Os Cinco Filhos da Aflição : Nerlinir nas 8 Terras escrita por Raffs


Capítulo 12
Capítulo 12


Notas iniciais do capítulo

Milhões de desculpas pelo enooorme atraso(em comparação à periodicidade da maioria dos capítulos). Acontece que eu não tenho um computador próprio, então dependo do netbook da minha mãe ou do note do meu irmão, e por mais de uma semana não consegui arranjar nenhum tempinho para escrever esse capítulo. Acreditem, eu estava tão ansioso pra escrever isso quanto um leitor fica ansioso pra ler!

So, enjoy it!



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Era difícil imaginar que havia um lugar tão movimentado no meio da densa floresta.

Soldados andavam de um lado para o outro, vestindo armaduras de bronze polido, todos com espadas embainhadas. No peitoral da vestimenta, uma matilha de cães em formato heráldico, como se representassem uma família da Terceira Era ou algo assim.

Dezenas de tendas cinzentas cobriam uma faixa de terra num raio de cerca de 100 metros, de forma que de uma extremidade, era possível ver a outra ponta do acampamento .

―Sua Alteza quer ver vocês.Fazer algumas perguntas. ― um dos soldados da comitiva, Wrland, nos chamou. Era aparentemente o mais robusto, e possuía uma espessa barba negra ― Se eu fosse vocês não falaria nenhuma besteira, nem tentaria mentir. Ele não gosta quando tentam enganá-lo.

Dito isso, o soldado levou-nos em direção à maior tenda do acampamento, passando por entre algumas aglomerações de homens e mulheres de feições estranhas e pele acobreada.

Embora fosse a maior do local, a tenda não era grande coisa. Cinzenta como as outras, porém com um estandarte tremulante, erguido ao seu lado. Uma raposa vermelha em fundo bronze.

Era difícil respirar; o local era bastante empoeirado, e o dia estava bastante úmido, diferentemente do momento em que fomos pegos.

...

―Nerlinir, tenho que te contar algo. Meio que não tive tempo desde que saímos daquele maldito covil de piratas. ― Gustaf tinha razão. Embora dias tivessem se passado desde o incêndio em Elnet, passamos por uma correria enorme. Sempre tínhamos que nos preocupar com algo, o que pela primeira vez desde a calmaria no Princesa de Telmar não era o caso.

―Pode falar. ― falei sem olhar para o rusko. Apesar de ninguém estar nos perseguindo, não se podia baixar a guarda numa densa mata tropical como aquela. As raízes das árvores eram traiçoeiras, quase me fazendo tropeçar por diversas vezes, e de vez em quando ouvia alguns ruídos ferozes junto aos típicos sons animalescos da floresta.

Gustaf olhou à frente, e empunhou o cabo da espada, pronto para utilizá-la a qualquer momento.

―Mahrmed me disse algo naquela caverna bizarra dele. Tinha a ver com você, Mirmulnir e os outros três.

Não era o momento certo de falar sobre algo tão importante.

―Gustaf, o que exatamente quer dizer? Seja direto.

Ele assentiu.

―Quando vocês foram capturados pelos Espadas Vermelhas, sobramos apenas eu e Mahrmed no templo de Ckao'ner. Prontamente fui salvar vocês, para variar, e o Per Petuum disse que iria me ajudar a escapar. Enquanto corríamos até o cais, Mahrmed me falou sobre o fogo fantasma, e logo depois me mostrou como produzi-lo. Afirmei que não tinha dom para a magia, e que isso era seu departamento. ― o Daggar Branco afastou-se do resto do grupo, e ficamos na retaguarda, com Dyseus e Hvar na frente. ―Ele disse "aproveitando que você falou sobre isso, diga ao Ishtar, com estas mesmas palavras, a seguinte mensagem que recebi de Ckao'ner, o Senhor do Vazio, Detentor da Inexistência, o Tigre Desalmado: não confie em ninguém que encontrar depois da masmorra, pois todas as suas cicatrizes se reabrirão no momento em que pisar nos territórios dele.

Estranhamente, ele parou de falar.

― É só isso? ― perguntei.

― Logo depois ele meio que...tocou fogo no navio dos piratas. Então não tivemos muito tempo para falar.

