, me preparando pra defender de alguma forma, mas ela apenas piscou e sorriu. Como uma criancinha inocente, estendeu o braço e pousou na minha barriga. Abaixei o olhar para ver o que ela estava fazendo quando comecei a me sentir melhor. Me senti curada.

– O Ar pode curar? – perguntei estupefata.

– Creio que não. – ela sorriu e deitou-se novamente, estirando os braços – Minha família faz parte dos Cosmos. Sou metade Cosmo, basicamente.

Imediatamente, lembrei-me de Carter. A garota americana do Maine que me ajudou com Luke daquela vez. Tanto trabalho para ele simplesmente dar as costas para mim, provavelmente querendo evitar uma futura dor. Uma futura dor incerta.

– Impressionante. – sorri.

– Me perdoe pelo meu temperamento. Como o Ar, mudo de personalidade o tempo todo.

Percebi o quanto fazia sentido e fiquei sem graça por estar armando minhas defesas.

– Vamos ter que melhorar isso.

Me levantei e peguei a mochila, arrumando tudo. Peguei um biscoito da bandeja de Cory e queimei a boca.

– Delicioso. – pisquei para Cory e ele sorriu, satisfeito – Mudei de ideia sobre ficar. Temos que ir para o Brasil imediatamente.

Cory suspirou com preguiça e então Lily propôs:

– Posso levar vocês voando, em uma nuvem.

– Nós sufocaríamos. Isso aqui não é um episódio de Dragon Ball Z. – Cory a olhou irônico.

Ela deu um sorriso de escárnio e voltou a dizer:

– É por isso que eu sou o Elemento do Ar.

Me intrometi, olhando os dois prestes a fazerem desafios sobrenaturais.

– Eu sou o Tempo, posso fazer uma viagem até o futuro com vocês. – Lily pareceu incomodada com a ideia e então explico – Cory é o Elemento da Terra, já pensou no quão desconfortável ele vai se sentir estando no ar? Numa nuvem?!

– Não. Não é isso... – ela disse, apalpando qualquer coisa que estivesse perto dela, para se sustentar.

– O que houve, então?

Ela me olhou, franzindo o cenho.

– Quer dizer, isso de driblar o destino não incomoda você? Parar de viver hoje, se adiantar para um futuro. Quantos momentos da sua própria vida você já perdeu? Você não sente nenhuma vontade de só viver o agora? – ela me perguntou e nada nunca fez tanto sentido. Qual o sentido de viver assim? Pulando as partes de sua própria vida, qual a graça? Pular os sofrimentos, os alívios, os momentos de pura felicidade. Qual a graça?

E então lembro que, sendo eu um Elemento, não tenho como aproveitar cada momento da minha vida. Tenho pulado as partes ruins, pois as Vozes da Confusão ainda estão ali. Sussurrando para mim, me dizendo o que fazer. Engulo toda a tristeza que sinto e sorrio. Repito isso e olho para Lily, dizendo:

– Não temos tempo para isso para imaginar tal coisa. Esse é o meu Elemento, me sinto completamente confortável vivendo assim. Vamos? – estendi a mão para Lily e ela a tomou.

Segurei a mão de Cory e avisei:

– Por nada nesse mundo, não soltem a minha mão.

E então uma sensação maravilhosa tomou conta de mim. O aceleramento do tempo formigava meu peito e me deixava, de alguma forma, mais cheia de vida. Quando então chegamos ao nosso pequeno futuro, os dois despencaram ao meu lado, sonolentos demais para poderem fazer alguma coisa.

Estávamos numa área concretizada vasta perto de uma estátua onde uma mulher estava sentada, com os olhos vendados e segurava uma espada nas mãos. Não estava lotado de pessoas, mas também não estava vazio. Você podia ver um grupo de famílias aqui, uns turistas acolá. Dois desmaiados e uma britânica com sono. Tentei pedir ajuda para um senhor de rua que estava sentado perto de uma rampa que levava para uma arquitetura enorme e complexa, mas ele simplesmente não me entendia. Falou em português alguma coisa com um moço jovem, com aparentes 14 anos e ele veio até mim, falando comigo na minha língua:

– Precisa de ajuda, “gringa”? – ele sorriu debochado e solto, mas não como o de Carter. Era um sorriso mais hospitaleiro, de quem quer agradar e não reprimir. Um sorriso... Brasileiro.

