Acordo com uma forte dor no pescoço e com a intensa luz da manhã ofuscando meus olhos. Flashes da ida ao vilarejo, da abordagem de Sam no bar e do reencontro com Shane atingem-me de uma só vez, me deixando confusa.

Olho para o lado e vejo que Samantha está sentada no outro extremo do sofá cor de creme, com a cabeça tombada um pouco de lado, o que denúncia um sono profundo. A parte de Sam claramente não foi um sonho.

Meu estômago ronca, me lembrando de que estou sem comer desde ontem. Levanto-me lentamente, quase pisando em Seth, e só então noto que ele está deitado no chão junto com Cassie. Tomo mais cuidado ao desviar-me deles, evitando fazer barulhos.

Passo pela sala de jantar um tanto cambaleante, e acabo saindo na cozinha, onde encontro mamãe encostada na pia. Ela está de costas para mim, observando a paisagem além da pequena janela.

— Bom dia — cumprimento coçando meus olhos, como se de alguma forma isso pudesse expulsar o sono do meu corpo.

— Bom dia — ela responde. — Os outros já acordaram?

— Não — Olho para a janela também; o dia está realmente lindo hoje. — Estou com fome.

Ela pega um pacote de plástico, com algumas bolachas água e sal dentro e me entrega.

— Isso é sério? — questiono alegre. Antigamente iria repugnar esse tipo de bolacha, porém depois de meses comendo enlatados isso é o paraíso.

— Sim — mamãe responde sorrindo, me entregando uma garrafa de água.

— A gente vai ficar aqui? — pergunto me sentando na pequena mesa de madeira no meio da cozinha, preparando-me para meu banquete.

Antes que ela possa me responder, alguém do lado de fora grita “eles chegaram” e logo o alvoroço de vozes e barulhos interrompe o silêncio da manhã.

Mamãe ordena para eu segui-la, e mesmo a contragosto sou obrigada a deixar as deliciosas bolachas para depois.

Levanto-me da cadeira, e avanço pelo caminho que fiz há uns minutos atrás. Saímos no alpendre, e vejo o garotinho do chapéu e Lori abraçando um homem, que provavelmente é Rick.

Observo um senhor de cabelos brancos e um garoto asiático saindo do carro, e logo Maggie corre para abraçá-lo.

— Quem são elas? – Rick questiona, referindo-se à mamãe e eu.

— Maddison. Não se lembra dela? A garota é Emma, filha dela e de Shane. — Lori responde por nós. Rick lança um olhar surpreso para Shane, que permanece impassível. — Encontrei-as e mais outros na estrada ontem quando estava indo te procurar.

— Não sabia que Shane tinha uma filha — Rick diz, em um indireta ao meu pai. Porém me dá um sorriso amigável, que retribuo. — Como vai, Maddison?

— Bem, espero que você também — mamãe responde, se referindo a todo “fuzuê”. Rick apenas assente com a cabeça.

— Ei, quem é aquele cara? — um homem negro grita, e todos se viram para olhar o que ele está apontando. Só então vejo que há mais alguém no carro: um homem desacordado e com uma venda nos olhos.

— É o Randall — o garoto asiático responde, um tanto insatisfeito.

Todos começam a se aproximar, e eu resolvo acompanhá-los. Paro ao lado de papai, que parece totalmente insatisfeito e descrente por eles terem trazido alguém. Tomo cuidado de analisá-lo antes de dizer algo, como se testando para ver se ele não é apenas fruto de minha imaginação.

— Oi papai — sussurro olhando para cima, porém seu olhar está fixado em outro ponto. Viro-me para trás, e vejo que ele está encarando Rick. — Ei, pai — tento novamente, dessa vez mais alto, e arrisco puxar sua blusa.

— Ah, oi Emma. — Ele finalmente me olha, e sorri um pouco colocando as mãos em meus ombros de forma carinhosa. Noto que ele lança mais um olhar em direção a Rick, Lori e o garotinho antes de se virar para checar o homem vendado.