Agora tínhamos andado mais rapidamente, e estávamos na frente do grupo. Dyseus passou ao nosso lado, com uma postura de cansaço. O príncipe, agora fora de seus domínios, não havia se acostumado a estar fora d'água, por isso ainda usava a máscara de algas, e sempre que víamos água ele era o primeiro a beber e lavar a face, ofegantemente.

― Tem alguma ideia de por que ele não falou isso diretamente para mim?

― Não.

― Mas... ― era difícil raciocinar, o ar estava mais pesado e já andávamos há horas, de forma que consegui entender como Dyseus se sentia ― Aquele homem mudou muito depois da guerra.

Gustaf fixou o olhar em mim, misteriosamente.

― E não mudamos todos, Nerlinir? Já são 12 anos desde o Dia.

Quando eu ia respondê-lo, fui interrompido por Mljet, que parou subitamente e me fez esbarrar nele.

― Mas o que, por mil luas cheias, aconteceu aqui? - disse.

― Como assim, Mljet? ― questionou Lonpak, que vinha atrás.

Não foi preciso responder; a imagem de uma vila destruída e incendiada fez com que compreendêssemos o espanto do westesi.

A vila era pequena, ficava numa clareira na floresta, rodeada por árvores estranhas com frutos estranhos. As pequenas casas, em sua maioria de madeira, caíam aos pedaços enquanto as chamas crepitavam e engoliam os pedaços de lenha restantes. Vários animais estavam mortos, porém alguns cachorros, galinhas e cabras passavam perto de nós, todos claramente abatidos.

Não haviam sinais de sobreviventes humanos.

Corpos e mais corpos estendidos no solo formavam um verdadeiro banquete para os urubus, o que quase me fez vomitar.

Pelo estado de decomposição, deviam ter sido mortos algumas horas antes, mas ainda assim o cheiro me causou arrepios. Assustava-me também imaginar que, talvez naquele mesmo dia, todas aquelas pessoas estavam em paz, levando suas vidas como podiam.

Para quê? Para serem mortas.

Nenhum dos homens estava realmente armado, no máximo um facão de açougueiro na mão de alguns. Provavelmente era uma aldeia pacata, pega desprevenida.

― Quem diabos seria covarde o suficiente para atacar essas pessoas? ― exclamou Lonpak, entrando em cada uma das casas(ou o que restara delas) para vasculhar.

― Talvez esteja havendo uma guerra. ― Mljet olhou para Hvar - Talvez seja isso! Com as Oito Terras secretamente em guerra, viajantes de Westka estão sendo mortos! ― agora ele estava bastante assustado, pela expressão ― Temos que pará-los!

― Primeiro, não sabemos se é realmente uma guerra. Já pensaram na possibilidade de ter sido um assalto? - retruquei.

― Nessa proporção? Duvido que um bando de ladrões teria feito isso a uma aldeia inteira. ― o elfo-dos-campos tinha razão em parte. Era bastante improvável que aquele massacre tivesse sido obra de criminosos.

De repente, Dyseus gritou.

― Ei, venham aqui! - ele gesticulou nos chamando para perto. Mas por um bom motivo.

Um sobrevivente.

Embora estivesse agonizando(segundo Mljet, os ferimentos e queimaduras eram graves demais para que a medicina disponível pudesse ajudar), o velho aldeão ainda conseguia, com um certo esforço, comunicar-se conosco.

― Eles vieram... como lobos. ― tossiu bastante, e Mljet pediu para trazermos água. O idoso só voltou a falar alguns minutos após ter bebido a água turva de um riacho próximo ― Não sei de onde. A floresta é muito grande ― o aldeão estava cada vez mais pálido, com a pele quase da cor da cinzenta barba ― e vivemos rodeados por ela. Eles vieram, eles vieram, mataram a todos, até as crianças. ― tossiu novamente ― Eles vão voltar, vão transformar isso em algo útil pra eles, e nós seremos esquecidos. Eles vão voltar, eles vão voltar... ― E não parou de falar isso.

― Acalme-se, acalme-se. ― Mljet tentava inutilmente tranquilizar o velho ― Qual o seu nome?Todos neste lugar falam a nossa língua?

― Não! Aprendi este idioma maldito com corsários há muito tempo ― agora estava com a respiração pesada, e tentava desesperadamente inalar o ar ― E meu nome é... Vyntra.

― Não faça perguntas desnecessárias, você sabe que ele não tem muito tempo. ― sussurrou Gustaf junto a Mljet. ― E acho que o tempo está fechando, temos que ir logo. Não temos nada a ver com isso de qualquer forma.