– Meus amigos acabaram de ter uma longa viagem e estão dormindo ali e... Ei! Estão me roubando! – quando apontei para eles, vi um homem de boné e roupas esfarrapadas roubando nossos pertences dos corpos adormecidos dos meus Elementos.

O garotinho, então, saiu correndo para me ajudar. Expulsou o homem, mas não conseguiu pegar as coisas de volta. Sorriu para mim e deu de ombros, pedindo desculpas. Olhei para ele, agradecida e então parei o tempo, fui atrás do ladrão e peguei meus pertences. Considerei jogá-lo num buraco negro onde sua existência não seria lamentada por ninguém, mas não tenho esse sangue frio. Voltei ao tempo e pedi para o garoto me indicar um hotel. Ele não sabia onde tinha, mas me falou que talvez, um taxista saberia.

O meu ajudante de 14 anos levou comigo o corpo de Cory e de Lily até a calçada e me ajudou a chamar um táxi que não aparecia com muita frequência nas ruas, e quando aparecia, estava ocupado. Quando finalmente conseguimos um, ele jogou Cory para dentro do carro, que bateu a cabeça e gemeu de dor e logo em seguida, com mais cuidado Lily. Peguei minha mochila e pus no banco da frente, sentando ao lado do motorista – onde no meu país seria antiético. Ele nos levou para um lugar grande e bonito no qual eu provavelmente não podia pagar. Mas decidi nos proporcionar ao deleite de um descanso tranquilo em um lugar bonito como este. Paguei ao motorista e agradeci, saindo do carro. Fiz um esforço pra acordar Cory, mas quando vi que não resolveria adiantei o tempo para uma hora em que já estivéssemos todos em nossas camas, dormindo. Parei para analisar o local e nunca vi nada mais bonito em toda a minha vida. Era espaçoso, com carpete macio no chão, três camas de solteiro macias e confortáveis com direito a edredom e tudo o mais. Quando me certifiquei de que os dois estavam confortáveis em suas respectivas camas, fechei os olhos.

E viajei no tempo. Viajei para uma época em que as mulheres usavam saias longas e acentuadas na cintura e lenços no pescoço. Numa época em que os homens copiavam o estilo de Elvis Presley para irem para festas. Numa época onde cabarés eram mais visitados que igrejas. Bem-vindo aos anos 60.

Embora não fosse um cabaré e sim uma lanchonete, as garçonetes se comportavam de forma tão promíscua quanto. O uniforme consistia em uma blusa polo azul claro com a gola e a barra da manga azul escuro e uma saia de cintura alta rodada na altura do joelho rosa. Usavam sapatos estilo boneca branco com uma meia ¾.

Dentre todos aqueles rostos marcados de delineador e bocas vermelhas, havia uma loira de cabelos curtos com cachos extremamente artificiais moldando seu rosto sardento e livre de maquiagens. Tinha os olhos azuis marcantes e um nariz arrebitado. Uma boca rosa-choque sorriu para um homem e percebi que meu antepassado era uma vadia.

Me dei conta de que aquele não era simplesmente um restaurante fast-food, e sim um cabaré temático. As garçonetes faziam seu charme para os seus clientes e então ofereciam os pratos: elas mesmas. Vi meu antepassado andar até um homem barrigudo, numa mesa afastada e a acompanhei. Ela pôs seus braços em volta de seus ombros e disse:

– Quer fazer um pedido?

– Oh, sim. – ele disse malicioso. Só Deus sabe o quão repugnante aquele cara parecia com aquela expressão – Seu nome, docinho?

Ela se soltou dele, apoiando a mão na mesa, ficando inclinada.

– Trinta euros pelo meu nome. – ela então estendeu a mão e ele fez careta – Eu sei que você está morrendo pra saber.

O homem barrigudo então, irritado, puxou os trinta euros de sua carteira e a entregou, batendo em sua mão.