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No momento todos da fazenda estão reunidos na sala de jantar discutindo sobre o novo cara, Randall. Mamãe não me deixou ficar lá, alegando que era uma conversa de adultos, e isso claramente me irritou, já que o garotinho do chapéu pode ficar lá com eles.

Mamãe não autorizou Cassie a ficar lá também, o que me deixou insatisfeita da mesma maneira, pois implicaria em nós duas juntas na cozinha. Mas felizmente Cassie decidiu fazer companhia à irmã de Maggie, que continua de cama.

Fico sentada na cadeira em que estava antes, solitária na cozinha. Saboreio a bolacha o máximo que posso ­— já que ela se tornou meu almoço —, para não esquecer-me mais do sabor. Posso ouvir a discussão quando eles aumentam o tão de voz, e a que mais ouço é de papai e a de Rick, que claramente tem opiniões diferentes quanto à estádia de Randall, que pelo o que ouvi, continua desacordado.

Observo o mundo lá fora pela janela, onde estão os carros estacionados, a estrada de terra e uma floresta além das cercas. Uma nova onda de gritos atinge meus ouvidos, dessa vez envolvendo o pai de Maggie ­— Hershel, eu acho — e Shane.

Só consigo distinguir frases soltas, como... O que você fez no celeiro... Queria você longe... Não gosto disso... E fique de boca fechada. Depois dessa última frase, que foi dita mais alta, o silêncio domina. Ouço a porta da sala se fechar ruidosamente, e a figura de papai atravessando o lugar onde estão os carros.

Levanto-me rapidamente e saio pela porta da cozinha, descendo a pequena escada. Corro pelo gramado com intuito de alcançá-lo, mas uma mulher loira o faz primeiro. Continuo correndo, dessa vez indo mais devagar e tentando não deixá-los me ver.

Sei que isso é errado, mas eles parecem estar em uma conversa importante, já que gesticulam um para o outro, e minha curiosidade para descobrir sobre o que falam é maior que minha educação.

Avanço lentamente enquanto eles estão de costas para mim, escondendo-me por de trás de um dos carros.

— O que você está fazendo? — uma voz pergunta atrás de mim, o que faz com que pule de susto. Olho para trás com a mão no coração, tentando controlar meus batimentos cardíacos.

O garoto do chapéu me encara curioso e com um sorriso perspicaz, como se soubesse que estou fazendo algo errado.

— Nada — respondo recuperando a compostura e adquirindo meu tom de voz insolente, que sempre funciona para irritar Cassie.

— Você estava espiando eles — ele constata cerrando os olhos incrivelmente azuis, como se gostasse da perspectiva de me pegar fazendo algo que não é certo. — Isso é errado, sabia?

Bufo impaciente, tentando controlar meu constrangimento e minha raiva.

— Cale a boca — ordeno mal-humorada, já me afastando. Ouço-o rindo atrás de mim, e os passos anunciam que ele está me seguindo.

— Então, você é mesmo filha de Shane? — pergunta animado e curioso. Noto que essa é uma das principais características dele.

— Sim. E você é filho daquele homem que chegou? — questiono de volta, com ele andando ao meu lado em direção a casa.

— Sim, do Rick — responde, em um tom que denota orgulho.

Olho mais uma vez para trás, mas papai e a mulher loira não estão mais lá.

— Em? — o garoto ao meu lado questiona, e só então percebo que perdi algo que ele disse.

— Pode repetir? — pergunto voltando minha atenção para ele. Ele é alguns centímetros mais baixo que eu, mas aparentemente temos a mesma idade.

— Qual seu nome? — ele repete sem demonstrar raiva pela minha falta de atenção anterior.

— Emma, e o seu? — Só então noto que nunca ouvi ninguém falando o nome dele.

— Carl — diz ele, parando e me oferecendo a mão direita. Estranho o gesto, mas ofereço a minha e concluímos nossa apresentação com um formal aperto de mãos.