O jovem westesi concordou.

― Certo, Vyntra. Quem exatamente atacou sua aldeia?

O velho ainda choramingava, murmurando algo como "eles vão voltar". Tossiu mais uma vez, para variar.

De repente, começou a tremer.

Mljet pegou em seu pulso.

―Estamos perdendo ele! ― falou, desesperado ― Vyntra, quem atacou vocês?! ― o idoso maltrapilho não respondeu ― Vyntra? Vyntra! Quem fez isso?

Antes que morresse, Vyntra disse palavras que não explicavam muita coisa.

―Primrule e... Markreej. ― antes de dar seu último suspiro, Vyntra escreveu nomes incompletos na terra, e era possível ler algo parecido com "Markrrrl" e "Prinu", o que me confundiu bastante. Afinal, a palavra certa era a que ele falara ou a que escrevera(ou quase isso)?

―Markreej. ―sussurrou calmamente Mljet, soltando o corpo inerte de Vyntra como se nada tivesse acontecido.

― O que tem esse nome?

― Eu o conheço. ― ele estava com uma expressão de desprezo, além de bastante sujo de terra e cinzas, mas acho que essa aparência era comum a todos nós.

― De onde exatamente? - perguntou Lonpak.

―Existem coisas que é melhor não relembrar. Esse nome é uma delas.

Não insistimos; Mljet se calou e Hvar pareceu feliz em ver que, pelo menos uma vez, seu colega preferiu manter segredo sobre algo.

Não havia mais o que fazer ali; até procuramos por mais sobreviventes ou mantimentos, mas tudo havia sido destruído ou, pelo que presumi, roubado.

Saímos do território do que fora uma aldeia torcendo para que o velho Vyntra estivesse apenas delirando. A última coisa que eu queria por ali era me envolver em uma guerra.

―Para onde iremos agora? ― perguntou Dyseus, mas não era como se algum de nós soubesse se localizar ali. As Oito Terras são um paraíso comercial e tem um grande índice de desenvolvimento, mas apenas nas áreas centrais das ilhas; nas zonas periféricas tudo que se via eram florestas, animais e pequenas aldeias não muito desenvolvidas. Ou seja, basicamente tudo pelo que havíamos passado antes, e ninguém sabia como chegar em uma cidade grande naquelas distantes terras.

―Por enquanto vamos apenas andar, até acharmos alguma coisa, alguma pessoa viva. ― respondi.

Andamos por cerca de uma hora, e tive a impressão de que era em círculos.

Até que Dyseus parou.

―É estúpido continuar andando assim sem sabermos pra onde ir!

―E você tem alguma ideia melhor, garoto do mar? - disse Gustaf, enfatizando com desprezo a última parte da frase ― Por acaso foi para isso que veio conosco nessa jornada? Para reclamar? Eu não devia esperar outra coisa de um... ― o Terror não encerrou a sentença, provavelmente lembrando-se que eu também fora príncipe um dia, assim como a Sua Alteza telmarina.

―Me foi ensinado a não retribuir violência, principalmente a verbal. Ignorarei as suas palavras estúpidas, pois não me uni a esse grupo para causar caos. ― o príncipe virou-se para nós, na direção oposta de Gustaf. ― Apenas digo que por agora devemos parar. Andamos há horas, e nada encontramos. Que diferença fará uma noite acampando?

―Na verdade não acho que temos mantimentos suficientes para acamparmos. - retrucou, com razão, Lonpak.

―E quem disse que precisamos de mantimentos para isto? Por acaso você nunca esteve em uma guerra, passando fome e tendo que esperar reforços chegarem na mata fechada durante a noite, no território do inimigo? ― Hvar, como veterano que era, respondeu.

―De fato, nunca estive em uma guerra. Mas com certeza não é seguro ficar aqui. Não estamos apenas famintos e sem mantimentos, estamos cansados demais para lutar caso sejamos vítimas de uma emboscada.

―E por acaso seremos revigorados se continuarmos andando sem rumo? ― as palavras de Dyseus faziam sentido, o que me deixou indeciso; eu não sabia com quem concordar.

―Escutem, é melhor evitarmos discussões neste grupo. Sugiro que andemos por mais uma hora, e caso não encontremos nada, paremos para descansar durante a noite. - era boa a ideia de Mljet. Parecia bastante justa.