– Obrigada! – ela deu seu melhor sorriso e disse – Stacey Hans.

“Stacey Hans” esse é um verdadeiro nome de vadia. Eu não acredito que eu era assim. Antes que eu pudesse notar, o homem barrigudo a puxou pela cintura e começou a enterrar o rosto entre seus peitos. Stacey estava muito incomodada para alguém que trabalhava num cabaré. Esse incomodo estava virando algo maior, até que ela começou a gritar e bater nos ombros do homem.

Então um cara que eu não havia percebido até então que estava ali, sentado em uma das cadeiras da lanchonete, com um jornal cobrindo seu rosto e uma boina e um par de óculos de grau, se levantou e separou o velho tarado de Stacey. Ele gritava e segurava Stacey atrás de si, a protegendo. Só então me dei conta de que aquela voz alta que ficava rouca quando aumentava voz, e que aqueles olhos azuis escondidos por trás de um par de óculos eram os de Luke.

Ou seja lá qual for o nome dele nessa vida passada. O homem levantou muito, muito bravo, tirando um canivete de ouro de seu bolso – até porque ter canivetes enfeitados é sinal de status, é claro – e apontou para o rosto de Luke.

No meio de toda aquela confusão, um circulo se formou entre os dois. Stacey estava agitada atrás de Luke, o abraçando pela cintura. Quando então, o homem velho e barrigudo levou o punho para mirar na garganta de Luke, Stacey o soltou e ficou em sua frente.

Levando então um profundo e rápido corte na sua garganta que jorrou sangue e no homem e em Luke. Luke do passado – que ouvi na multidão ter o nome Michael – segurava Stacey pela cabeça e cintura, segurando-a como uma boneca, com medo que ela desmontasse. Ela se forçou para dizer alguma coisa, mas nada mais foi que seu ultimo suspiro.

Fiquei esperando que a visão acabasse e que eu finalmente acordasse. Eu estava ali parada, assistindo todo o fechamento típico de história de romance de William Shakespeare, esperando para acordar. Vi o homem gordo sendo preso e Michael desesperado, com o rosto vermelho, jurando vingança. Comecei a me sentir desconfortável demais com o sofrimento alheio e fiquei tentando acordar. Nada acontecia até que ouvi palmas fortes e altas.

Muito altas. Mais altas e mais claras do que o cenário em que eu estava soava. Olhei para trás e vi um corredor que se estendia para uma espécie de cúpula, onde estava um trono e sua Rainha.

“Genial, não? Stacey Hans se atirando na frente de seu amado, Michael Hans para salvá-lo. Ao menos tiveram um lindo casamento” dizia a Rainha Hercília, sorrindo com aqueles seus lábios vermelhos marcantes de forma maquiavélica.

– Eu nunca vou poder ter um final feliz, então? – indaguei, levantando o queixo.

“Seja lá o que isso for, nunca esteve presente na sua vida. Em nenhuma delas”.

Pensei na vida que estou agora. É muito ruim viver estando ciente de suas vidas passadas e de como elas refletem na sua atual. Não é viver. É temer.

– Eu sou o Tempo, você sabe. Posso mudar isso.

A Rainha bateu seu cajado no chão, fazendo o chão tremer em poeira que embaçou a minha visão. Ela ria descontroladamente, como se o que eu tivesse acabado de dizer fosse uma grande piada. Talvez fosse.

“Você pode até ser o Tempo, Lynch. Pode até ser toda a grandiosidade que um Elemento pode ser. Mas você nunca vai poder mudar o destino” ela falou e eu concordei. Sei disso.

Eu sei qual é o meu destino.


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Notas finais do capítulo

Desculpa a demora para postar, a criatividade está falhando e eu vou viajar em algumas horas então tive que correr pra finalizar o capítulo. Eu realmente queria explorar mais a visão sobre o Brasil dos personagens mas isso vai ter que ficar pra próxima. Mil perdões pela demora e o próximo vem logo - na verdade não, mas eu quero tranquilizá-los. Obrigada por lerem e deixem seu comentário ♥



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