―Faz sentido essa proposta. Alguém discorda?

―Pode ser. ― Gustaf parecia tão cansado quanto qualquer um de nós, mas eu o conhecia bem: ele odeia parar, e a ideia de ter que acampar em campo de guerra o incomodava bastante. Não fazer nada para ele é uma auto-ofensa. E quando ele coloca uma ideia na cabeça, não há quem tire. Não fosse isso, eu nem estaria na jornada às Oito Terras.

―Acho que devíamos parar por aqui, mas se todos concordarem, assim o farei. ― a fala difícil de Dyseus começava a irritar.

―Tudo bem, a ideia é ótima. ― falou Lonpak. ― Hvar?

―Desde quando eu obedeço a vocês? Devemos ficar aqui, minhas pernas doem!

―A idade chega para todo mundo, mesmo... ― Mljet deu uma risada discreta, o que fez o velho explodir.

―Acha que estamos numa brincadeira, calouro?! Eu posso muito bem mandá-lo dessa para ― Hvar notou que era o único desarmado entre nós, mas seu orgulho não o deixou calar a boca ― ...melhor!

―Certo, Hvar, já o entendemos... ― falou Lonpak, também rindo. ― Agora só falta você, Nerlinir.

Era uma decisão óbvia.

―Meu voto é sim. ― nunca fui uma pessoa de muitas palavras.

―Então, continuemos an...

Mljet não conseguiu terminar a frase pois ficou demasiado assustado com o rugido das feras ao nosso redor.

Cinco deles.

Caso não saiba o que é um tyaguar(o que é bastante provável, já que eles são muito difíceis de encontrar(não que você deva procurá-los)), imagine um jaguar de quatro metros de altura sobre as quatro patas, pêlo laranja e em parte azul, focinho um pouco mais alongado e garras do tamanho de dentes de dragão.

Um pouco assustador? De fato.

Se você não estiver apto a lutar, rodeado por eles numa floresta fechada? Não tenho palavras para definir a tensão que senti.

―O que infernos são essas coisas? ― perguntou, nervoso, Dyseus.

―Tyaguares. Acho que ficamos parados tempo demais e acabamos os atraindo. ― respondi, tentando parecer o mais calmo possível. Qualquer movimento brusco os atiçaria a atacar.

―E como procedemos agora?

―Talvez se corrermos loucamente para lá ― afirmou Gustaf, apontando para uma área de árvores altas e de troncos finos ― consigamos despistá-los. Afinal, vêm todos de uma mesma direção, tecnicamente não estamos "cercados".

―Tem razão. Então vamos lentamente até lá e...

Uma das bestas disparou em nossa direção.

Ou melhor, em minha direção.

Tentei correr, mas ela saltou e me empurrou com suas enormes patas. Tive a impressão de ter quebrado uma ou duas costelas. Ela fincou uma pata em meu tórax, e eu estava com dificuldade para respirar.

―Nerlinir, não se mova! ― disse imbecilmente Lonpak. Como se eu pudesse me mexer. ― Afastem-se! ― avisou, antes de começar a se transformar no urso gigante que eu vira antes. De sua pele os pêlos se multiplicaram e tornaram-se pardos, e suas roupas começavam a rasgar-se. Ele jogou o arco para trás antes que ficasse fora de si.

Ele estava se transformando de maneira grotesca, mas eu não podia me preocupar muito com isso, pois era possível sentir o hálito(fétido) do tyaguar em minha face, enquanto saliva viscosa respingava no chão, vindo da boca cheia de dentes da criatura.

Ele rugia. Não parecia ter interesse em me devorar; na verdade, parecia divertir-se com meu sofrimento.

Eu estava prestes a desmaiar(mais uma vez), quando um projétil em alta velocidade subitamente atingiu o tyaguar no flanco esquerdo, empurrando-o alguns metros, o suficiente para que eu me libertasse e desse tempo para me levantar. Tossi um pouco depois de rolar na poeira para me distanciar da fera.

Restava saber de onde vinham os projéteis, e se eles miravam apenas nos tyaguares. Do contrário, estávamos em sérios apuros.

Até então vindos aparentemente de lugar nenhum, os projéteis atingiram cada uma das criaturas, que logo dispararam em fuga. Exceto, é claro, a que me atacara, que agora estava caída no chão, agonizando.

―Eu te disse, Wrland, que não adiantaria tentar caçar essas bestas. Elas escapariam, e pra começo de conversa ninguém sequer sabe se a carne delas é comes...

As cinco silhuetas se surpreenderam, e eu não sabia se pela nossa presença ou devido ao tyaguar caído no chão. Um longo projétil, semelhante a um dardo mais grosso que o meu braço, se estendia das costelas da fera, que tremia. A arma devia estar envenenada.

―Quem foi o idiota que envenenou os dardos?! ― disse o mais baixo dos cinco, que tinha uma besta na mão ― Wrland, foi você?

―Me dê um único motivo para que eu, o idealizador da caçada, tenha o feito, e admitirei de bom grado, Fernimo.

O jovem caçador/soldado(?) parou por um tempo. Não devia ser muito bom de raciocínio.

―Foi você, Nulos? ― disse, como que desistindo da possibilidade de ter sido Wrland o culpado.

―Quem preparou o arsenal foi Tayder, até onde sei. ― um jovem pardo de cabelos da cor da penumbra falou mansamente.

―Maldito ilhéu. Nunca confiei nesses desgraçados de Mulyr. Todos ladrões, piratas ou escravos libertos que não sabem preparar um arsenal.

De repente, eles pareceram se lembrar de nós, até então calados.

―Alto lá! Quem são vocês? ― disse Fernimo. Ele, como a maioria, tinha a pele acobreada, mas seu cabelo era castanho, e estava com a barba raspada. ― A Armada da Raposa não hesitará em atacar quem oferecer perigo!

Armada da Raposa? Isso está a cada momento parecendo mais com uma grande piada.

―Estamos apenas passando. ― eu falei, levantando os braços em rendição. Fui seguido pelo resto do grupo ― Não queremos confusão. Sabem onde há uma metrópole próxima?

Fernimo riu.

―Claro que sabemos.Estamos indo para lá, ou quase isso. ― ele sussurrou algo no ouvido de Wrland, que parecia ser o primeiro no comando ali, porém nada dissera.

―O que estão fazendo aqui?

―Viemos de Gargos ― Mljet lembrou-se de Dyseus ― em maioria.

Não queríamos dar mais detalhes. O príncipe telmarino pedira para não revelarmos sua linhagem, e agora usava máscara para não ser reconhecido(o que eu achava improvável, já que ele passara toda a vida debaixo d’água).

Os cinco soldados ainda pareciam desconfiados.

―Isso saberemos. Poderiam vir conosco? ― disse Wrland.

―Bem, nós meio que não sabemos para onde ir, então... ― Lonpak fez uma pausa ― Vocês tem mantimentos lá?

―Estamos acampando. Sigam-nos.

Achei estranho o fato deles não pedirem nossas armas, mas ao chegarmos ao acampamento elas nos foram tomadas.

―Vocês não deviam andar por essas bandas assim, desprotegidos. Não ficaram sabendo da guerra? ― Disse o soldado da besta. Aparentemente, apenas Nulos Zeter, Wrland Gӕlius e Heldad Fernimo sabiam falar o Idioma Comum dentre aqueles cinco, e eram mais raros ainda se considerarmos os cerca de 400 soldados presentes no acampamento.

―Na verdade, acabamos de chegar, e nenhum viajante chegou a nos contar de guerra ou algo do tipo.

Wrland tornou a se aproximar, e os outros se afastaram.

―Não deve ser coisa boa. Sejam educados, o Wrland é um cara bem calmo, mas não suporta grosseria. E acho que ele quer falar do nosso líder. ― eu ainda não compreendera o motivo deles não nos falarem o nome de seu líder.

...

As mesas de madeira mostravam mapas detalhados e com dezenas de peças sobre eles; talvez estivessem fazendo uma estratégia de guerra. Chifres cheirando a álcool estavam em outro móvel de madeira, mas algumas taças de vidro indicavam que havia certa nobreza em quem vivia debaixo daquele teto.

Centenas de outras quinquilharias estavam espalhadas/empilhadas pelo chão, e entre elas algo me chamou a atenção.

―O que acha que é isso? ― perguntou o misterioso líder, pegando o estranho objeto: um pote com um olho de lobo em conserva, mergulhado num líquido dourado.

―Algo asqueroso. ― respondeu Mljet, que parecia não ter gostado muito do anfitrião. Estava nervoso.

―Eu sempre concordei com isso, mas ele nunca quis jogar fora essa porcaria ― ao lado do Senhor daquele exército, estava um estranho homem jovial de cabelos castanhos e uma faixa vermelha na cabeça. A propósito, duas figuras interessantes aqueles dois.

O primeiro parecia um pouco mais novo que Mljet. Cultivava uma curta barba de mesma cor dos seus desgrenhados cabelos púrpura(não tão roxos quanto os de Mahrmed, na verdade pareciam até certo ponto comuns), rente à sua pele, para variar, acobreada, porém um pouco mais escura que a das outras pessoas dali. Tinha uma expressão séria e simultaneamente sarcástica em seu rosto, causando uma confusão em quem tentasse compreendê-lo. Usava uma armadura leve e polida, feita de algum estranho metal cor de sangue, com o desenho de uma raposa heráldica no centro da placa peitoral. Uma espada estava embainhada na altura de sua cintura. Mas o mais enigmático nele era seu par de olhos heterocromáticos: o direito dourado como o nascer do sol e o esquerdo negro como a mais escura e tenebrosa madrugada. Talvez fosse a diferença de cor entre as íris que causasse a ambiguidade de suas expressões.

Já o segundo não usava armadura, e devia ser mais velho, a julgar pela altura e pelas cicatrizes que tinha no rosto. Possuía a pele mais clara, como um arkhen, e como dito antes, cabelos castanho-claros que não caíam sobre seus olhos profundamente escuros devido à faixa em sua testa. Vestia-se desleixadamente para uma situação de guerra, quase como um ladino, exceto pelas botas e joelheiras de aço. Uma espada curta, semelhante a uma cimitarra, encontrava-se em suas mãos, como se ele brincasse com ela. Possuía um sorriso suspeito em seu rosto, como se zombasse de todos o tempo inteiro.

―Cale-se, Elrigh. Quando for sua vez de falar, o avisarei. ― disse o líder.

O outro deu de ombros.

―Algumas pessoas não possuem senso de humor. ― disse Elrigh, com mais um risinho.

―O que eu acabei de dizer? ― o general do exército não parecia estar brincando.

―Que seja. ― o mais velho afastou-se, fazendo cara de desdém.

―Desculpe, onde estávamos? Meu primo insiste em atrapalhar minhas conversas com convidados.

―Você...o Senhor... ― tive dificuldade para encontrar as palavras certas ― Vossa Alteza perguntou o que achamos que é esse pote, que, se me permite, é realmente asqueroso.

Ele arqueou a sobrancelha.

―Devo admitir. Mas isto aqui é, segundo o que dizem as más línguas, o que sustenta todo esse exército em minhas mãos.

Por trás do primo, Elrigh balbuciou “não sei porque ele ainda acredita nisso”, e eu não pude evitar de rir por dentro, mas tentei parecer sério e concentrado.

―É até engraçado, não é? Tenho certeza que meu primo fez alguma piada sobre minha estupidez em acreditar nisso. ― ele parecia bastante atento ― Mas isso nos dá uma mostra de como a vida funciona. Existem pequenas coisas que, por mais estúpidas que pareçam ou possam realmente ser, você nunca conseguirá sacrificar. Por que? Porque não vale a pena arriscar se ela fará falta ou não.

Parecia gostar de pensar, aquele homem.

Ficamos sem resposta. Aquilo não parecia fazer muito sentido; sequer sabíamos o porquê de termos sido chamados.

―Então... que tipo de guerra está acontecendo exatamente por aqui?

―Achei que soubessem. Nunca pensei que um grupo de 6 andarilhos passaria por aqui sem sequer saber da guerra. Antes, deixem-me fazer uma pergunta um tanto simples ― ele tomou um gole do que parecia vinho numa das taças de vidro ― Vocês pretendem me matar ou oferecer perigo a algum de meus homens?

Bem direta a questão.

―Não. ― prontamente respondemos em uníssono, à exceção de Hvar, que estava praticamente dormindo em pé.

Seu olho dourado brilhou misteriosamente.

―Bom saber. ― tomou outro gole, finalizando a taça e logo preenchendo-a de novo ― Gostariam de beber? Garanto que é das melhores vinhas nessa região. Solo vulcânico.

―Eu gostaria de um gole. ― disse Gustaf. Eu o conhecia bem, e ele sempre possuíra uma espírito beberrão.

―Isso, eu gosto de conversas francas. Elrigh, encha uma taça para o rusko, por favor. ― era assustador saber que sequer havíamos citado nossas terras-natais para alguém naquele exército ― Ou prefere beber num chifre, como um bom e tradicional guerreiro do norte? ― ele sorriu.

―Se quiser, pode me dar a garrafa inteira. Faz meses que não bebo um bom vinho.

―Como quiser ― disse ele, atendendo ao pedido de Gustaf, que deveria ter sido apenas uma piada. ― Elrigh, a garrafa. ― o primo do general fez o que foi ordenado, e logo Gustaf estava com um péssimo hálito e falando algumas coisas sem nexo ― Sabe, algumas pessoas pensam que o bem sempre vence o mal. Mas se isso fosse realmente verdade, não estaríamos aqui hoje. Até porque, se entrarmos em um conceito mais profundo, não existe uma definição concreta de “bem” ou “mal”. Até onde vão as morais e os “bons” costumes? Talvez canibalismo seja grotesco para nós, mas para diversas tribos dentro dessa floresta é algo comum e até apoiado pelos seus deuses.

―Aonde quer chegar com isso? ― perguntei. Não era hora para embromação.

―Acalme-se, chegarei lá. ― ele pegou um pequeno dardo colorido e jogou-o no centro de um alvo pendurado numa coluna da tenda. Aquele líder parecia ter um sério problema de hiperatividade ― O que quero dizer é que não há maneira exata de explicar guerra, pois limitar-me a algo como “meu tio é o cara mau e eu sou o herói da humanidade e da ética” seria estúpido. De fato, o que vale nesse caso é o detalhe do ponto de vista. Nos foi dado o livre arbítrio, afinal. ― ele parecia falar com grande eloqüência, mas eu já podia prever: divagaria até não chegar a conclusão nenhuma ―Existem muitas boas pessoas defendendo meu tio Elthan, e eu entendo a escolha delas. Mas não me resta nada agora a não ser tirá-las do meu caminho. É assim que surge um grande líder. Frieza. Esta é a palavra-chave. Não posso me importar com os que estão no outro lado, pois meu tio não se importa com os deste lado. Porém, é claro, se ele é um demônio, estou longe de ser um anjo. Acho que “monstro” foi a palavra mais usada para me definir em toda a ilha.E além dela.

―Poderia explicar de uma maneira um pouco mais objetiva? ― questionei.

Ele surpreendeu-se; seu primo riu novamente, provavelmente já estando acostumado ao gosto do parente por discursos profundos.

―Meu tio Elthan, ele me procura. E não possui boas intenções. Devo tomar a Sexta Terra, para impedi-lo de fazer novamente o que ele já fez para usurpar o trono do meu pai.

―E por que você contou-nos tudo isso, sem sequer nos conhecer?

―Não se enganem, eu já os conheço bem. ― olhou para Mljet, que permanecera calado durante quase toda a conversa ― Alguns bem até demais. Posso explicá-los sobre os costumes sextantes...

Felizmente, a tagarelice dele foi interrompida por uma pergunta curta e direta de Dyseus.

―Poderia, para que confiássemos em Vossa Alteza, ao menos contar-nos seu nome?

Ele se surpreendeu.

―Oh. Posso, é claro.Não acredito que meus soldados não os disseram essa informação. ― virou-se para o outro ― Elrigh, avise Wrland de que meu nome não precisa ser um segredo, afinal, estamos em território do meu estandarte.

Elrigh meneou com a cabeça, saindo do recinto. Agora chovia do lado de fora, e o terreno estava bastante enlameado.

―Meu nome. Boa pergunta. ― ele parecia pensativo ― Estranho que vocês ainda não o saibam, ainda mais porque um de vocês me conhece. ― ele fixou novamente o olhar em Mljet, com um sorriso discreto e maldoso ― As pessoas chamam-me por Vahlam. Claro,possuo um sobrenome também, e maldito seja quem o criou. ― ele deu um gole em outra taça, agora com um líquido irreconhecível de cor âmbar, e andou lentamente até ficar a dois metros de nós ― Sou Vahlam Markreej.


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Notas finais do capítulo

Tenho nem palavras pra explicar o quanto eu esperei pra finalmente escrever esse capítulo. Finalmente nas Oito Terras, afinal! E novamente, desculpem o atraso D:



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